Se os livros e documentos são alicerces para obras, viver também é fonte de saber e, por vezes, uma fonte mais precisa. Por Ronan Gonçalves [1]
Os trabalhos em ciências humanas, embora as mesclas possíveis, partem de duas grandes linhagens de investigação. Há os trabalhos que se fundamentam em pesquisa de textos escritos, inquéritos, entrevistas, documentos e há, por outro lado, os trabalhos que se fundam na memória ativa e na observação empírica direta. Embora a grande predileção pelos trabalhos fundamentados em pesquisa documentada, prosseguir por um ou outro caminho não é garantia, por si, de uma boa abordagem e de um bom retrato do real estudado.
Michel Foucault construiu um clássico sobre penitenciárias que, embora o seu imenso valor, só é capaz de apresentar os presos como seres oprimidos, mostrando somente uma parte da realidade. A falta de vivência prática deixou Foucault alheio a certos conhecimentos que apenas quem viveu dentro de uma penitenciária, ou com ela se relacionou, é capaz de obter. Se o Vigiar e Punir de Foucault é um livro sobre punições e sobre presos, contém uma séria lacuna inscrita no fato de os presos existirem nessa obra apenas como produto do poder. Nela, os punidos não existem como opressores, porque não é abordada a organização interna dos mesmos, e não existem como elementos contestadores, em sua cotidiana luta pela liberdade. Também os carcereiros não aparecem como meros trabalhadores atrás de salários, que enrolam no serviço, que dormem, que tecem alianças, que faltam, que fazem que vêem ou fazem que não vêem. Talvez Foucault não tenha tido o interesse de ir além da análise das punições e suas formas jurídicas, mas sente-se, nessa obra, a falta de conhecimento prático comparativamente à vastidão documental que o livro possui.
George Orwell, na outra tradição, ao participar da guerra civil espanhola (1936-1939), deixou à posteridade uma preciosidade que, não se fundamentando diretamente em centenas de livros lidos e documentos analisados, é absolutamente capaz de dar um panorama muito abrangente das mazelas e das contradições do real narrado. Ao ler Lutando na Espanha temos a impressão que o próprio Orwell está ao lado, contando-nos diretamente a história. Vemos os ratos passando, ouvimos os tiros, sentimos o fedor das latrinas e das barricadas, o sangue dos combatentes buscando a terra, o povo se insurgindo para defender-se do golpe de Estado franquista, as clivagens internas opondo comunista a comunistas, anarquistas a anarquistas, num rachado solo republicano.
Se os trabalhos construídos a partir da observação direta podem se igualar ou superar aqueles fundados em outros textos, escritos, documentos, entrevistas etc. possuem, com relação a esses, a possibilidade de captar coisas que apenas a quem está diretamente em contato é possível. Se os livros e documentos são alicerces para obras, viver também é fonte de saber e, por vezes, uma fonte mais precisa. O que dizer então quando um dado tema não é objeto dessa abordagem mais tradicional levada a cabo pelos pesquisadores acadêmicos? Quando não se encontram dossiês, livros, teses de mestrado ou doutorado? Restam os diários, as conversas de botecos, coisas faladas baixinho, ao pé da orelha, ou em espaços mais permitidos. Alguns temas não são de fácil documentação, como os casos de abuso sexual contra crianças; os menores estuprados ao tentarem alçar uma vaga como jogadores de futebol… Outros não são de interesse dos pesquisadores: o processo pedagógico dos mendigos, o cotidiano de trabalho dos garçons… Nos casos em que não é possível reunir ampla documentação, ou que não há interesse de pesquisa, resta o saber cotidiano, aquilo que todos sabem, o saber vivido…
Passados 200 anos da Revolução Industrial e 70 anos desde que Vargas iniciou decididamente a construção de um país urbano e, portanto, alfabetizado, permanece muito forte a tradição oral enquanto instrumento de história coletiva. A ponto de o ministro da educação, Fernando Haddad, afirmar que o país é mais ligado à imagem que à escrita. (Há quinze milhões de analfabetos no país). Num mundo em que toda forma de comunicação tornou-se uma forma de fiscalização, é muito grande a capacidade que os gestores possuem de obter conhecimento sobre facetas antes inacessíveis da vida social. Se para os populares continua obscuro o que se passa dentro da Maçonaria, do Rotary Club, das associações comerciais, dos Clubes Militares, das salas editoriais, dos jantares empresariais e políticos, enfim, são cada vez mais dados aos poderosos, enquanto permanecem em muito desconhecedores de si próprios.
Justiça seja feita! Provavelmente, como uma das coisas mais significativas que foi publicada no meio libertário brasileiro dos últimos anos, temos o A Guerra da Tarifa(Faísca, São Paulo, 2005), de Leo Vinícius, que também escreve sob o pseudônimo Ned Ludd, enquanto um dos animadores da coleção Baderna, que é tocada pela editora Conrad. Em A Guerra da Tarifa, Leo Vinícius descreve a luta do Movimento Passe Livre, em Florianópolis, ano 2005. Trata-se da continuidade de um outro escrito seu, também chamado A Guerra da Tarifa, este de 2004 e assinado Mané Ludd, no qual tratou do mesmo movimento, na condição de observador, no ano anterior.
Seu trabalho é uma das coisas mais significativas que foi publicada no meio libertário atual porque, além da riqueza analítica, trata-se de um livro proveniente da participação direta, da observação prática, um relato histórico documental. Afinal, não é estranho que inexista um livro sobre o Movimento Punk escrito por um punk? Livros escritos por membros do MST narrando sua luta? Outros de operários falando dos grandes anos, do velho ABC e etc.? Não é estranho que os movimentos sociais, o movimento libertário brasileiro, trabalhadores, vivam sempre à espera do que pinga das universidades? Pois bem! O trabalho de Leo Vinícius é um trabalho sobre o Movimento Passe Livre feito por um membro do Movimento Passe Livre. Uma singularidade! Ao construir uma história por dentro do movimento, o autor rompe com o amplo costume subjacente ao país no qual o povo, a sociedade civil, os pobres, quando são retratados, o são somente pela perspectiva do Estado, como objeto de ação e/ou produto deste. Em A Guerra da Tarifa, fala-se de cidadãos, eles por si próprios.
Vemos relatada a luta da população de Florianópolis contra os excessivos aumentos do preço das tarifas de transporte coletivo. Aí está descrito o protagonismo da juventude estudante, o envolvimento da população, da sociedade civil, da opinião pública (uma velha senhora), a tomada de posição da mídia local, a tentativa de malabarismo dos políticos (tanto de dentro do movimento, quanto de fora), os conflitos internos ao movimento, as primeiras experiências daqueles que ousaram, na puberdade, experimentar a cidadania ativa e outros que o fizeram bem depois, os inúmeros atos e reuniões realizados, o preparo e a discussão das formas de luta, sua realização prática, a atuação dos diretores de escola tentando cercear os alunos da participação pública e/ou ameaçando-os de punição sobre a participação política externa aos muros escolares, a atuação violenta da polícia e das milícias patronais, as alternativas de resistência dos estudantes que, por exemplo, escreviam em seus corpos o número de sua pouca idade, para atenuar a truculência dos policiais…
O trabalho, embora de poucas páginas, é bastante rico: ao lado da narração minuciosa dos acontecimentos temos a apresentação de análises contundentes que sistematizam e ampliam nosso aprendizado. Ele nos deixa melancólicos por não termos outros, de mesmo porte, sobre tantas outras lutas e acontecimentos, tanto do passado quanto do presente. Inscreve-se numa linha literária que embora pequena tem crescido no Brasil e é ampla de potencialidades. Trata-se de uma história contada por seus próprios participantes, justamente porque outros não a contarão ou não a contarão daquela forma. Nessa linha, posso citar Carolina Maria de Jesus, com Quarto de Despejo; Maurício Tragtenberg, em Memórias de um autodidata no Brasil; Ferrez, Capão Pecado; José Carlos Brito, A Tomada da Ford, Sérgio Vaz, em seu impressionante Cooperifa: Antropofagia Periférica e tantos outros.
Um velho lutador, João Bernardo, afirma que a riqueza e a potencialidade dos livros está não em sanar nossas inquietações, em dar-nos respostas, mas em nos trazer novos horizontes que possibilitem outras questões ou a reformulação de antigas. Um bom livro é aquele que cria indagações, que desperta a curiosidade. Daí que os autores devam servir não como objeto de afirmações, mas como alicerce para novos questionamentos. Leo Vinícius nos oferta o conhecimento sobre uma erupção social numa cidade que tem a imagem de pacata, de local de gente feliz e tranqüila. O que nos leva a questionamentos vários, iniciando sobre todo o trabalho e tessitura [contexto]que esteve na origem de tal empreitada. Que tipo de enfrentamento devem ter tido os adolescentes no âmbito doméstico? Como se passaram os acontecimentos no interior das unidades escolares? Será que a instrução para lutar pela baixa dos preços serviu para despertar a necessidade de instrução geral? A auto-organização fora da escola gerou novas formas de atuação dentro desta? Diminuíram os conflitos dentre os alunos? Despertaram-se novas formas de comunicação e imprensa? Surgiram outros grupos: de ação, de estudos, de arte e cultura? Que imagem do movimento ficou retida para seus participantes e para a população? Os grupos dominantes da cidade aprenderam que a tal sociedade civil pode ser um vulcão em terno sono: que alterações provocou na paisagem? Quando retornará a despertar?
Numa conjuntura em que os meios tradicionais de investigação muitas vezes são incapazes ou não se interessam em estudar determinados temas, onde a memória histórica de ampla difusão está a cargo das novelas e na qual a comunicação social e interpessoal é objeto de investigação e controle por parte dos gestores, o trabalho de Vinícius tem o mérito de sistematizar uma experiência de uma perspectiva autônoma, tal qual aquela adotada por Orwell em Lutando na Espanha. De tantos outros, tem a capacidade de evitar romantismos ao apresentar ações em bruto, a luta social nua e crua. Daí que ofereça ensinamentos a quem pretende seguir, mesmo sabendo pedregoso o caminho, ao passo que concorre, ao lado de gigantes, na construção da memória. Esta, popular.
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.
bom, se vc quer dizer por falta de “vivência prática”, no caso de foucault, o fato de ele nunca ter sido um preso, vá lá. agora se por esse termo vc entender o contato com o cotidiano penitenciario… vc devia buscar mais sobre foucault.
ele teve uma militância ativa nos anos de 1970 junto ao GIP (grupe d’information sur les prisons), no qual mantinha relações com as familias e os próprios penitenciários.
afirmar que seu trabalho “vigiar e punir” peca pela falta de experiências subjetivas é um erro. de fato, não vemos relatos apaixonados e indignados contra as condições das prisões que ele via e se relacionava em sua militância, mas tem-se que ter em vista que é um trabalho que pretende uma problematização e investigação histórica.
aliás, sugiro que vc leia uma conversa entre Deleuze e Foucault, intitulada “os intelectuais e o poder” (http://www.labgedus.com.br/docs/GEDUS-Microfisica_do_Poder.pdf), no qual foucault afirma:
“o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso”
tanto por isso, também acredito ser um equívoco essa dicotomia que vc coloca nas ciências humanas: creio que existem muitos trabalho que mesclam uma forma documental e teórica com experiências pessoais. vide o campo da antropologia, que tem como a menina dos olhos seu método de “observação participante”, uma forma onde pesquisador e pesquisados podem e devem interagir intensamente para que seja possível a produção de conhecimento.
e mais… a partir dos anos 70 houve uma tendência crescente no engajamento político dos intelectuais dentro de grupos e temas pesquisados – o que acarretou numa ampla discussão dentro da academia (sempre conservadora) quanto às implicações epistemológicas dessa identificação “sujeito-objeto” (jargão este que demonstra o pior que há em termos de elitismo acadêmico).
uma experiência pessoal de luta relatada é extremamente enriquecedora e acredito que mais instigante do que contratos científicos, mas pode ser tão “inútil” quanto qualquer conhecimento acadêmico que não ganha espaço para além dos gigantes muros das universidades. a (talvez falsa) objetividade à qual o academicismo tenta chegar não é em si o problema. não existe relação de exclusão necessária entre trabalhos documentais e aqueles a partir da própria experiência. são tipos diferentes de saberes que podem convergir.
em minha opinião, a pobreza da academia advém da sua pretensa superioridade em relação a outros saberes, de seu hermetismo e inacessibilidade da população em geral ao que é lá produzido, de seu extremo elitismo quanto à quem consegue produzir e entre tantas outras coisas que se originam desse sistema… o que dá margem para toda uma outra discussão…
concordo com sua afirmação que “um bom livro é aquele que cria indagações, que desperta a curiosidade. Daí que os autores devam servir não como objeto de afirmações, mas como alicerce para novos questionamentos”, mas acho que podemos encontrar isso também em trabalhos que, como vc diz, “se fundamentam em pesquisa de textos escritos, inquéritos, entrevistas, documentos”.
Eu sabia, de antemão, que a passagem sobre Foucault depertaria reação da dos ofendidos e que o central do texto chegaria a ficar de lado quando algum dos magoados escrevesse: por que mexer com os deuses?
A passagem serviu somente para ilustrar que alguns livros cheios de erudição são insuficientes, enquanto outros provenientes da observação direta podem ser muito bons, caso do Orwell. Só isso quis dizer. Como trabalhei 5 anos em penitenciária sei de tantos buracos que os acadêmicos nem sequer podem imaginar.
Enfim, não estabeleci nenhuma dicotomia. Disse somente que a vivência pode ser um saber de melhor qualidade e que, em muitos casos, a possibilidade de conhecer certas coisas vem somente da vivência.
Sou suspeito para deixar comentário nessa resenha. Mas aproveito para dizer que Lutando na Espanha é o melhor livro que já na li até hoje, e infelizmente acho difícil que vá encontrar algum ,elhor pela frente: real, resvolução, política, romance, humor, qualidade literária máxima. Fiquei triste quando o livro acabou.
Quando escrevi esses relatos sobre o que havia ocorrido em Florianópolis em 2004 e 2005 a intenção foi primeiramente deixar registrado no papel pois com o tempo vamos perdendo a memória dos detalhes. No caso do texto que narra a revolta de 2005 (que foi na verdade publicado em 2006 e ao qual a resenha se debruça), a intenção foi também, ao final, fazer uma reflexão e autocrítica. E essa autocrítica de certa forma tem alguma influência de algo que admirei bastante em alguns movimentos de ação direta britânicos das últimas décadas, que faziam uma autocrítica aberta de suas ações, com reflexões muito interessantes.
Bem, para quem quiser ler, pode-se comprar os pequenos livros na editora que os lançou: http://editorafaisca.net/
Tavez ainda não estejam esgotados.
O “A Guerra da Tarifa 2005” pode ser baixado aqui: http://www.midiaindependente.org/eo/red/2006/03/347685.shtml
A questão de criar essa memória por dentro é muito importante.
Nunca me assumi como revolucionário (aqui no Brasil se usa mais o termo militante). Meus dez anos de luta vieram pelo fato de ter crescido em extrema pobreza e sofrido muita humilhação da classe média, daí surgiu uma revolta; as leituras vieram depois. Hoje sou um pai que trabalha para pagar contas e tem as lutas da vida cotidiana, mas no momento só escrevo, o que é bem mais fácil. Ocorre que nesses dez anos de luta conheci muita gente e muita coisa que nunca foi relatada: gigantes lutadores em meio a ameaças de morte na zona sul, em franco da rocha, a turma do Tonhão exonerada em 2000, as ácidas batalhas dos alunos pobres da UNESP, os cursinhos populares, os quebra de trem, cortadores de cana esquecidos no interior paulista, a pedagogia emancipadora do CEFAM de Franco da Rocha, a luta por moradia do bairro Palmares, também em Franco da Rocha. Todo um universo.
Com meus erros de escrita e até de informação, dei pra mim a tarefa de contar um tanto disso tudo que ví e é desconhecido. E há outras coisas a escrever. O Lutando na Espanha é o melhor livro que lí do meio libertário, e o lí tardiamente. O Guerra da Tarifa é mais importante que todas as publicações libertárias dos últimos 15 anos. Como ex anarquista, sinto por ter perdido tanto tempo com leituras inúteis. Alguns textos do Tragtenberg, que lí quase toda a obra, também entram na lista de leituras inúteis (alguns poucos). Nem vou mencionar bizarrices bakunianas e anomalias gramscianas.
Quem está começando ou deseja empenhar alguns anos da vida lutando sinceramente deveria ir ao Lutando na Espanha e vasculhar onde estão os desconhecidos que lutam hoje. Perto do Orwell, o Foucault soa como um aristocrata universitário. Mas se quiserem carreira, Foucault abre portas.
Só para citar um projeto futuro: hoje se fala muito de Maria da Penha. Conheci pessoalmente o que denomino “mães de bairro”, que são mulheres com certo respeito nas periferias e que agem intermediando e resolvendo problemas conjugais, briga por causa de cachorro, tantas coisas. Ou seja, antes de vir a polícia, as delegadas, as promotoras, essas “maes de bairro” atuam resolvendo até 70% dos conflitos (a resolução ja começa antes nas famílias). É depois que fracassam que entra o Estado. Ou seja, existe há muito um mecanismo popular de resolução de tantos conflitos. No entanto, nunca ví nenhuma menção, notícia de pesquisa, nada. Claro, quem pretende ser dona de ONG, promotora, delegada, secretária, não vai se interessar por isso, vai falar da Maria da Penha.
Certamente a dupla de livros do Guerra da Tarifa é uma das mais relevantes contribuições à literatura libertária no Brasil dos últimos tempos. (Ou de, forma mais ampla, é uma contribuição fundamental para a memória das lutas sociais).
Iniciei minha militância ainda no colégio, quando participei dos atos do MPL-SP do fim de 2010, onde começou a longa jornada contra o aumento de 2011. Aqueles primeiros atos, ainda pequenos, só com a galera das escolas, tinham algo de bastante fascinante. Eu pensava: se todos os estudantes fizessem isso, a cidade parava. No Guerra da Tarifa descobri que isso já havia acontecido, alguns anos antes, em uma capital não tão distante.
Sempre me pareceu lógico que a perspectiva de uma sociedade socialista envolveria o fim do Estado, mas só no terceiro ano do colégio comecei a me afirmar como “anarquista”. Aí certa vez, um colega mais novo, do primeiro ano, interessado em aprender sobre anarquismo, veio me pedir uma indicação de leitura. Percebi que não tinha nenhum livro adequado para indicar: os Kropotkins, Malatestas e Bakunins que eu tentara ler me pareciam sempre ou muito chatos ou muito distantes da minha realidade. Ele queria ler um clássico, “A propriedade é um roubo” do Proudhon, mas percebi aquilo que eu tinha de melhor para recomendar era o “Guerra da Tarifa” do Leo Vinícius. Não só foi com esse livro que entendi como o anarquismo faz sentido atualmente, nas nossas vidas, mas também como ele acontece na prática, como é possível lutar.
No final, esse meu calouro acabou lendo o volume 1 da “História das ideias e movimentos anarquistas” do Woodcock. É um livro ótimo, mas fala de um anarquismo utópico, inviável, fracassado, passado, e que não faz mais sentido atualmente (segundo o próprio autor, na conclusão). Muito bom para quem quer estudar o assunto, mas não tanto para quem quer entender e empreender a luta concreta agora. Para estes, o valor do Leo Vinícius (e das compilações feitas pelo Mané Ludd, como o incrível “Urgência das Ruas” da Banderna) é muito maior.
Notável é que o primeiro-anista, que ainda não me devolveu o livro do Woodcock, hoje (um ano e meio depois) já mal participa do grêmio da escola, e nem mesmo o debate político lhe interessa muito.
Uma leitura que seria útil para os comentadores deste artigo e igualmente para o seu autor é o livro de Richard Hofstadter, O Antiintelectualismo nos Estados Unidos, editado no Brasil pela Paz e Terra em 1967. Mas que ilusão a minha! Não se pode esperar que os antiintelectualistas leiam uma obra intelectual, ainda para mais com 545 páginas. E eu já promeiti pôr ponto final nas minhas ilusões, esta e outras.
Passagens neste e outros textos não pretendem fazer uma recusa ao saber, apenas mostrar que há outras formas válidas de conhecimento e outros pontos de referência.
O meio libertário brasileiro vive há anos no mais puro mofo. De um lado uma sacralização de autores e coisas passadas já sem valor, de outro uma aceitação acrítica de temas propostos tal qual saem da rede globo – feminismo, ecologia, amor aos animais – e, ainda, um distanciamento da vida concreta, da realidade popular, ao ponto de grupo militante ir virando sub departamento universitário. Nesse contexto é que é preciso a renovação, mostrar as lutas de hoje, os novos contextos.
Um jovem que comece hoje e se atenha às publicações vai ter muita dificuldade de saber onde estão os lutadores sociais de hoje, os revolucionários (não gosto muito deste termo). Os lutadores estiveram em Floripa, estão no SINTUSP, no espaço cultural Maloca, organizando e exonerados na greve de 2000 dos professores paulistas, no movimento sem-teto, morrendo na África do SUL, ameaçados de morte em franco da rocha, organizando os terceirizados na UNICAMP, na associação de moradores do CDHU San Martin, em cursinhos populares por ai, no Mães de Maio, junto com os alunos pobres da USP, da UNESP, nas várias lutas em Goiás, nas hidrelétricas…enfim.
Como fez o Leo, aqueles que participaram destas lutas precisam noticiá-las, escrever sobre elas, para que se vá renovando o quadro de referência. Não é possível que Foucault seja mais citado que Orwell em certos meios. Perto do Orwell, Foucault é um aristocrata apegado a privilégios.
A provocação sobre ler 545 páginas soaria engraçada não fosse eu alguém que lutou e luta para estudar. Entretanto, como vivo estimulando que desleitores leiam e escrevam sobre suas lutas, a ironia demonstra erro de análise. De todo modo, gostei do título e vou procurar o livro.
Quem contou a história foi um pós-doutor, e quem escreve a resenha é mestre. E ainda fala-se mal da academia…
Basta que alguém elogie o fato de uma pessoa fazer relatos e análises sobre o movimento do qual participou para que representantes do feudo universitário venham gritar que cabe somente a eles pensar e escrever sobre as coisas.
Gente que organiza seminário sobre lutas de todo tipo em que os lutadores nunca estão presentes, nunca podem falar, deve mesmo se preocupar com a defesa de seu mercado. São exploradores ideológicos: vivem de vender seus discursos com a condição de que os que fizeram a história nunca tenham possibilidade de falar.