Uma reflexão em torno da relação entre os poderes soberanos e a vida. Por José Nuno Matos
Em 2005, diversos bairros de barracas [favelas] da periferia de Lisboa começaram a ser demolidos sem que a centenas de pessoas fosse reconhecido o direito ao realojamento. Um processo que se tem arrastado até aos dias de hoje e que, há cerca de um mês, deixou sem casas as 85 famílias que viviam no Bairro de Santa Filomena, na Amadora. Tanto o acto em si como as justificações apresentadas constituem o tema deste artigo, uma reflexão em torno da relação entre os poderes soberanos e a vida. A sua natureza totalizante levou-nos a investigar sobre a validade do termo “exclusão”, procurando compreender até que ponto é possível distinguir entre excluso e incluso, legal e clandestino, cidadão e não-cidadão.
O termo “exclusão social” constitui um traço insofismável do actual discurso sócio-político, descrevendo uma série de fenómenos, como o desemprego, a precariedade laboral ou a pobreza, incapacitantes do exercício da cidadania. Porém, até que ponto é que as pessoas que padecem desses problemas se encontram socialmente excluídas ou, pelo contrário, pertencem sem ser incluídas, numa lógica de excepção?
Neste artigo partimos dos conceitos propostos por Giorgio Agamben, procurando compreender qual a relação entre os supostamente “excluídos” e os poderes soberanos que tentam determinar as suas vidas. Para tal, concentramos a nossa análise nas questões da habitação, nomeadamente as relativas às operações de demolição realizadas em vários bairros sujeitos ao Programa Especial de Realojamento (PER), constatando, por um lado, a materialização do estado de excepção e, por outro, a impossibilidade de as encarar como meros casos isolados.
Embora apresente níveis relacionais diferentes, consideramos que o conflito entre poder soberano e vida nua tende a alargar-se, segundo um mesmo modelo de crise, às mais variadas esferas sociais, contribuindo assim para uma crescente indiferenciação entre incluídos e excluídos.
Homo Sacer, o sacrificável
O presente ensaio visa abordar a vida humana e as perspectivas sob a qual é encarada: se corresponde a uma mera presença biológica, semelhante às demais criaturas com que partilha o meio natural, ou se equivale a uma existência particular, divergente de todas as outras, posse e pertença do indivíduo, aquela “em que simples maneiras, actos, e processos […] nunca são simples factos mas sempre, e mais do que nunca, possibilidades” (Agamben, 2000: 4). Na relação estabelecida com os poderes soberanos, a vida aparece juridicamente representada, segundo Agamben, como “a contraparte de um poder que ameaça de morte” (Agamben, 2000: 5). O filósofo refere-se ao homo sacer, “uma obscura figura do direito romano, em que a vida humana é incluída na ordem jurídica apenas sob a forma da sua exclusão (isto é, sob a forma da possibilidade absoluta de sem punição, lhe ser infligida a morte)” (Agamben, 1998: 17). A vida nua, indefesa, sujeita a sacrifício sem que tal acto possa ser censurado.
O Estado Leviatã, teorizado por Thomas Hobbes, tem como base esta relação. Inicialmente, enquanto realidade do estado natureza, o homem é confundido com o lobo e o lobo confundido com o homem. De facto, não se trata tanto de “uma guerra de todos contra todos, mas mais exactamente uma condição em que cada um é para outro a vida nua e homo sacer” (Agamben, 1998: 103). A emergência de um poder absoluto, que não reconhece uma autoridade equivalente no território de que é senhor, não surge de um contrato em que o indivíduo se torna súbdito por livre vontade, mas sim de uma situação em que as pessoas “ao abandonarem os direitos que lhes pertenciam, permitiram que o soberano usasse o seu, da maneira por ele considerada a mais conveniente para a preservação de todos; de maneira que o direito não foi dado, mas foi-lhe deixado, a ele e só a ele” (Agamben, 1998: 104). Em suma, conforme expressão do autor, se o súbdito é lobo, o soberano é lobisomem.
Com as revoluções nos Estados Unidos (1776) e na França (1789), a vida humana converte-se na fonte de legitimidade do poder soberano. O súbdito ascende a cidadão, detentor de uma série de liberdades e garantias – apenas e só enquanto tal. A cidadania constitui assim, aparentemente, o limite que marca a passagem da vida nua a uma vida potencial, dotada dos meios (que também fins) necessários a uma emancipação. Neste sentido, “uma das poucas regras a que os nazis se obrigavam constantemente ao longo da «solução final» era de que só depois de completamente desnacionalizados (mesmo da cidadania residual que lhes restava desde as leis de Nuremberga) os judeus poderiam ser enviados para os campos de extermínio” (Agamben, 1998: 127).
Porém, a cidadania deve ser analisada como uma condição política cuja definição é da competência do poder soberano. Tanto o estabelecimento de critérios rigorosos na sua atribuição, como a possibilidade das suas alterações, permitem-nos afirmar que, para além do limite que marca a passagem de vida nua a potencial, existe outro limite na relação entre indivíduo e poder soberano, “para além do qual a vida deixa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser aniquilada sem se cometer homicídio” (Agamben, 1998: 134). A esta nova configuração Agamben designa de estado de excepção.
O estado de excepção
A manutenção e perpetuação da ordem jurídica poderá levar o poder soberano a criar uma conjuntura excepcional, caracterizada pela suspensão dessa mesma ordem. A sua função essencial é assegurar a normalização do terreno, transformando o complexo em simples e possibilitando a emergência de condições favoráveis à diligência da lei. Perante esta, o estado de excepção apresenta-se segundo uma condição de exclusão inclusiva, pois, se por um lado ultrapassa a norma, por outro, fá-lo por iniciativa da própria norma, que se auto-anula e dá lugar à excepção. O recurso a este arquétipo permite ao soberano entrar em relação direta com o homo sacer, aplicando o seu poder no sentido da desaplicação das normas que faziam do homem cidadão. Na visão de Agamben, “O estado de excepção […] toma forma precisamente quando a vida nua – que normalmente aparece reunida com multi-variadas formas de vida social – é explicitamente posta em causa e revogada como última fundação do poder político” (Agamben, 2000: 6).
Perante a análise realizada, importa questionarmo-nos sobre as implicações políticas da existência de fenómenos como o de Guantánamo, a título de exemplo. Serão indicadores de uma declaração de estado de excepção que afecta a generalidade das pessoas? Ou corresponderão apenas a meras circunstâncias particulares, de expressão bastante limitada?
A resposta a ambas as questões é, na nossa opinião, negativa. O estado de excepção é uma realidade, mas não recente, nem necessariamente “pós 11 de Setembro”. Consiste, sim, numa pedra basilar da relação entre poder soberano e vida, pois, mesmo enquanto protegida, esta última encontra-se sujeita a uma série de dispositivos que, se impulsionados, alteram radicalmente a sua situação, “como se os cidadãos – homens – devessem pagar a sua participação na vida política com uma incondicional sujeição a um poder de morte, e a vida pudesse entrar na cidade só na dupla excepção de exposição à morte e da insacrificabilidade” (Agamben, 1998: 90).
É fulcral não interpretar o estado de excepção como algo à parte, para o qual se tem que atravessar uma fronteira espacial e temporal, ou que apenas poderá ser decretado por diploma governamental. Em primeiro lugar, a difusibilidade dos poderes soberanos – fenómeno que veio retirar o monopólio exercido pelo Estado –, sejam eles económicos, políticos, leva a que a condição da pessoa seja igualmente diversa e até mesmo contraditória. Em segundo lugar, as disparidades das circunstâncias de vida em Mogadíscio e em Lisboa são ainda maiores do que as suas semelhanças, apresentando o estado de excepção níveis de transposição díspares. Porém, o estado de excepção tende a coincidir com a ordem normal, facto que tem originado, segundo Giorgio Agamben, uma destruição sem precedentes da cidadania política, a cuja libertação a democracia tinha dedicado todos os seus esforços (Agamben, 1998).