A segurança pública em São Paulo vive um momento tenso porque a ala mais dura chegou aos altos cargos. Por Ronan Gonçalves [*]

Falar em fim da ditadura é uma grande desconversa quando nos referimos aos amplos espaços de humilhação social que são as periferias sangradas. Trata-se de espaços de exclusão, humilhação e tortura estética. Onde não há teatro, não há museu, não há centro cultural, não há empregos, universidades, cursos técnicos, escolas de qualidade, há muita polícia. Problemas escolares, atrito entre meninos, questões conjugais, discussões entre moradores, tudo se resolve com choques, chutes, cacetadas, socos, humilhações, espancamentos, tiros. As periferias são diuturnamente assombradas por policiais sádicos, psicologicamente desestruturados, cheios de preconceitos, corruptos, com sonhos de ascensão e, derivado disso, muito ódio aos populares. Nos espaços de humilhação social predomina a lei do porrete. O regime do “obedece ou apanha” começou muito antes de 1964 e nunca acabou.

Embora isso, a palavra ditadura é sempre empregada para alguns fatos e não para outros. Criou-se um consenso, difundido pela mídia e pela própria esquerda, que tortura só é tortura quando as vítimas apresentam algum capital minimamente significativo: pode ser a beleza e o charme, o capital erótico; pode ser o conhecimento, o capital cultural; pode ser o dinheiro, o mais vulgar dos capitais. Se a vítima possui alguma formação, capital estético e estava sendo formada para ser alguém na vida então houve tortura, opressão. Se for pobre, baixa escolaridade, feia, faxineira, detonada pela vida, o caso não entra para as páginas políticas, vai para as páginas policiais.

A política de terror implantada pela polícia deriva da ideia de que os populares que habitam os espaços de humilhação social devem trabalhar e unicamente trabalhar. Nasceram somente para obedecer e servir (pense na faxineira que limpa a tua república). Todas as vezes que saem desse quadro passam imediatamente para a condição de suspeitos, principalmente os mais jovens. Não há nos espaços de humilhação social a liberdade de vivência que há nas universidades ou bairros requintados. Se alguém está bebendo, se quer dançar, ficar discutindo até altas horas, paquerar, falar de futebol e outras coisas, logo encontra o caminho das ameaças, da presença do medo, da tortura.

Para impor a lei do porrete há um vasto contingente policial. São 4,9 seguranças privados para cada agente do Estado [1]. O jovem que habita os espaços de humilhação social é tanto vítima do guarda do mercado quanto de outros. Há os guardas municipais e os variados policiais estaduais, que vão do PM da ronda escolar até o membro do grupo de extermínio oficial do governo paulista, a ROTA [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, um dos batalhões de elite da PM paulista]. Sim, além dos grupos de extermínio não oficiais, o Estado possui um grupo de extermínio próprio, as Rondas Ostensivas Tobias Aguiar.

Esse cenário de horror ficou ainda mais tenebroso depois que Antônio Ferreira Pinto tornou-se secretário de segurança pública do Estado de São Paulo. Corinthiano, apreciador de Chico Buarque e de restaurantes descolados, Antônio Ferreira Pinto é homem de carreira da Polícia Militar [2]. Formado pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco, foi tenente em Bauru, capitão em Ourinhos e assumiu a secretaria de administração penitenciária depois dos ataques do PCC [Primeiro Comando da Capital], em 2006. Sua gestão na secretaria de administração penitenciária significou um novo marco. Entendeu-se que a gestão da segurança deveria unificar numa única mão o controle das penitenciárias e o controle das ruas. Os ataques do PCC de 2006 demonstraram que problemas internos às penitenciárias poderiam trazer descontrole das ruas, do mesmo modo que algumas questões das ruas levam a consequências dentro das penitenciárias. Assim, colocar um nome de carreira da PM para controlar as penitenciárias unificaria o quadro e, desde então, se tem buscado uma gestão conjunta.

Antônio Ferreira Pinto é duplamente conhecido como um homem duro. Tal qual Capitão Nascimento, ele atua combatendo policiais e delegados corruptos ao mesmo tempo em que usa mais intensivamente da violência contra presos e bandidos. É conhecido por cooptar criminosos e infiltrá-los em quadrilhas, de modo que possa armar emboscadas. Como secretário de administração penitenciária sua gestão foi marcada por um endurecimento no trato com os presos. Como secretário de segurança pública, além de ter aumentado os homicídios cometidos por policiais, destaca-se o recurso às emboscadas, especificamente realizadas pela ROTA e das quais se somam mais de 15 mortos. Sob Antônio Ferreira Pinto, foi colocado no comando da ROTA o tenente-coronel Salvador Modesto Madia [3], um dos principais nomes do massacre do Carandiru. Ele estava no grupo que subiu ao segundo andar do pavilhão e atirou, para matar, em 78 dos 111 detidos [4]. Recordando que a ROTA, embora tenha somente 820 policiais de um contingente com mais de 95 mil, responde por mais de 20% dos homicídios praticados pela polícia.

Num quadro em que os homens mais duros da corporação – respeitados pelos policiais e com um histórico de ações truculentas – foram alçados ao comando da segurança pública os milhares policiais que trabalham nas ruas ficaram mais confortáveis. Em meados de 2012 foram impostos toques de recolher em várias localidades de São Paulo e da grande São Paulo. Aumentaram as agressões gratuitas e as intimidações, aumentaram os homicídios. Num exemplo, um jovem foi espancado em Franco da Rocha porque um policial achou que ele riu dos agentes de segurança quando passava uma viatura.

Apesar disso nem todos os espaços são atingidos da mesma forma, a dose de medo imposta não é sempre a mesma, nem os castigos físicos. Embora os pobres sejam os mesmos em toda a grande São Paulo, as periferias sejam as mesmas, poucos atentam para o fato de que nem todas as localidades sejam atingidas com a mesma intensidade. Não conheço estudos nem nunca vi menção de matérias sobre o tema, mas em algumas localidades se desenvolve uma identidade comum, união e solidariedade entre os moradores de forma que se cria um escudo social. No conjunto de moradores do CDHU San Martin, perto de Barão Geraldo (Campinas), a possibilidade de que um jovem seja gratuitamente agredido por policiais é muito remota. Além de uma geografia que facilita a união entre moradores e construções que permitem a observação sobre as ruas, todas planas, há uma poderosa identidade coletiva que faz com que a agressão contra um seja sentida como agressão contra vários. Antes que se recorra às ouvidorias, às denúncias para os jornais e TVs, aos defensores públicos, é o escudo social que atua. Em alguns locais ele é forte e em outros, precarizado pela desunião entre os moradores, é fraco.

Por fim, o quadro atual em São Paulo mostra que é importante observar quem são as pessoas que ocupam os cargos, as secretarias. Muitas vezes tratamos de temas apenas genericamente sem atentar para o fato de que dadas condições estão diretamente ligadas à presença de dadas pessoas em dados cargos, melhor dizer, dados grupos. A segurança pública vive um momento tenso porque a ala mais dura chegou aos altos cargos. Somando, na cidade de São Paulo as sub-prefeituras foram entregues a coronéis militares. Se os homens de farda não estão no controle no governo federal, em vários cantos de várias cidades os policiais são sub-prefeitos, vereadores, acompanham políticos, protegem comerciantes, possuem suas empresas. Enfim, não é preciso criar milícias onde altos cargos são dados aos homens duros da polícia militar. É algo que precisa ser acompanhado com mais atenção.

Notas:
[1] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1153310-pais-tem-quase-5-segurancas-privados-para-cada-policial.shtml
[2] http://vejasp.abril.com.br/revista/edicao-2163/antonio-ferreira-pinto-secretario-seguranca-publica/
[3] Quando esse texto estava sendo escrito o comando da ROTA foi trocado por conta da alta dos homicídios. Ver: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1159934-alckmin-troca-comando-da-rota-apos-alta-da-violencia.shtml
[4] http://www.cartacapital.com.br/sociedade/do-massacre-no-carandiru-ao-comando-da-rota/

P.S.: Entre a data que este artigo foi escrito e o dia de sua publicação, um novo episódio veio confirmar o grau crítico a que se chegou: o jornalista André Camarante, da Folha de São Paulo, foi afastado preventivamente após produzir um série de reportagens sobre o ex-comandante da Rota, Paulo Telhada. Por estas razões, desde julho ele vinha sofrendo ameaças. Ver aqui.

[*] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP
de Marília.

6 COMENTÁRIOS

  1. 89.053 votos para vereador fazendo com que o Telhada seja o 5º mais votado no município de São Paulo.

  2. Que após essa “primavera sangrenta” em São Paulo não se escreva nem mais uma palavra sobre a “ausência do Estado” nas “comunidades carentes”…

  3. MC da Leste foi assassinado esta noite, 6 de julho de 2013, durante um show no CDHU San Martin. O show é na rua. Ele estava ameaçado de morte por PMs fazia tempo. Nesse ccaso, o escudo social não funcionou.

    O momento do tiro: http://www.youtube.com/watch?v=Uag7qeeTBWU

    No Brasil, há um sistemático assassinato de MCs. Já são vários mortos.

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