Contrariando a crença geral, um artista nunca está à frente de seu tempo, mas a maioria das pessoas está aquém do seu próprio. Edgard Varèse (1883-1965), compositor francês.

22 COMENTÁRIOS

  1. Tenho bastante certeza de que estou muito abaixo da média do conhecimento necessário para este nosso tempo, deste e de qualquer outro tempo. Fui ao Youtube para conhecer a música do Edgard Varèse. Não consegui entender nada do que escutava, e em alguns exemplos, o conjunto de “ruídos estridentes” fez-me mudar de canal de imediato.

    João Bernardo já disse aqui no Passa Palavra que considera o Varèse como o maior compositor do século XX, será que teria um pouco de paciência para nos descrever aqui o sentido da música de Varèse e assim, quem sabe, ajudar alguns leitores que como eu insistem em permanecer junto aos acordes do Beethoven no começo do século XIX?

  2. João Alberto,
    Você forneceu a perfeita ilustração da citação de Varèse, de que o artista está no seu tempo, mas a maior parte do público está àquem do seu tempo. Você mesmo confessa que insiste em permanecer no começo do século XIX. Então?
    Note que os que gostam de Varèse também ouvem Beethoven, e até ouvem Schütz e mesmo Leoninus e Perotinus. Só que os ouvem com outros ouvidos, com os ouvidos de quem ouve Varèse. Muitos contemporâneos de Beethoven também achavam que o que ele compunha era barulho e estridências. Aqueles que hoje ouvem Beethoven o que procuram nele? Um refúgio no passado, ou alguém que fez a ruptura do seu tempo? Na minha opinião de leigo, só valem dois intérpretes e meio para o Chopin: Samson François e Maurizio Pollini, e Rubinstein para os Nocturnos, por isso o conto só por metade. E isto porque para eles Chopin não é água com açúcar e tocam-no na novidade do que ele criou, Pollini porque muito se interessa igualmente pela música contemporânea e Samson François porque interpretou os silêncios de Chopin através dos improvisos do jazz. Há uma interessante entrevista dele neste sentido. Oscar Wilde disse tudo isto numa linha e meia, mas infelizmente eu não sou Oscar Wilde.
    Já agora, a propósito de ruídos estridentes, acrescento que este também é para mim um grande momento de música:
    http://www.youtube.com/watch?v=kmIRgZbzoJ8

  3. Grato pela referência que não conhecia.

    Mas os sensacionais “ruídos estridentes” que o João Bernardo indica fazem-se presentes temporalmente às vidas e ouvidos de todos nós, há ali uma universalidade de sons, vozes e imagens que dão àquela música e a todos que a cantam uma universalidade da qual nenhum de nós se esquivará de apreciar, porque entre palavras, batidas, gritos, há um eixo que mantém a música em sentido cumulativo de modo a que se perceba como uma peça única.

    O propósito não é o da comparação estética, apenas a comparação de apreensão do sentido e conjunto, veja neste exemplo do Varèse – Déserts, como a quebra do conjunto é estridente passando o que seria um conjunto formal totalizado, afirmado em recortes de segundos que agradam ou não agradam ouvidos toscamente lineares como os meus; e ainda assim há uma orquestra, um maestro em gestos quase idênticos a qualquer outro regendo um Beethoven… mas há mais, há cenas de filme numa tela atrás dos músicos, cenas em tela acompanhadas de “cenas” numa peça de nome único, mas sem um sentido único, linear. Uma música que poderia ser partida em pastilhas, conjuntos de segundos de sons sobrepostos uns aos outros. Perdão pela ignorância, mas foi assim que percebi o Varèse na peça que aqui fiz referência.
    http://www.youtube.com/watch?v=lBS77JGlgFA&feature=related

  4. A peça que mais aprecio do Varése é o Poème électronique: http://www.youtube.com/watch?v=D7AIiTeKBUc&feature=related. Igualmente interessantes são o Stockhausen e o português Emmanuel Nunes. Todavia, do pouco que conheço parece-me que o Varèse é um compositor muito mais centrado na produção de sons disruptores do que na produção de “atmosferas sónicas” (por exemplo, o último Stockhausen que é o que conheço: http://www.youtube.com/watch?v=7rGbHiJnk4I&feature=related). O Emmanuel Nunes entusiasma-me bastante. O “Lichtung” (aqui a primeira de quatro partes: http://www.youtube.com/watch?v=x9p1gja6Uqg) é muito bom, é como que uma desconstrução da orquestra e dos seus ritmos. Acho que vale a pena.

    Sobre o Beethoven, Chopin e seus intérpretes. Em Portugal e na Europa a Maria João Pires é muito consagrada mas não gosto muito da abordagem dela aos Nocturnos do Chopin. Acredito que tecnicamente seja irrepreensível mas em termos melódicos parece soar sempre a algo delicodoce. As sonatas para piano do Beethoven já me parecem bastante melhor abordadas e com outra sensibilidade. Mas isto são só palpites “auditivos” de um “adepto” musical.

  5. Em certos países, Brasil e Portugal incluídos, existem aldeias ou partes de cidades que são deliberadamente mantidas na sua forma arcaica, o governo proibe que se ergam construções novas e se alterem as fachadas existentes. Agora imaginemos que os transportes modernos são proibidos de entrar nessas áreas, que é proibida a electricidade e os esgotos e a água canalizada e que todos devem andar vestidos consoante a moda de há dois séculos atrás. E imaginemos alguém nascido e criado nesse ambiente. O que sucederia se esta pessoa fosse subitamente transplantada para uma grande cidade moderna? É este o problema colocado por Varèse. Há pessoas hoje, e muitas, talvez a maior parte, que trabalham e vivem e comem e dormem no ambiente moderno, mas, no que respeita à estética, têm a cabeça dentro de um tempo congelado. Essas pessoas ficam internamente desfiguradas. No mesmo sentido em que falamos de falsa consciência podemos também falar de falsa estética. Trata-se de uma percepção estética que não atinge o objectivo e que, por isto mesmo, deixa na vítima um enorme espaço por preencher, mas que nos serve a nós, que desfrutamos de uma estética adequada, para assinalar os vazios que nos cumpre preencher. É esta percepção que, em cada época, marca os rumos da acção criativa. A falsa estética é um parasitismo que pretende sugar um passado que já não existe. A criação estética é a criação de um novo olhar e de um novo ouvir. Não se trata de criar novos objectos estéticos, porque esses já estão criados pela sociedade em que vivemos. Trata-se de criar uma nova percepção, que nos permita ver e escutar o que está diante de nós.

  6. Acabei de escutar oito minutos de nada (o “poema” eletrônico do Varèse sugerido acima pelo João Aguiar). Do alto da minha insofismável ignorância estética e sentado em meio aos ciprestes da aldeia em que vivo, chego à conclusão que não posso perceber como música os ruídos esganiçados das “peças” do senhor Varèse. Curiosamente, ao ler a entusiasmada defesa feita pelo João Bernardo de “uma nova percepção que nos permita ver e escutar o que está diante de nós”, lembrei-me de imediato dos propósitos do Marinetti com os seus manifestos futuristas… “Ora, João Alberto, que besteira!!”

    A frase do Varèse citada no Passa Palavra é arrogante e elitista, é presunçosa. O seu produto estético – a sua música – é o máximo da expressão alienada da “falsa consciência” e da “falsa estética” urbana, que o leitor ouça as “músicas” citadas neste diálogo e tire as suas conclusões “internamente desfiguradas”.

    Certa vez um “artista” muito moderno e muito urbano aqui do Brasil, mas com uma enorme aldeia internalizada na cabeça escreveu e cantou: “(…) a margarina, a piscina…” e a cidade inteira bateu palmas chamando aquilo de musica e poesia…

    Que todas as “aldeias” do mundo em 2012 continuem a escutar “desfiguradamente” a grandeza e o sentido de qualquer música de Beethoven.

  7. Os leitores menos nervosos, que se dêem ao trabalho de ler o que realmente está escrito, terão porventura entendido que o problema não consiste em ouvir Beethoven ou qualquer outro compositor do passado. O problema consiste em saber com que ouvidos se ouvem esses compositores. Serão eles ouvidos como compositores de outro tempo, um refúgio? Ou serão ouvidos como artistas que na sua época procederam a uma ruptura estética, para que nós possamos hoje fazer outras? É por isso que para qualquer melómano a questão da interpretação é pelo menos tão importante como a da obra. Há interpretações que projectam obras para o passado e outras que mostram que a obra é capaz de suportar a problemática contemporânea e que, por isso, é uma obra perene. Entre melómanos, quando alguém diz que gosta muito de uma dada sonata, por exemplo, a pergunta obrigatória é: por quem?
    Eu ouvi Edgard Varèse pela primeira vez aos quinze ou dezasseis anos. Tinha comprado um disco dele numa das raras, se não única, colecções de música erudita contemporânea que então existia, editada pela Phillips. Aliás, a integralidade da obra de Varèse cabe praticamente num só disco. E se desde então o considero — continuo a considerar — o mais importante compositor do século vinte, é porque a linhagem que ele abriu me parece mais promissora do que a aberta por Schöneberg. Nas obras de Varèse temos não só novas estruturas musicais mas novos sons, e sem isso não se teriam aberto as possibilidades da música electrónica. Considerar Varèse como o mais importante compositor do século é a forma de recusar o título a Schöneberg.
    Mas ainda bem que aquelas duas linhagens coexistem, em parte em confronto, em parte sobrepondo-se e potencializando-se. Para alguém como eu, concentrado na visão, é desesperador ver o estado a que chegaram as artes plásticas nas últimas décadas, desde que o conceptualismo triunfou sobre o minimalismo. Ao mesmo tempo, porém, é animador ver a riqueza da música erudita dos nossos dias, com tantas correntes e tendências simultâneas e tantos compositores e intérpretes de altíssimo nível. E nisso, tanto enquanto compositor como enquanto maestro como enquanto organizador, o papel de destaque cabe a Pierre Boulez. Apesar de Boulez se situar na continuidade do dodecafonismo e do serialismo e não na de Varèse, uma das passagens musicais que mais frequentemente ecoa na minha cabeça é de Le Marteau sans Maître, quando a contralto começa a cantar «La roulotte rouge». Gostaria de terminar com um link para essa passagem, mas a versão que existe no Youtube é francamente má, por isso termino com uma obra de Varèse em que ele atingiu uma grande intensidade lírica, a Densidade 21,5, para flauta solo. Nenhuma das versões disponíveis no Youtube me agrada plenamente, mas das que ouvi prefiro a de Lawrence Beauregard:
    http://www.youtube.com/watch?v=ULGrCzI5JKg

  8. Lembro de no final de um artigo bastante desesperançoso um dos debatedores aqui presentes afirmar que as músicas ouvidas pelos jovens hoje anuncia um horror de revoltas sem racionalidade futuras.

    Será que o autor ja tinha conhecimento de uma nova tonalidade de rap que pipoca nos E.U.A e, como sempre, não tardará a chegar por aqui? Segue:

    http://www.youtube.com/watch?v=ayBzpfqIO4w&feature=relmfu

  9. Concordo plenamente com duas ideias fundamentais veiculadas pelo João Bernardo no seu último comentário: 1) «o problema não consiste em ouvir Beethoven ou qualquer outro compositor do passado». Ora, hoje existem compositores bem fraquinhos e que podem “soar” mais modernos mas que, vistos à luz do que o João mencionou, são bem menos interessantes do que as rupturas que outros protagonizaram no passado. Contudo, mesmo as rupturas do passado podem ser diluídas por intérpretes apenas interessados em expressar a sua mundividência suspirando por um passado delicodoce. Eu que pouco percebo do assunto, é o que sinto ao ouvir a Maria João Pires tocar os nocturnos do Chopin. 2) «é desesperador ver o estado a que chegaram as artes plásticas nas últimas décadas, desde que o conceptualismo triunfou sobre o minimalismo». Isso é inteiramente verdade e esse é um aspecto que tenho abordado e que espero poder concluir um escrito em breve sobre o assunto. Todavia, não esquecer que o minimalismo chegou a um certo impasse fruto da apropriação que o design operou. Ou seja, o minimalismo ao mesmo tempo que foi uma das correntes artísticas mais interessantes, foi também uma das que, não por culpa própria, mais novos produtos, linhas e tendências foram captadas pelo design dos últimos 30-40 anos.

  10. Seria bom que as pessoas que criticam o que eu escrevo lessem o que eu escrevo. A passagem a que alude o meu crítico anónimo, que assina como Menino do Morro, é o final do artigo «Epílogo e Prefácio (um testemunho presencial)», publicado na revista História Social, da Unicamp, disponível aqui:
    http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/285/258
    O meu crítico anónimo diz que se trata de «um artigo bastante desesperançoso» e acrescenta que, na minha opinião, «as músicas ouvidas pelos jovens hoje anuncia[m] um horror de revoltas sem racionalidade futuras». É inteiramente falso ou, mais exactamente, falsificado. Os leitores confiram o que eu escrevi no final desse artigo:
    «Lutámos numa época em que existiam ainda, no Ocidente, instituições mediadoras dos conflitos e em que a democracia representativa gozava de um prestígio mensurável nas taxas de participação eleitoral, e estes dois factores contribuíram para a nossa derrota. Agora, porém, as classes dominantes apresentam-se desprovidas de biombos institucionais, que são a mais eficaz das protecções. E quem vão enfrentar? Aqueles que se têm movido nos últimos anos contra o capitalismo não são operários qualificados mas trabalhadores precários, não são estudantes letrados mas analfabetos funcionais que incluem a cultura no mesmo desprezo que sentem por tudo o resto, jovens dos subúrbios — dos subúrbios das cidades e dos subúrbios do mundo — enquadrados por mais ninguém senão por eles próprios e capazes do furor destrutivo necessário para abalar as instituições em que vivem. Será este o perfil da próxima maré de lutas sociais. A violência sem precedentes de um confronto generalizado desprovido de mediações. […] Chamaram violência a esta candura. E o quê, agora? O que anunciam as músicas que dão voz às revoltas urbanas de hoje?».
    Em vez de desesperançado, pelo contrário, esse artigo, que eu escrevi como um testamento político, indica qual é hoje a minha única esperança. E em momento nenhum, nesse artigo como em qualquer outro, eu classifiquei tais revoltas como desprovidas de racionalidade. Aliás, escrevi o Economia dos Conflitos Sociais precisamente para mostrar, entre outras coisas, a racionalidade desse tipo de conflitos.
    Acrescento o seguinte. Poucos anos depois de ter começado a ouvir Edgard Varèse eu fui, além de preso político, preso comum, por duas vezes. Habituado até então aos meus camaradas da prisão política, aprendi muito no pouco tempo em que fui preso comum, aprendi outro mundo e outros valores, que de então em diante nunca esqueci e sempre levei em conta. Ora, o meu crítico anónimo, apesar da sua propensão a pregar a torto e a direito sermões de moral libertária, já teve o emprego de carcereiro, guarda prisional. Entre nós há algo em comum, ambos conhecemos a prisão. Só que ele a conhece do lado de fora das grades, e eu do lado de dentro.

  11. Não estava fazendo críticas ao teu artigo. Quando usei a palavra “desesperançoso” não me referia ao artigo em sí, mas a realidade que ele narrava. E quanto ao caráter irracional, o leitor tem a liberdade de interpretação.

    Sim, trabalhei como agente penitenciário. O autor, estrategicamente, só não citou que o presente trabalhador primeiro conheceu a penitenciária como alfabetizador de presos e que, depois, como agente penitenciário, foi exonerado pelo atual secretário de segurança pública, o mesmo que mandou a polícia ficar livre para matar. Isso num processo de perseguiçao que culminou com a exoneração. E fui exonerado injustamente porque me recusava a participar das torturas, dos espancamentos, a puxar o saco de diretores, por ter participado de greve, ter ficado do lado de funcionário que foi agredido por diretor, não roubar pertences de presos, tratar bem os familiares.

    Tanto é que nunca fui agredido por nenhum recluso, nem fui pego durante a rebelião, e fui cumprimentado por muitos no dia em que me despedí. Da mesma forma, ando madrugada a fora pelas periferias várias sem medo algum de fulano ou sicrano.

    Eu só queria chamar a atenção para o novo tipo de rap que está sendo produzido. É uma pena que o autor tenha se sentido atacado. Humildemente, eu me desculpo por não ter conseguido me expressar da forma correta.

  12. “Será este o perfil da próxima maré de lutas sociais. A violência sem precedentes de um confronto generalizado desprovido de mediações. Terríveis, nós, os vencidos dos anos de 1970? Ouçam no YouTube as músicas que nos serviam de liturgia. Em França eram Brassens e Léo Ferré quem reverentemente escutávamos. Ouçam o canto de Nina Simone, cru
    pressentimento do destino da luta dos negros nos Estados Unidos, mas elevado a um plano onde o som rasgava o véu de outro horizonte. Ouçam e vejam Bob Dylan cantando Blowin’ in the wind com Joan Baez, os Freedom Singers e Peter, Paul & Mary no festival de Newport em 1963. Era um dos nossos hinos, que todos conheciam, de um e outro lado do oceano. Chamaram violência a esta candura. E o quê, agora? O que anunciam as
    músicas que dão voz às revoltas urbanas de hoje?”

  13. João Bernardo, agora percebo melhor o sentido que dás ao Varèse, e a música citada, na versão do Beauregard (desconheço qualquer outra versão, rs), é muito bonita, há nela uma flauta e há sentido sonoro promovido por um instrumento musical (talvez esteja aí o limite da minha ignorância – porque creio que os artefatos que produzem música devem ser feitos para tal), mesmo que não o possa definir, há ali música, ao contrário dos “guinchos” eletrônicos das “músicas” anteriormente citadas.

    Além de mim, certamente que muitos outros leitores agora sabem identificar o sentido de Varèse para a música contemporânea, ao menos o sentido que lhe dás como especialista na questão. Esse foi o propósito da minha indagação inicial, mas, insisto, a frase citada continua a parecer-me arrogante e presunçosa.

    Gosto do Beethoven pela grandeza do conjunto, o impacto daqueles sons na minha cachola causam-me um efeito de catarse, apenas isso, e não importa em que versão seja porque mesmo a pior delas será sempre grandiosa.

  14. João Alberto e outros leitores com paciência,
    Já que o Densidade 21,5 não lhe chocou os ouvidos, peço-lhe que faça uma experiência. Compare a versão do Larry Beauregard, que indiquei anteriormente, com esta de Laura Pou:
    http://www.youtube.com/watch?v=cCFk0f8szes
    Enquanto Beauregard destaca a modernidade da obra, o seu carácter de ruptura, esta moça executa-a dentro de um universo musical mais tradicional. É que não há obras musicais que não sejam interpretações de obras. É certo que um livro, um quadro, uma escultura produzem impressões diferentes em pessoas diferentes, cada um as concebe à sua maneira. Mas com a música é mais do que isto, porque — para quem não saiba ler partituras — entre a obra e o ouvinte há obrigatoriamente a mediação do intérprete. Voltemos a Beethoven. Quais são as verdadeiras sonatas de Beethoven para violino e piano? As de Oistrakh com Lev Oborin, Francescati com Casadesus, Menuhin com Kempf? Todas as obras de arte são um espelho, onde o autor se reflectiu e onde cada um de nós pode reflectir-se. O problema é que na música nós inevitavelmente nos reflectimos sobre um reflexo. Isto com a condição de sabermos olhar para o espelho e para o reflexo, e a recusa que há da música erudita contemporânea não é maior do que aquela que há das artes plásticas contemporâneas. João Alberto classifica a citação de Varèse de «arrogante», «elitista» e «presunçosa». Ora, arrogante para mim é uma grande qualidade. Não creio que a citação seja elitista, ela é realista, como demonstra a própria reacção do João Alberto perante a música de Varèse. E presunçosa, nunca. Basta ler qualquer coisa escrita hoje sobre música do século vinte para ver o lugar atribuído a Varèse. Seria o mesmo que chamar presunçoso a Max Planck — e não me lembrei deste nome por acaso, mas porque ambos, cada um no seu domínio, desenvolveram a noção de descontinuidade. Mas há uma coisa que está errada naquela citação, é chamar a Varèse «compositor francês». Nascido em França, sim. Francês, nunca, porque o público francês o renegou com o mesmo afinco com que João Alberto o recusa agora. Há bastantes anos ouvi em France Musique a gravação de um concerto realizado em Paris com uma das obras de Varèse, não me recordo qual, talvez Déserts, creio que na década de 1950. Aos primeiros minutos começam as vaias e o bater dos sapatos, depois os gritos, os impropérios, até que a orquestra literalmente se dissolve porque os músicos nem conseguem escutar-se com o clamor indignado dos espectadores. Compositor norte-americano, talvez, já que ele foi residir para os Estados Unidos. Nem isso, porque um dos mais consagrados maestros daquela época, Leopold Stokowski, lhe dirigiu várias obras, na década de 1920, sem que isso despertasse então o interesse do público. Varèse é compositor sem pátria, compositor mundial, e sem tempo também, abrindo os ouvidos para o presente e ensinando a escutar de outro modo o passado.

  15. Grato, João Bernardo, pela paciência dos seus comentários, muito instrutivos e com a ajuda dos links do youtube tornaram-se uma verdadeira aula sobre teoria e estética musical. Creio que um ou vários artigos seus sobre o assunto com ilustrações assim seria uma excepcional colaboração aqui no Passa Palavra, teríamos muito a aprender com tudo isso.

    Mas veja então como esses franceses (que se recusaram ao Varèse) são tão provincianos, rs.

    E perdoe-me, João Bernardo, pelas palavras em galhofa que escrevo a seguir, perdoe-me a ignorância frente à obra do Varèse, mas…

    Seria então uma “descontinuidade” musical? Como algo “descontínuo” pode ser música? Como uma sobreposição de sons experimentais (uns poucos segundos de “ruídos” desconexos) reunidos sem a lógica de uma seriação poderia afirmar-se como música? Que mundo estaria ali afirmado? Se eu juntasse sons em meio a uma parafernália eletrônica, sobrepondo umas imagens numa tela de fundo, juntasse uns músicos com alguns dos instrumentos convencionais de uma orquestra e se a certa altura passasse a dar movimento a todo esse conjunto, apareceriam uns sons, uns barulhos, um assobio aqui, um reco-reco ali… mas, ainda assim, ao final dessa minha obra eu sentenciaria: esta é a minha música, se vocês não a podem “entender” ou sequer “escutar” é porque vocês estão aquém do “meu” tempo… É bastante certo que da platéia uma criança se levantaria e gritaria: “o rei está nu!!”

    Ouvi a música rap indicada acima, e confesso: se recuso os guinchos estridentes do Varèse, o rap deixou-me perplexo ante a gritaria e a profusão da recusa retórica nos palavrões ensandecidos, logo imaginei uma cena em uma das nossas ruas, de uma periferia qualquer, entupida de adolescentes quase a um passo das “camisas marrons” das antigas SA’s… a música rap citada é de um niilismo parafascista!

    Beethoven neles!!!

  16. João Alberto,
    A sua recusa da descontinuidade em música tem exactamente o mesmo valor de alguém que recuse as geometrias não euclidianas e com isso a física moderna. Afinal, você recusa toda a evolução musical desde Chopin, Liszt e Wagner em diante, até aos nossos dias. São demasiados reis nus. E quem lhe garante a si que isso que você tem é roupa?

  17. João Bernardo,
    não me atrevo a recusar evolução musical alguma, simplesmente porque não posso recusar o que não escuto, o que não conheço.
    Mas, se tenho estes senhores aqui (link abaixo) para me vestirem os nervos, para que precisaria eu da música de Varèse?
    http://www.youtube.com/watch?v=8Q0ExemVfiM&feature=related

    Mas digo-lhe com toda a minha sinceridade, muito aprenderia se pudesse ler aqui no Passa Palavra uma série de textos seus sobre o sentido estético da descontinuidade em música, eu e muitas centenas de outros leitores.
    Fica um abraço.

  18. João Valente Aguiar,
    Uma pequena observação tardia. Dizes que «o minimalismo, ao mesmo tempo que foi uma das correntes artísticas mais interessantes, foi também uma das que […] mais novos produtos, linhas e tendências foram captadas pelo design dos últimos 30-40 anos». Mas nota que na tradição funcionalista o design, por um lado, é considerado como a própria realização da arte no quotidiano e, por outro, é considerado o contrário da moda. Procurava-se com o design chegar a uma forma que, pela sua depuração e funcionalidade, fosse insuperável, e os exemplos habituais são o relógio de pulso e a bicicleta. Era isto, para os funcionalistas, a busca do clássico. É certo que o minimalismo chegou a um tal ponto de realização do seu programa que deixou de evoluir e pareceu condenado à esterilidade. Precisava de se reinventar. Mas os minimalistas que o conseguiram, como Frank Stella, a partir do momento em que começaram a criar outra coisa foram postos de lado nos museus e nas galerias. Outro dos caminhos de recriação do minimalismo foi mediante a passagem do neon ao vídeo. Um dos artistas chineses contemporâneos que mais caro vende, desses vanguardistas da moda — não posso dizer agora o nome porque estou longe dos meus livros — declarou em entrevistas que as obras de cada artista funcionam como um logotipo e que, se o público não as identifica de imediato, elas perdem o valor comercial. Quem vai querer pagar milhares ou milhões por uma obra que o público não reconhece à primeira vista como sendo do famoso fulano de tal? E assim, contrariamente ao que se podia esperar, a moda funciona aqui como uma pressão no sentido da rotina.

  19. Por que será que a maioria fica aquém de seu tempo e somente uma pequena minoria é capaz de estar atualizada? Trata-se de uma diferença na formação, de terem vivências distintas ou é algum tipo de superioridade da pessoa, natural?

  20. Edvan,
    Eu não sou o Edgard Varèse, infelizmente, mas diria que uma grande parte das pessoas prefere não ter uma consciência completa do mundo em que vive, por isso usa a arte como refúgio. Ou seja, escolhe um tipo de arte que lhe possa servir de protecção relativamente à contemporaneidade, que lhe possa servir para esquecer, para se embalar. Por isso eu falei da necessidade de escutar um músico de outra época com ouvidos formados pela música contemporânea. Não se trata aqui da obra, mas da atitude do público perante a obra. O mesmo se passa na política; há muita gente que prefere embalar-se com hipocrisias e falsas promessas e proteger-se da luz com óculos cor-de-rosa. Por que motivo alguns não o fazem? A existência de vanguardas é um facto real, o que não dá direito a essas vanguardas de se converterem em elites. O mais perverso de tudo, na minha opinião, é quando as pessoas de gosto retrógrado pretendem justificar-se acusando os artistas inovadores de serem elitistas. Não encontro nada de pior do que essas justificações.

  21. INCOMPREENSÍVEIS PARA AS MASSAS

    Entre escritor
    e leitor
    posta-se o intermediário,
    e o gosto
    do intermediário
    é bastante intermédio.
    Medíocre
    mesnada
    de medianeiros médios
    pulula
    na crítica
    e nos hebdomadários.
    Aonde
    galopando
    chega teu pensamento,
    um deles
    considera tudo
    sonolento:
    – Sou homem
    de outra têmpera! Perdão,
    lembra-me agora
    um verso
    de Nadson…
    O operário
    Não tolera
    linhas breves.
    E com tal
    mediador
    ainda se entende Assiéiev
    Sinais de pontuação?
    São marcas de nascença!
    O senhor
    corta os versos
    toma muitas licenças.
    Továrich Maiacóvski,
    porque não escreve iambos?
    Vinte copeques
    por linha
    eu lhe garanto, a mais.
    E narra
    não sei quantas
    lendas medievais,
    e fala quatro horas
    longas como anos.
    O mestre lamentável
    repete
    um só refrão:
    – Camponês
    e operário
    não vos compreenderão.
    O peso da consciência
    pulveriza
    o autor.
    Mas voltemos agora
    ao conspícuo censor:
    Campones só viu
    há tempo
    antes da guerra,
    na datcha,
    ao comprar
    mocotós de vitela.
    Operários?
    Viu menos.
    Deu com dois
    uma vez
    por ocasião da cheia,
    dois pontos
    numa ponte
    contemplando o terreno,
    vendo a água subir
    e a fusão das geleiras.
    Em muitos milhões
    para servir de lastro
    colheu dois exemplares
    o nosso criticastro.
    Isto não lhe faz mossa –
    é tudo a mesma massa…
    Gente – de carne e osso!!
    E à hora do chá
    expende
    sua sentença:- A classe
    operária?
    Conheço-a como a palma!
    Por trás
    do seu
    silêncio,
    posso ler-lhe na alma –
    Nem dor
    nem decadência.
    Que autores
    então
    há de ler essa classe?
    Só Gógol,
    só os clássicos.
    Camponeses?
    Também.
    O quadro não se altera.
    Lembra-me e agora –
    a datcha, a primavera…
    Este palrar
    de literatos
    muitas vezes passa
    entre nós
    por convívio com a massa.
    E impige
    modelos
    pré-revolucionários
    da arte do pincel,
    do cinzel,
    do vocábulo.
    E para a massa
    flutuam
    dádivas de letrados –
    lírios,
    delírios,
    trinos dulcificados.
    Aos pávidos
    poetas
    aqui vai meu aparte:
    Chega
    de chuchotar
    versos para os pobres.
    A classe condutora,
    também ela pode
    compreender a arte.
    Logo:
    que se eleve
    a cultura do povo!
    Uma só,
    para
    todos.
    O livro bom
    é claro
    e necessário
    a vós,
    a mim,
    ao camponêse ao operário.

    MAIAKÓVSKI

    O poema pareceu cair bem, rs.

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