Por Passa Palavra

Ao iniciar um debate sobre as lutas sociais, em geral assistimos ao despontar de uma pluralidade de perspectivas teóricas e de modelos a serem seguidos. No entanto, esquece-se, ou então nos fazem esquecer, que estas lutas estão inseridas em uma realidade. São frutos de uma prática cotidiana e, por este motivo, são sujeitas aos conflitos e contradições que este mundo concreto lhes determina. Ocorre que este “esquecimento” muitas vezes conduz a uma visão mítica das lutas ou mesmo das pessoas envolvidas. Confundem inúmeras vezes a realidade em que as pessoas estão inseridas com o que gostariam que fosse esta realidade; e assim, ao invés de fundamentarem as práticas neste concreto, as transferem para um mundo ideal, distanciado cada vez mais da possibilidade de reconhecimento dos reais problemas a serem enfrentados.

Foi refletindo sobre estas questões, sobre a percepção das dificuldades que os movimentos sociais têm em estabelecer uma base sólida sobre a qual se projetarem, que resolvemos expor neste texto a experiência que tivemos em uma ocupação urbana em uma cidade brasileira.

Esta ocupação é localizada em uma região periférica da cidade, limite entre a área urbana e a área rural, carente de qualquer infraestrutura básica. Em pouco tempo a área já estava repleta de barracas de lona preta, que abrigavam as famílias.

No entanto, logo no início esta ocupação enfrentou problemas referentes à organização da luta. Desde quando passamos a frequentar o local, juntamente com outras pessoas interessadas em apoiar a luta que se formava, percebemos estes problemas. Os moradores sempre que nos viam perguntavam: “quando o governo irá dar nossa casa?” Ao mesmo tempo, um grande número comparecia às reuniões semanais, mas somente naquelas chamadas por este grupo de apoio, pois eles nunca conseguiram fazer uma reunião sozinhos. Demonstravam um comportamento passivo frente à situação de precariedade em que se encontravam. Nas reuniões discutiam-se os problemas, algumas tarefas eram tiradas, no entanto, pouquíssimas coisas decididas nas reuniões eram concretizadas. Lá não existia um ambiente de colaboração e solidariedade e nos parecia que, embora o movimento tivesse um forte potencial, alguma coisa ‘travava’ a luta, impedia a construção destes laços.

Por exemplo, não conseguiram encontrar uma solução para a falta de energia elétrica e de água. Passaram um longo período de estiagem sem água, e nos questionavam se não conseguiríamos que um caminhão-pipa fosse até o local. Por não conseguir fazer com que as coisas caminhassem, começamos a estudar o histórico da região para tentar entender o que acontecia. Vimos que a maioria dos bairros ao redor havia se formado a partir de ocupações. No entanto, antes que se tornassem movimentos sociais consolidados, o governo concedia os lotes às famílias. Fora a inexperiência de luta de boa parte dos moradores, pensamos que isso poderia explicar esta passividade.

De certa forma, podemos considerar que o movimento manteve-se “ativo”, com reuniões semanais, visitas de comissões ao secretário municipal da Habitação, Ministério Público, entre outras coisas, quando ainda havia o risco da reintegração de posse. Mas quando a liminar foi suspensa, mesmo que sem garantias de que outra fosse expedida, as coisas começaram a piorar.

Primeiro, os problemas internos começaram a se acirrar. As drogas e o tráfico foram os primeiros a despontar. Um dos primeiros moradores a ocupar o terreno foi identificado inicialmente como liderança. Contudo, nesta nova conjuntura, recebemos relatos de que ele controlava a “boca” no local. Também começaram a ocorrer diversos roubos, incêndios e vendas de barracas. Muitos moradores saíam para trabalhar e, ao retornarem, não encontravam seus pertences ou o próprio lar.

Segundo, porque todo o apoio externo passou a se dedicar à campanha eleitoral. Mesmos aqueles que não defendiam a política partidária ficaram submersos na campanha pelo voto nulo. Se as reuniões só aconteciam quando este grupo convocava, elas deixaram de existir. Ao mesmo tempo, qualquer atividade de negociação com o poder público, que poderia garantir a suspensão definitiva da desocupação da área, foi interrompida. Ninguém fazia mais nada, nem no acampamento nem fora dele, até mesmo os advogados parecem ter se afastado da luta, e até onde sabemos, não podemos contar com auxílio jurídico algum.

Frente a esta situação, os moradores se sentiram abandonados e cobravam nossa presença. Nada mais correto. No entanto, somente um grupo muito pequeno preocupou-se com esta questão, e foi aí que pensamos que a única coisa que poderíamos e conseguiríamos fazer sozinhos era iniciar um grupo de estudos na ocupação, tanto para manter um vínculo semanal, quanto para tentar auxiliá-los a sair do “marasmo” em que se encontravam.

Neste novo trabalho, a ideia foi começar a trabalhar com a importância deles próprios se organizarem para conquistar as coisas que precisavam, sem esperar que alguém fosse resolver o problema para eles. Trabalhamos sobre a importância de uma assembleia e também formas de organização da mesma (questões práticas, desde escolha da pauta, prioridades de assuntos a serem discutidos, divisão de fala e tarefas, deliberações, ata, etc.). Fizemos alguns “exercícios práticos”, como a realização de uma “assembleia fictícia” e a distribuição de pequenas doações. Percebemos que eles conseguiram entender, refletir e colocar em prática muito do que trabalhamos, mas que muita coisa ainda está por fazer, pois ainda que tenham avançado, continuam sem conseguir realizar uma assembleia sozinhos. Mesmo porque, apesar de não reconhecerem mais a antiga “liderança”, o temem, já que é o “dono da boca” e, no limite, determina como as coisas devem funcionar na ocupação. Se ele não chamar a reunião, ninguém vai.

Mas agora, com o fim da campanha eleitoral, a tendência é que as pessoas que se afastaram deste trabalho voltem a frequentar o acampamento. Ainda não sabemos como as coisas se darão daqui para a frente, mesmo porque, depois de tanto tempo a conjuntura da ocupação mudou bastante e não sabemos se estão à par de tudo.

Também precisamos organizar nossos próximos passos, mas sempre nos fundamentando nesta realidade, nesta luta que aparentemente é mais interna que externa.

12 COMENTÁRIOS

  1. achei o texto demasiadamente vago! Quem é este grupo “de auxílio”, do qual faz parte o narrador? Um movimento social? Que relação tinha com os moradores? Como chegaram à essa ocupação? Quantas pessoas eram deste grupo e da ocupação em geral? Quais eram os setores que mobilizaram a campanha eleitoral? Quanto tempo durou o processo inteiro descrito?

  2. O texto é deliberadamente vago, por razões que facilmente entenderá qualquer leitor com experiência de militância prática em circunstâncias ameaçadas de repressão. Apesar disso, apresentamos reflexões que podem ser úteis para os militantes, pelo menos assim o esperamos.

  3. são reflexões importantes, mas creio que seriam mais úteis se trouxesse mais detalhes do relato, sem eles me parece que não se pode tirar muita coisa da experiência, as reflexões ficam sem muito lastro (com o devido perdão ao qualquer leitor com experiência de militância prática em circunstâncias).

  4. Impressiona-me a postura da esquerda, se nomeiam-se os agentes fala-se que estão enfraqeucendo os movimentos sociais e fazendo o jogo da direita; se não são nomeados diz-se que as reflexões ficam sem lastro. Assim é melhor não darmos um passo para fora de nossas casas.

  5. Intelectuais são engraçados… ante o “marasmo” a única coisa atitude de militancia pratica a tomar: “iniciar um grupo de estudos”. rrsrs
    Claro que é importante o que estão fazendo. Mas parece que falta um pouquinho de sangue proletário nas veias… ou de realidade concreta como o próprio texto denuncia. Os problemas enumerados no texto quanto à atitude passiva do povo é enfrentada diariamente por quem luta no movimento popular. São poucos os movimentos que tem hoje práticas educadoras permanentes e estratégias claras de luta. Quando tem são acusados de usar o povo como massa de manobra.

  6. Sem entrar no mérito do que corre na veia dos militantes, fiquei pensando se para Alex os problemas de passividade enfrentados cotidianamente são tão comuns que não merecem ser debatidos? Ou se apenas os movimentos podem fazê-lo, já que têm as estratégias claras de luta?

  7. Legume, se alguem relata algo e pretende desenvolver uma reflexão em cima do relato a qualidade da reflexão pode ser fantástica, mas se não houver conexão entre relato e reflexão a coisa fica sem força, não?
    Imagine Marx explicando a mais-valia sem fazer menção aos processos fabris existentes, sem falar sobre algodão, sem falar sobre história, ele não estaria errado, no entanto certamente ninguém o estaria lendo hoje em dia, seria apenas especulação.

    Oras, não é exatamente este blog que propõe uma crítica mordaz e corajosa? Não estou tentando fazer nada além disso ao apontar no estilo e na retórica do texto o que me parece falhar. Se não se aceitam críticas não sei por que abrir comentários ao final do texto. Um debatezinho não é o fim da esquerda.

  8. Karl Marx não comprometeu a segurança de ninguém ao citar os relatórios dos inspetores de fábrica. Mas foi sempre discreto a respeito dos relatórios confidenciais recebidos diretamente de informadores ativos nos locais. Este site tem como objetivo, entre outros, fazer uma “crítica mordaz e corajosa”. Mas não tem como objetivo comprometer a segurança de companheiros.

  9. Engraçado este Alex. Vê que o conteúdo do grupo de estudos é eminentemente prático, e ainda vem reclamar só porque deram-lhe o nome de grupo de “estudos”.

    Engraçado este Lucas. Está vendo que o bicho está pegando no lugar, que pessoas estão correndo risco de vida e ainda quer que todo mundo saia por aí de cara limpa.

    Muito engraçado, tudo isto. Menos para quem está lá na ponta, óbvio.

  10. eita, ninguém aqui falou em nomes, em “relatórios confidenciais”, vou apenas repetir os dados que me pareceram ficar faltando para que o leitor possa entender melhor de onde saem as reflexões:

    1)Quem é este grupo “de auxílio”, do qual faz parte o narrador? 2)Um movimento social? 3)Que relação tinha com os moradores? 4)Como chegaram à essa ocupação? 5)Quantas pessoas eram deste grupo e da ocupação em geral? 6)Quais eram os setores que mobilizaram a campanha eleitoral? 7)Quanto tempo durou o processo inteiro descrito?

    sobre os pontos:
    1) não precisamos de nomes, siglas nem nada, mas do que se trata o grupo “de auxílio”? É um partido, é uma tendência, uma associação de moradores, uma pastoral… O leitor não tem como saber isso e certamente faz uma diferença grande na reflexão apresentada.
    2) Pode ser respondido com sim ou não.
    3) Não fica claro no texto se os moradores já conheciam de antes essas pessoas, não fica claro para o leitor se são pessoas que já tinham vínculo orgânico ou se são vistos pelos moradores como “gente de fora”.
    4) Idem ao ponto 3.
    5) A respeito da agrupação talvez não seja tão necessário saber o tamanho, a pesar de minha curiosidade, mas o tamanho da ocupação é sim importante para a análise.
    6) Setores que mobilizam campanhas eleitorais são óbviamente públicas, nomeá-las seria entregar os companheiros? Não é importante para a esquerda conhecer como agem os diferentes grupos que a compõe?
    7) Explicar o tempo decorrido do começo ao fim do relato é importante para o leitor entender a dinâmica do processo e não consigo ver como isso expõe alguém.

    Como eu acredito que o intuito dos autores não é simplesmente utilizar um “causo” demasiado vago para dar uma sustentação forte para suas reflexões (caso contrário basta economizar as linhas gastas com o relato), vale a pena tentar melhorar o relato. Ou não? Não estou falando que é necessário expor os companheiros, mas será mesmo que é IMPOSSÍVEL dar mais informações, com o objetivo de levar o leitor a percorrer as reflexões melhor munido de suas bases empíricas?

    Acho mais honesto usar este post para dar minha opinião e ajudar a construir o conhecimento “da esquerda”, do que ficar rindo, como este Manolo, ou apenas impressionando-me, como Legume.

  11. Lucas,

    Infelizmente muitas das suas questões não poderão ser respondidas, pois estaríamos indicando algumas situações específicas que poderiam causar situações com problemas extremos, com riscos aos envolvidos.
    Mas, o mais importante, que gostaríamos que ficasse frisado com este texto, é que além das pressões normais sobre a ocupação (repressão policial, jurídica, etc), existe por parte do governo a prática de cooptação do movimento de ocupações, na busca por torna-lo passivo frente ao controle do Estado.
    Por outro lado, parte do grupo de apoio também sustentou uma metodologia de trabalho com os ocupados que manteve esta passividade. Podemos especular que isto esteja vinculado à forma como concebem a ação política, na busca pela instituição de hierarquias e lideranças.
    O fato é que a ocupação só passou a se movimentar quando uma parte reduzida do grupo resolveu ir lá e fazer, não para e não por, mas de forma a ir familiarizando as pessoas com os possíveis instrumentos de luta para que elas tomem o controle da situação. Algo que, como o próprio título diz, é penoso, de resultados lentos, mas muito mais sólidos.

  12. Lucas,

    qualquer dos dados que você pede é suficiente para identificar a situação a que este artigo se refere. Por isto achei engraçado. Parece mania de pesquisador esta precisão excessiva, nada mais.

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