Victor Serge foi exemplo de uma moral que era sinónimo de impiedosa lucidez. Por João Bernardo

A propósito do que observaste acerca da internet, do Facebook, do Google, lê esta passagem do meu Labirintos do Fascismo, não como ele foi publicado em papel pela Afrontamento mas tal como existe hoje no meu computador, visto que não parei de o remodelar e aumentar, o que aliás tem constituído a minha principal actividade nos últimos anos. Depois de leres, podes constatar que esse tipo de fichagem não nasceu com a informática. O percurso foi o inverso, e a informática é que permitiu dar uma dimensão colossal a algo que já existia antes como necessidade política das classes dominantes e como prática incipiente dos agentes da repressão.

O que muitos autores afirmam a respeito dos regimes totalitários aplica-se em grande parte dos casos às democracias. «Parece que a Okhrana, que precedeu a GPU na época do czarismo, teria inventado um novo sistema de classificação», explicou Hannah Arendt. «Cada suspeito figurava num grande mapa, no centro do qual se destacava o seu nome, rodeado de um círculo vermelho; os seus amigos políticos eram designados por círculos vermelhos menores, e as pessoas com quem tinha contactos de carácter não político eram designadas por círculos verdes; círculos castanhos indicavam os elementos próximos dos amigos do suspeito, mas que este não conhecia directamente; as ligações entre, por um lado, os amigos do suspeito, tanto políticos como não-políticos, e, por outro lado, os amigos dos seus amigos eram representadas por linhas unindo os círculos respectivos. É evidente que o único limite deste método consiste na dimensão dos mapas e, teoricamente, uma folha gigantesca poderia mostrar as relações, e a ligação entre relações, de toda a população. E é precisamente este o objectivo utópico da polícia secreta totalitária» [1]. É precisamente esta também a meta — não ideal, mas muito real — da vigilância informatizada. A fase transitória foi ocupada pelo sistema de cartões perfurados que a IBM criou e desenvolveu, e sem o qual as autoridades do Terceiro Reich não teriam conseguido proceder ao cruzamento metódico de informações exigido pela execução da sua política racial [2]. Com a experiência adquirida no processamento de informações cruzadas, a IBM encontrava-se na posição ideal para dominar o desenvolvimento dos computadores. A difusão desta nova tecnologia, a generalização dos programas de fichagem electrónica e a possibilidade de estabelecer com eles todo o tipo de relações democratizaram, afinal, o acesso ao totalitarismo. Será isto a democracia?

É frequente que aquela informação sobre o mapeamento prosseguido pela Okhrana remeta para o livro de Hannah Arendt, mas, como eu indico em nota, ela baseou-se numa obra de Victor Serge. Ora, Arendt é inócua, por isso estimada, e Serge deveria servir de lição, por isso é esquecido. A minha decisão de abandonar não a escrita, mas a publicação do que escrevo, deixa-me por vezes nostálgico, e eu havia prometido a um amigo de Minas que faria para o Passa Palavra um artigo sobre Victor Serge, que nunca escrevi e, portanto, nunca escreverei. Até já tinha pensado na imagem de destaque, o Cristo morto, de Mantegna, porque quando Serge morreu de um ataque cardíaco, num taxi, no exílio mexicano, ao estenderem-no numa maca viram que as solas dos sapatos estavam furadas. Nem para remendar o calçado ele tinha dinheiro. Pouco tempo antes ele havia dito a Natalia Sedova, a viúva de Trostsky, também refugiada no México: «Nós dois somos os últimos sobreviventes». E eram. Agora ninguém sabe isso, já não sobrevivem, e aquelas informações que se devem a Serge continuam a ser atribuídas a Arendt.

Serge pôde conhecer e descrever o sistema de mapeamento da Okhrana porque foi um dos muitos anarquistas que os governos de certos países tiraram das cadeias, onde ocupavam espaço e continuavam a ser perigosos, e despejaram na Rússia soviética, onde ocorrera uma revolução que as polícias mal sabiam de que cor era e supunham que seria anarquista ou coisa que o valha. O que podia Lenin fazer senão aceitar essa gente enviada do estrangeiro, já que seria escandaloso fuzilá-los ali à chegada ou colocá-los na cadeia junto com os correligionários russos? E assim, enquanto alguns, como Alexander Berkman e Emma Goldman, colaboravam com os primeiros esboços da Internacional Comunista ou percorriam a Rússia durante a guerra civil, deixando-nos relatos que deviam ser imperecíveis se o comum dos militantes não lesse apenas o livro de John Reed — isto os que ainda lêem, não sei quantos serão — outros anarquistas pensaram que numa situação reduzida a dois lados, o dos czaristas e o dos vermelhos, a única alternativa seria entrarem para o partido bolchevista, onde tencionavam prosseguir a prática libertária que sempre fora a sua. O que lhes sucedeu é fácil imaginar, e aqueles que não aceitaram as funções de executores da polícia política, James Bonds do comunismo soviético, depressa procederam ao estudo comparativo das cadeias da ditadura do proletariado com as cadeias da ditadura da burguesia que todos eles haviam conhecido.

Destes, e apesar de repetidamente preso e deportado pelo governo soviético, Serge foi o único que sobreviveu, porque era apátrida e portanto, com esse estatuto de eternamente estrangeiro, pôde beneficiar de uma campanha internacional animada sobretudo por André Gide, meu mestre de moral e outras coisas desde os quinze anos de idade. «Nathanaël, à présent, jette mon livre. Emancipe-t’en. Quitte-moi», «E agora, Natanael, deita fora o meu livro. Emancipa-te. Deixa-me». Serge sobreviveu também porque faltavam ainda uns meses para os processos de Moscovo, senão nem Gide nem os outros escritores lhe valeriam.

Serge foi libertado, mas quantas sombras deixou na União Soviética e no que esse país havia representado! Panaït Istrati riscado da lista, Alexander Russakov, seu sogro, Blumkin, tantos nomes enterrados nas notas de rodapé. Deixou lá também a sanidade mental de uma esposa que arrastou consigo e ficara demente com o curso dos acontecimentos, e isto que importa, porque quantos outros e outras ficaram dementes também? Sofrimento pior foi o dos que tudo viram com a consciência lúcida.

Na França que o acolheu, Serge continuou o combate não só contra o stalinismo mas igualmente tentando convencer Trotsky, que ele apoiara na União Soviética e entre cujos fiéis era contado, a prescindir do sectarismo, um dos inumeráveis defeitos daquele homem brilhante, e a abandonar o objectivo de fundar cedo demais uma quarta internacional. Serge juntou-se a Henk Sneevliet para tentarem persuadir Trotsky através de cartas e de conversas pessoais, mas Trotsky tornou pública uma discussão que os outros haviam tido o sensato cuidado de manter privada, e também por este lado Serge se viu isolado e denegrido — sim, facciosos do politicamente correcto, foi mesmo denegrido que escrevi — mais uma vez se vendo obrigado a recomeçar a partir do nada o combate de sempre.

Como se isto não fosse suficiente, basta uma coisa para avaliar o quilate moral de Victor Serge. Já depois de ter sido extraditado da União Soviética, a propósito da polémica sobre a repressão a Kronstadt, Serge escreveu que os marinheiros e operários daquela base naval em revolta contra o poder bolchevista tinham sem dúvida razão no que reivindicavam e propunham, inteira razão. Mas se conseguissem derrotar o Estado soviético não seriam capazes de resistir ao assalto das tropas brancas — será que os politicamente correctos irão protestar aqui também, ou já não importa que brancas seja sinónimo de czaristas? — e por isso seria preferível ajudar os bolchevistas a esmagar a revolta de Kronstadt do que abrir o caminho para que os czaristas esmagassem os bolchevistas. Este, explicou Serge, fora o raciocínio não só dele mas de todos os demais anarquistas que haviam somado as suas forças às do Partido Comunista. Podiam estar certos ou errados, e de pouco vale censurar, com a sabedoria conferida pelos acontecimentos, raciocínios feitos antes de os acontecimentos terem ocorrido. Não é isto que me importa. O que quero mostrar é que Serge poderia ter ficado calado, porque era ele a única pessoa viva e em liberdade com conhecimento daquele dilema. Mas não manteve o silêncio sobre uma questão melindrosa, porque achava que seria mais útil desvendar os labirintos e os becos sem saída da revolução do que manter os mitos.

Quilate moral de primeira grandeza, que se avalia também ao sabermos que foi Serge — a quem os bolchevistas, como indico numa das notas daquela passagem da versão inédita do meu livro, haviam dado a incumbência de analisar os arquivos da Okhrana — quem publicou a carta de Bakunin para o czar, em que o célebre anarquista, na cela da prisão onde se encontrava, propôs ao monarca uma aliança em nome do eslavismo e assente na mobilização dos camponeses. Serge publicou o documento, conhecido desde então como Confissão, juntamente com as anotações à margem pela mão do soberano. E Serge contou como nessa ocasião os anarquistas o censuraram por ter divulgado uma carta comprometedora, em vez de a ter abafado para manter vivo o mito. Mal sabiam esses piedosos fanáticos que os mitos não são destruídos por documentos e que, com a Confissão ou sem ela, Bakunin continuaria a ser o santo de uma das romarias tal como Marx, com ou sem o seu cego antieslavismo, é o santo da romaria da outra aldeia. São os fiéis quem faz os santos, não o inverso.

Lições de moral, pois, mas de uma moral que não é aquela que agora anda por aí com o mesmo nome, mas era sinónimo de impiedosa lucidez, precisamente aquela moral que Gide ensinava e, o que é mais importante, aplicava a si mesmo, e de que Victor Serge foi um exemplo, até morrer com os sapatos furados, como morreu o Galileu com os pés furados.

Notas

[1] Hannah Arendt, Le Système Totalitaire, Paris: Seuil, 1972, pág. 167. Embora Hannah Arendt não o diga, ela reproduz aqui, com algumas inexactidões menores, a descrição feita por Victor Serge do gráfico que sintetizava as relações directas e indirectas estabelecidas em torno de Boris Savinkov. Serge sabia do que falava porque, como contou nas suas Memórias, desempenhara durante a guerra civil russa, entre muitas outras funções, a de «comissário para os arquivos do ex-Ministério do Interior, isto é, da ex-Okhrana». Serge descreveu também outro tipo de gráficos, onde as linhas que relacionavam pessoas indicavam as datas e as horas em que elas se haviam encontrado. «Este quadro permite seguir, hora a hora, a actividade de uma organização», comentou Serge, o que mais ainda aproxima o sistema da Okhrana daquele que hoje executam os computadores. Ver o livro de Victor Serge, Les Coulisses d’une Sûreté Générale. Ce que tout Révolutionnaire Devrait Savoir sur la Répression, incluído em Jean Rière e Jil Silberstein (orgs.), Victor Serge. Mémoires d’un Révolutionnaire et autres Écrits Politiques. 1908-1947, Paris: Robert Laffont, 2001, págs. 217-289. A descrição dos gráficos encontra-se nas págs. 245-247 e a frase citada vem na pág. 246. A citação acerca das funções de comissário para os arquivos da antiga Okhrana encontra-se na obra de Serge publicada com o título Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, em Jean Rière et al., op. cit., pág. 575. Ver também a pág. 580.

[2] Edwin Black, War Against the Weak. Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Nova Iorque e Londres: Four Walls Eight Windows, 2003, págs. 289-291, 309-310, 311.

As ilustrações representam, como seria de esperar, o Cristo morto, de Andrea Mantegna, e Victor Serge.

20 COMENTÁRIOS

  1. Há uma tradução para o português do livro do Victor Serge (“O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão”) editada em São Paulo pela Editora Quilombo em data desconhecida, mas que deduzo ser entre 1978 e 1981.

  2. Meu caro João Bernardo,

    Era só para lhe dizer que o leio persistentemente.

    Um abraço

  3. Manolo, esse texto do Serge foi reeditado pela Expressão Popular, creio que em 2008, numa edição que reúne mais alguns outros textos. O título do livro é – A hora obscura.

  4. Sobre os métodos da Okhrana e a clandestinidade na Rússia czarista poderá ler-se, com muito proveito, a “Underground Russia”, de Stepniak. Existe uma tradução para o português com o título “A Revolução Nihilista na Rússia”, salvo erro de 1903. É coisa difícil de se achar. Eu tive uma cópia que depois perdi, infelizmente.

    Sobre Serge existe ainda, também em português, as suas memórias, com o título “O Ofício do Revolucionário”, da Moraes Editora. É um livro magnífico e cuja leitura recomendo vivamente.

  5. Prezado João,

    Ao introduzir o livro Labirintos do Fascismo você diz que “Este é um livro interminável, por isso me permito apresentá-lo inacabado.” Não sei se é uma impertinente curiosidade, mas gostaria de saber qual é o motivo que o estimula a continuar trabalhando nesta obra?
    Abraço.
    Ignácio Leão.

  6. Caro Ignácio Leão,
    O Borges observou que o único motivo que leva os escritores a publicarem é pôr fim à obsessão de rever interminavelmente os manuscritos. O Balzac nem assim, porque continuava a riscar e corrigir os volumes já impressos. Mas eu estou de acordo com o Borges e para mim obra publicada é obra sepultada, desinteresso-me dela. Não sei exactamente por que motivo o fascismo é uma excepção e o que me leva a continuar a pesquisa e a ir transformando o livro. Talvez porque o fascismo não desapareceu devido às suas contradições internas, se exceptuarmos os dois fascismos ibéricos, que seguiram uma evolução até ao termo, e o peronismo, que pôde igualmente evoluir. Todavia, o cerne dos fascismos, que constituiu o Eixo, foi derrotado militarmente mas não economicamente nem ideologicamente. Assim, apesar de morto, o fascismo continua vivo, embora com outros nomes. E se o fascismo se caracterizou, na sua época, por transportar para a esquerda problemáticas originariamente de direita, também hoje é em meios considerados de esquerda que os temas do fascismo ressurgem, nomeadamente na ecologia e nas ideologias do decrescimento. Em resumo, creio que é a vitalidade demonstrada por aquilo a que no meu livro chamo fascismo pós-fascista que me leva a prosseguir a pesquisa, com a sensação de todas as semanas encontrar novos fios numa teia de que não vislumbro os limites.

  7. Manolo,
    También en Portugal se editó en noviembre de 1974:

    Serge, Victor, ‘O que todo o revolucionário deve saber sobre a repressão’, Porto, Publicações Escorpião, 1974.

  8. No Brasil, houve também a edição de MEMÓRIAS DE UM REVOLUCIONÁRIO, de VICTOR SERGE, pela CIA DAS LETRAS, em 1987.

  9. Caro J. Bernardo,

    Sou um leitor costumaz do que você escreveu e, excepcionalmente, ainda escreve. Particularmente, gosto das informações que seus textos trazem. No entanto, conviria abandonar o ar de mártir e superar a desolação. Se grande parte dos leitores é sectária – de fato o é -, seu estilo às vezes beira o do polemismo jornalístico e se nutre mesmo de expectativas sectárias, visando frustrá-las. Decerto se pode atribuir a esse estilo certo interesse pedagógico no esclarecimento da consciência política, da mesma forma como se pode ver nele uma retórica de combate transformada em achaque.

    Um grande abraço.

  10. Prezado João Bernardo,
    Obrigado por mais este texto.
    Tomo a liberdade de solicitar-lhe um sobre André Gide, especialmente após seu retorno da viagem para a URSS.
    Espero não ser abusado ao lhe colocar esta indagação: quando, num comentário acima, refere-se às “ideologias do descrescimento” está aludindo à suposta incompatibilidade entre crescimento e preservação dos recursos -supostamente finitos – do planeta?
    Abraço,
    Paulo

  11. Caro Paulo Luiz,
    1) As teses do decrescimento a que me referi são essas que você menciona. Elas encontram agora uma certa audiência em Portugal, em meios que se pretendem de esquerda, e isto numa altura em que a troika e o governo implementam medidas que levam à queda do Produto Interno Bruto, com consequências muito gravosas para os trabalhadores. Ao menos as medidas oficiais apresentam-se como provisórias, enquanto os defensores do decrescimento pretendem tornar definitiva essa situação. Aquilo que sinto ao ver pessoas de esquerda, algumas que até uma data recente contava entre os meus amigos, defenderem o decrescimento, explica a maneira de redigir que Marcelo Torquetti observou num destes comentários. Mas não se trata de retórica nem de efeitos de estilo. Trata-se da indignação, do verdadeiro nojo que essa gente me inspira. E não vejo razão para não o extravasar.
    2) O Miguel Serras Pereira, num blog de que é um dos mais constantes animadores, fez uma referência a este artigo, com um pedido convergente com o seu:
    http://viasfacto.blogspot.com.br/2013/02/excerto-de-uma-mensagem-que-nao-enviei.html
    Para maior facilidade, transcrevo aqui dois extractos de uma mensagem que enviei ao Miguel: « É extraordinário como o Gide foi esquecido. Mas que mais posso te dizer dele, a tal ponto o incorporei em mim mesmo? Cheguei ao Dostoievsky através do Gide, que foi o primeiro doestoievskiano sério em França. Antes disso só havia lido o Crime e Castigo, no começo da adolescência. Depois entendi como a moral do Gide era toda ela extraída do Dostoievsky, o que significa que tenho uma leitura estritamente gideana do Dostoievsky. A propósito, a editora da Usp publicou ao longo de anos uma biografia do Dostoievsky por Frank, numa boa tradução, para variar do hábito no Brasil, e essa biografia é um primor. […] Mas, voltando ao Gide, não conseguiria trabalhar seriamente sobre ele sem incluir no estudo o Dostoievsky, o que seria um esforço grande demais. Se alguém me disser que tem um cancro e lhe resta um mês de vida e me perguntar o que deve ler, a minha resposta é Os Irmãos Karamazov. Mas se o cancro for galopante e a pessoa só tiver três dias, então a minha resposta é La Conspiration, do Paul Nizan. Acho que não é por acaso que na minha memória esse livro me deixa ecos de Gide».

  12. Caro João Bernardo
    Gide talvez seja toda sua obra, mas qual o livro de sua preferência? Miguel Serras Pereira gostaria de ver novamente publicado “Os Moedeiros Falsos”, “Se o Grão Não Morre” e os dois regressos da URSS. Concorda com estas indicações?
    Abraço,
    Paulo

  13. Caro Paulo Luiz,
    Sim, claro, esses. Mas acrescentaria Les caves du Vatican e sobretudo Les nourritures terrestres, não sei como está traduzido em português, de onde extraí a citação no artigo e que realmente me serviu de guia de moral quando entrei na adolescência. Que o orgulho e a vaidade são opostos, que a arrogância é uma dura conquista e qual o significado da liberdade — creio que foi sobretudo isso que aprendi com Gide. E a obrigação da coerência, também, porque não é fácil escrever Si le grain ne meurt, que eu traduziria como Se a Semente Não Morrer. No Paludes o Gide põe um personagem que lhe pergunta por que motivo ele está a escrever aquele livro, e o Gide responde que se não fosse ele, ninguém o escreveria. É uma lição fundamental — aquilo que só nós somos capazes de fazer, temos obrigação de o fazer.

  14. Caro João Bernardo (e demais),

    Cheguei ao Gide através de você. Até hoje você foi a única pessoa que me perguntou se eu já havia lido Gide. Lembro-me que tal nome me soou tão estranho que fiquei em silêncio, demorei responder, você então escreveu o nome dele pra mim. Pronto! Estava indicado. Aproveito pra lhe agradecer a marcante indicação.
    Fui atrás e agora posso dividir aqui uma pequena informação: Les caves du Vatican saiu no Brasil traduzido como Os Subterrâneos do Vaticano, pela Abril, na primeira edição de 1971. Les nourritures terrestres saiu no Brasil junto com Les Nouvelles Nourritures, mas na capa só aparece o nome Os Frutos da Terra (Difusão Européia do Livro, 1966). Os interessados poderão ler a citação que você extraiu na página 119 desta edição de 1966. Acho que o Gide não tem sido muito lido no Brasil atualmente. Em 2011 eu comprei seis obras dele, todas em perfeito estado de conservação e quase sem manuseio algum, no sebo (alfarrabista em Portugal), por 55 reais. Preço tão baixo só com obras sem procura.
    Outra coisa que sempre me lembro ao ver o nome do Gide tem a ver com um fato insólito e também marcante. Quando, em 2011, eu saía do sebo carregando as seis obras do Gide, me deparei, na porta do sebo, com um gestor de um alto posto da empresa na qual eu trabalhava, nos cumprimentamos e rapidamente ele me pediu pra ver o que eu havia adquirido. Viu a capa de todos e se limitou a dizer: “Hum… Andre Gide.” Trocamos outras palavras quaisquer e logo nos despedimos. Não estávamos próximos na organização interna da empresa. Demorávamos a nos encontrar e isso quase nunca acontecia. Só que um dia ele tornou a me ver, já em 2012, e desta vez eu estava junto com mais uns 150 outros empregados reunidos, ele coordenando o encontro, um clima que misturava, por parte dos trabalhadores, vergonha, medo de demissão, desejo e necessidade de contestação, e eu reclamei a ele, com muita coerência, das condições de trabalho na empresa, horas extras não pagas e outras coisas. Fui ovacionado por muitos e outros tentaram abafar os aplausos com vaias. Ele ficou completamente perdido e voltou a repetir que todos podiam e deveriam reclamar à vontade e que isso não resultaria em demissões. Ninguém acreditou e nem reclamou mais nada. Resultado: fui demitido pelo presidente da empresa quinze dias após o fato. Lição: uma sacola cheia de Gide, um gestor que conhece Gide, mais uma fala de dissidente, é uma combinação letal pra ser demitido.

  15. Tenho a impressão de que o boicote a Serge atravessou o século e ainda hoje é difícil encontrar um livro seu.
    Memórias de um Revolucionário, livro fundamental a qualquer militante, inexiste nas livrarias brasileiras (apenas parcos exemplares em sebos virtuais a preços nada módicos) e mesmo pdf’s não são fáceis de achar.

    Anos de governos de esquerda, sindicatos multimilionários, editoras idem e Serge ainda assim é raro.

    Será que suas ideias ainda incomodam???

  16. Olá João, onde eu consigo acesso a esta carta do Bakunin ao czar? Tem em inglês ou espanhol? Não achei em português.

  17. A edição portuguesa é:
    Mikhail Bakunine, Confissão. 1851, Lisboa: Arcádia, 1975.
    Trata-se de uma tradução, devida a Elisa Teixeira Pinto, de uma edição das Presses Universitaires de France, de 1974. O especial interesse desta edição, tanto da versão original francesa como da tradução portuguesa, deve-se ao facto de conter um prefácio de Boris Souvarine, uma introdução de Fritz Brupbacher e notas de Max Nettlau.

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