Entrevista sobre “a palavra clara, livre, rebelde e verdadeira”, transmitida nas montanhas de Guerrero, México, pela rádio comunitária Ñomndaa. David Valtierra entrevistado por Luiza Mandetta e Leonardo Cordeiro


Ao pé das montanhas que logo se transformam na grande Sierra do estado mexicano de Guerrero – histórico palco de lutas dos povos camponeses, que já abrigou guerrilhas como a de Lucio Cabañas, na segunda metade do século passado, levantes zapatistas durante a Revolução Mexicana e rebeliões indígenas no período colonial – está o município de Xochistlahuaca ou Suljaa’ (em nahua ou amuzgo). Do pequeno cerro incrustado no meio da cidade transmite já há oito anos a antena da rádio livre comunitária Ñomndaa – em português, “a palavra da água”. Estávamos lá justamente para as comemorações do seu aniversário, com direito a uma grande festa, com muita cumbia, na quadra da cidade, convidados de todo o país e do exterior, e uma conversa sobre a luta pela preservação do rio San Pedro, que atravessa o município.

David Valtierra Araujo, nascido em Suljaa’, vive com a família a poucos metros da subida íngreme que leva à cabine da rádio e está envolvido com o projeto desde que ele surgiu, em meio a um processo de luta e organização da comunidade. David nos conta que estudou matemática na Cidade do México, mas sentiu necessidade de voltar à sua cidade em 1997. Ali, passou a trabalhar com a organização das artesãs da comunidade e, mais tarde, dos ejidatarios – os ejidos são terras comunais ou familiares, administradas em assembleia, concedidas pelo governo mexicano aos pueblos com a reforma agrária.

Inspirada pelo levante do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), em 1994, e por uma série de outros processos que ocorriam simultaneamente no país, a comunidade de Suljaa’ retomou à força, no início dos anos 2000, sua forma tradicional de governo. As assembleias e autoridades comunitárias com que passaram a gerir de maneira autônoma todo o munícipio eram uma parte da luta contra o crescente poderio clientelista de uma “cacique” local. A rádio nasceu em seguida, a partir da “necessidade de conversar com todos os pueblos da região sobre o que estava se passando”, sobre isso que poderíamos chamar autonomia, mas que para David representa “as formas de governo dos avós”. A respeito da luta constante para manter esse grito por autonomia no ar, ecoando uma palavra própria que propaga em sua torrente rebelde as lutas, as tradições e a vida do povo amuzgo, entrevistamos Valtierra antes de descer das montanhas.

Luiza e Leonardo: Como nasceu a necessidade e como foi o processo de criação da rádio Ñomdaa?

David Valtierra: Aconteceram muitas coisas. Por volta do ano 2000, começou um movimento muito forte, contra uma cacique. As pessoas se organizaram para tirá-la da Prefeitura e se formou uma mobilização muito grande, e muito plural, de diversas correntes, com partidos políticos e também gente que não participava de nenhum partido. Em cada comunidade houve divisão: havia os que apoiavam a cacique e os que estavam contra o que ela fazia. Depois vieram as eleições, em 2002, e a frente que se formara se dissolveu, brigando pela Prefeitura. A partir daí sobrou só a “gente grande”, a gente que não estava metida em nenhum partido político – os ejidatários, com quem eu já vinha trabalhando e que já me conheciam. Estávamos já impulsionando a criação de um município autônomo em Suljaa’, que se formou em 2002, retomando as próprias formas tradicionais de governo. E eu fiquei como ajudante, como secretário, algo assim.

Meu pai tem quase 80 anos. Ele viveu toda a organização comunal, na qual uma pessoa presta seu serviço à comunidade, a partir de uma certa idade, até chegar a ser autoridade agrária ou civil. Era uma organização diferente, em assembleias: a autoridade não vinha dos partidos. Depois se impôs o sistema de partidos, as campanhas e tudo isso – aí começou a haver muitos problemas. No ano de 2000, quando houve esse problema com a cacique, as pessoas seguiram organizando-se em assembleias; isso se retomou com força de 2000 a 2002, até porque é assim que se trabalha nas comunidades. Então, aqui também se retomou e se configurou o que se chama de autoridades tradicionais – dessa forma se articulava a resistência contra a cacique. O povo expulsou a cacique do palácio da Prefeitura e lá se instalaram as autoridades comunitárias. Essa situação durou desde 2001 até 2012: o palácio só foi desocupado depois das eleições de julho deste ano, faz uns meses. Até então, as autoridades tradicionais o estavam ocupando. Entretanto, foi no período de 2002 a 2005 que foi mais forte a articulação do município autônomo. E foi aí que comecei a participar, com essa visão de que somos um povo com um território próprio, com uma cultura própria – e dentro disso temos uma própria forma de organizar-nos para a vida, para questões como, por exemplo, a eleição de nossas autoridades. Retomamos isso, pois. Muita gente chama-lhe autonomia, era a palavra que se usava muito, mas para nós é como retomar como havia sido antes: aqui mesmo se decidia tudo, não era um dirigente que vinha do [estado do] México para dizer o que fazer aqui, como agora é – isso não é autonomia. Então organizamos o que se chamou de município autônomo, governado pelas autoridades tradicionais. Esse processo se deu de 2002 a 2005, mais ou menos.

Em 2005 os partidos de “esquerda”, como PRD e PT, cooptaram nossas autoridades, se aproveitaram do trabalho delas para impulsionar um candidato, com seu discurso de democracia, etc. e tal. Como esses partidos de oposição perderam as eleições, veio abaixo a organização autônoma. Há apenas um mês, o PRI perdeu as eleições municipais pela primeira vez. Nunca havia perdido aqui desde que o partido existe.

Bom, mas o município autônomo foi uma retomada das próprias formas de governo dos avós, as autoridades tradicionais. E foi aí que se iniciou a rádio, pois quando se deu esse movimento tão forte a nível local, contra o caciquismo, em 2001, a nível nacional estava acontecendo a Marcha pela Cor da Terra, dos zapatistas. Desde 1994 víamos a luta zapatista como uma luta muito justa, mas aqui era perigoso falar sobre isso porque os militares estavam por todos os lados. Ainda continuam aqui em cima, mantiveram um posto de vigilância. Em 1994, todavia, depois do levante zapatista, havia militares na entrada do povoado, na saída e em todas as partes dessa região. Não era fácil falar da luta do EZLN, se falava às escondidas, em privado. Sabíamos, porém, que aquilo não era ruim. Era como regressar à forma de se governar que havia antes, quando as pessoas decidiam por si mesmas, não era um outro que mandava nelas – um dirigente, um líder, alguém que não vive com elas, não faz parte de sua coletividade, não sabe quais são suas necessidades. Nós víamos então uma grande necessidade de conversar sobre o que é isso, sobre autonomia – outros também chamam de poder popular, outros de autogestão, tem diferentes nomes… Nisso nasceu a necessidade da rádio, em 2002, numa das assembleias gerais da comunidade. Nela, apresentamos a ideia de criar uma radio comunitária, a proposta foi aprovada e fomos encarregados de organizá-la.

A necessidade da rádio era uma necessidade de conversar com todos os pueblos da região sobre o que estava se passando aqui: a retomada das autoridades tradicionais. Ela nasceu como exercício do direito que tem qualquer povo de comunicar-se na própria língua. Tomar uma rádio e fazê-la própria era, para nós, muito difícil de imaginar, não sabíamos como se fazia. Sabíamos, porém, que havia outros coletivos, outros pueblos, que tinham rádios há muitos anos, como a Rádio Teocelo de Vera Cruz, a qual já tinha mais de 30 anos e nós não havíamos sequer iniciado. Levamos dois anos para juntar o equipamento, fazer assembleias em cada comunidade, discutir o regulamento, como ia funcionar a rádio, e aprender a manejar os aparelhos. Ao final de 2004, dia 20 de dezembro, foi ao ar.

L&L: E qual é a situação dessas assembleias comunitárias hoje?

DV: Ainda há as assembleias populares, mas já não com a mesma força. Na Casa Agrária, por exemplo, todas as decisões são em assembleia. Lá as assembleias permanecem fortes, pois estão mais vinculadas à terra, ao território – para tratar da água também se fazem assembleias. Para nomear autoridades nas comunidades pequenas elas também continuam acontecendo.

O governo por si nunca reconheceu outras formas que não o sistema de partidos, o qual é como uma linha, que vem desde a direção. No México, na Cidade do México, estão os líderes de todos os partidos, e deles vêm as diretrizes estaduais, das quais vêm, por sua vez, as diretrizes municipais. Todas as decisões são, portanto, tomadas em outros lados, obedecendo aos interesses desses líderes dos partidos, das negociações que fazem uns com os outros. Isso é o Estado, não?

L&L: Sim, e para os amuzgo nos parece que é bem diferente…

DV: A palavra para governo ou autoridade em amuzgo é tsanmats’iaan, mas é outra visão. Tsanmats’iaan significa “a pessoa que está no trabalho” ou “a pessoa que está suja por trabalhar” – não é o que manda, mas aquele que dá exemplo com o que está fazendo. É outra concepção, mas equivale a governo, autoridade, em espanhol. O amuzgo é muito amplo, em geral, e normalmente não há necessidade de usar palavras em espanhol. Ultimamente, entretanto, se têm perdido muitas palavras. As novas gerações têm outra formação, a cultura dominante penetrou muito através da televisão, das rádios comerciais, da escola…

L&L: Você nos falou um pouco sobre a importância da língua amuzgo para o seu povo, e sobre o que significa para vocês veiculá-la na rádio. Poderia contar um pouco mais sobre o assunto?

DV: De fato, a identidade da rádio é nossa língua, que se chama justamente “a palavra da água”, ñomndaa. Consideramos muito importante reivindicar o valor da palavra – e o valor da palavra própria –, porque, sobretudo no rádio, sempre escutávamos o que vinha do [estado do] México, rádios que tinham muitos watts de potência e que chegavam até aqui; à noite se podia sintonizar e escutar. No entanto, não entendíamos o que se dizia nessas rádios. O natural para nós é tomar a palavra falada, e nossa palavra é nossa língua, por isso se chamou rádio Ñomndaa; é algo que nos identifica. É como alçar a voz e dizer “aqui estamos, somos parte desse país”.

Ora, o que nos ensinaram nas escolas, a nós que tivemos oportunidade de frequentá-las, é que nossa língua não serve. Castigavam-nos por falar na nossa língua e diziam que o espanhol é o que serve, que nossa língua era um “dialeto”, algo que não serve, que não vai te empregar. O espanhol é o progresso – é isso que se aprende nas escolas. Mas ao refletir você se dá conta de que isso não é certo, e por isso nós retomamos nossa língua. Não é uma discriminação ao espanhol, mas sim o exercício de um direito legítimo que temos de conversar, de dizer como vemos o mundo, porque nossa língua reflete nossa filosofia precisamente: como nomeamos as coisas, como nos relacionamos entre nós mesmos.

Por exemplo, a relação com a terra. Para dizer “município”, que é um território com jurisdição político-jurídica, nós dizemos ndaatyuaa. Quer dizer água-terra – essa é a tradução. Nossa língua é “a palavra da água”. Quando sonhamos, dizemos “dormi na água”, tsondaa. Quando tiramos água, dizemos que estamos “matando a água”, seicwe’ ndaa. Você a está matando quando a está desperdiçando. Quando dizemos que amamos alguém, dizemos “dou o coração por ti”. Quando vemos que uma pessoa é ruim dizemos que “tem o coração afiado”. Temos outra maneira de ver o mundo, por isso o valor da nossa palavra, por isso a retomamos na rádio.

L&L: E como é a relação atual das escolas daqui com a língua e os costumes tradicionais?

DV: A escola em que vocês dormiram é a melhor da cidade; foi nossa primeira escola bilíngue. Quando estudei, entrei primeiro em uma escola monolíngue, onde te ensinam a ler, falar e escrever espanhol. Ainda que você não saiba o que está escrevendo, é o que vai escrever. Depois de uma luta, se formaram escolas bilíngues, que não são algo fácil, porque não houve uma formação dos professores para ensinar uma coisa diferente. Aqui, no nosso pueblo, elas começaram na década de 1970 e foram se transformando através dos anos. No começo, o que se fez foi ir atrás de algumas pessoas com ensino fundamental ou médio completo, mais uns poucos com nível superior, que falavam nossa língua, mas não sabiam escrevê-la. Essas pessoas davam as instruções em amuzgo, mas os conteúdos eram os mesmos. E a visão era a mesma: você tem que estudar para não ser como seu pai, porque seu pai é camponês, e isso não é “desenvolvimento”; e você vai estudar para não ser como sua mãe, porque sua mãe é artesã, e isso não é “o desenvolvimento”.

Depois o nome mudou: primeiro era “escola bilíngue”, agora é “escola intercultural bilíngue”. Todavia, se o nome variou, as práticas foram mantidas, ainda que atualmente haja uma luta mais forte para criar outra educação. A escola é o meio pelo qual se despoja os povos de sua cultura. Quando você começa a ir à escola, lhe dizem: “você deve levar seu uniforme escolar”, que não é a roupa tradicional, mas a roupa ditada pelo governo. Despojam-te, ali, de sua língua, de sua vestimenta, e te ensinam que isso não vale nada. O que valem são os conteúdos nacionais.

Assim tem sido o ensino, a escola no México em geral. No entanto, há alguns professores que não levam tanto em conta esses conteúdos, retomando elementos da comunidade, como acontece na Escola Porvenir. No ano passado, por exemplo, eles retomaram o ensino de tear – como se faz, que nomes tem… Tudo isso aprenderam e fizeram as crianças. Trata-se de algo que não está nos conteúdos nacionais, mas que envolve as pessoas. Os pais e as mães participam, ou seja, a escola se converte em parte da comunidade, em outra escola, portanto, quando se faz as coisas dessa maneira.Todavia, há também colégios e professores que são conscientes de que as coisas não devem ser assim, e um desses colégios é aquele em que vocês dormiram, a “Escola Porvenir” – a qual promove não só o uso da nossa língua, mas seu estudo. E já há alguns livros, poucos, para ler, estudar o amuzgo. Nós, da rádio, temos uma relação muito boa com essa escola e cobrimos o que eles fazem, já que possuem esse vínculo com a comunidade e promovem a valorização da nossa cultura.

L&L: Em relação à música tradicional, alguma coisa tem sido recuperada e valorizada?

DV: Na verdade, nós começamos a fazer gravações da música tradicional, pois desconhecíamos a música dos avós, não havia oportunidade para conhece-la. Antes sim, nas festas, mas depois já não havia, porque vieram os áudios, os sons, toda a música que se escuta nas rádios comerciais, que é outra música, outra cultura. Tivemos a oportunidade de retomar isso com as autoridades tradicionais, as quais estavam vinculadas com os músicos tradicionais e nos permitiram conhecer também a nossa música, abrindo um espaço para que ela fosse tocada e para promover que fosse mais escutada. Isto é algo que continuamos a recuperar. Este ano eu ouvi pela primeira vez uma pessoa que canta como se cantava antes – antes se cantava ndandaa, que quer dizer “cantar a água”. Cantava-se com um cântaro, batendo em sua boca, contando sobre o que se viveu na vida, algumas coisas tristes, outras alegres, um canto um pouco melancólico em certo sentido. É algo como o hip-hop (risos), só que daqueles anos, um pouco conversado e um pouco cantado, e só agora o estamos retomando, revalorizando.

L&L: A rádio Ñonmdaa já enfrentou problemas com pessoas da comunidade ou com autoridades governamentais?

DV: Sempre há problemas e conflitos envolvendo a rádio e outras pessoas da cidade. Há problemas desde que nasceu a rádio. No dia seguinte nos visitaram inspetores da Secretaria de Comunicação e Transporte, que se encarrega de normatizar e outorgar permissões a qualquer coisa que tenha a ver com comunicação e transporte (rodovias, rádio, televisão… tudo). No segundo dia de funcionamento da rádio eles chegaram, perguntando onde estava a licença. Passaram poucos dias e chegou um coronel do exército, sendo que o exército nada tem a ver com a comunicação. Nossa constituição diz que ele serve para defender-nos quando ocorre um desastre natural ou uma invasão estrangeira, não para ir investigar uma rádio, descobrir como ela funciona e quem está a cargo dela. Mas foi isso que fizeram, e de uma maneira ardilosa. Como a rádio é comunitária, qualquer um pode entrar na cabine, permite-se que qualquer pessoa que queira fale. Chegou, então, esse senhor dizendo que queria mandar um salve para os ouvintes e entrou. Só que depois começou a visitar as casas dos companheiros e dizer que o comitê o tinha enviado. Assim que o detectamos, requeremos sua identificação e nos demos conta que era coronel do exército. Ele dizia que trazia uma ordem vinda da Cidade do México para investigar o funcionamento da rádio.

Logo começaram também as ameaças dos caciques, das pessoas que sentem perigo quando levantamos a voz. Não são ameaças feitas por meio das instituições, mas por outras vias, por mensagens, chamadas de telefone, perseguições ostensivas. E depois veio a operação da Polícia Preventiva Federal, que carrega armamento pesado e traz a cara tapada. Vieram levar os equipamentos, chegaram até à cabine, mas não conseguiram levar as coisas porque o povo nos defendeu. Tinham bloqueado o caminho para que ninguém pudesse subir até à rádio, mas aqui conhecemos nosso pueblo, temos muitas entradas, e a barreira da polícia de nada serviu. As pessoas começaram a chegar por todos os lados e os policiais ficaram acuados dentro da rádio. Estiveram por três horas lá dentro – suando muito, pois fazia muito calor – e, mesmo já tendo desmontado o equipamento, acabaram decidindo deixar tudo lá, se foram com as mãos vazias.

Além disso, nos hão inventado delitos. Isso se chama de criminalização do protesto social. Inventaram para mim por duas vezes, por exemplo, o delito de privação ilegal da liberdade, que é como sequestro. Eu fui ajudante das autoridades tradicionais e havia uma comissão de justiça, que resolvia problemas internos da comunidade. Um homem certa vez tomou terras do ejido, de uso comum, de todos, não de sua parcela, e as estava vendendo. Ele foi citado pelas autoridades e, em assembleia, não aceitou parar, dizendo que contava com o respaldo da cacique, que não podíamos fazer nada a ele. As mulheres ejidatarias – porque há algumas senhoras que são ejidatarias – ficaram muito irritadas, se levantaram, agarraram suas mãos e o levaram à cadeia, sem que ele opusesse resistência. As autoridades tradicionais se reuniram, então, com ele, que se espantara ao ver que o povo não ia ceder, e acordaram que ele ia deixar as terras, com exceção de um pedaço que era de seu pai, cuja posse seria passada para seu nome pelas autoridades tradicionais e agrárias, como uma herança. Assim, no dia seguinte houve uma reunião em que se tornou público o acordo, se fez uma ata e homem se foi, tudo ficou bem, o problema se acabou, como em outros casos. Entretanto, passados alguns dias chegou um grande efetivo da polícia judicial ao município, perguntando por esse senhor. Dissemos-lhes que havia tempos se havia ido a sua casa, mas segundo eles ele nunca chegara a sua casa e estava desaparecido. Essa operação foi feita para iniciar um processo que eles já tinham preparado. E dias depois levaram preso o presidente do comissariado ejidal. A gente se organizou, então, e foi até a cadeia de Ometepec, onde ele estava, para resgatá-lo. Lá nos demos conta de que havia 11 ordens de apreensão, de autoridades tradicionais e autoridades agrárias, inclusive de mim, como ajudante, porque estive na redação do acordo.

Isso foi em 2004. Passou um bom tempo e, não recordo em que ano, me pegam. Mantinham as ordens congeladas e em um dado momento fazem uma operação para me prender. Eu já havia percebido que me tinham na mira e estava de saída, ia para fora do país, mas eles se adiantaram e me pegaram. Assim fui preso, sob a acusação de que eu e as outras autoridades, que são anciães, sequestramos aquele senhor, de que o sacamos da cadeia no meio da noite, o levamos ao morro, o amarramos, o ameaçamos de morte e o forçamos a assinar folhas em branco. Segundo a denúncia desse senhor contra nós, estávamos de cara tapada e ele, vendado; quando o liberamos, não sabe explicar como chegou a seu povoado, mas ali o viu supostamente outro homem, que é peão da cacique, e o levou ao hospital.

Inventaram toda essa história e com ela acusam a seis autoridades tradicionais, que podem ser presas a qualquer momento. Meu processo terminou há dois anos. Foram vários anos indo a Ometepec a cada oito dias, para assinar, porque saíra sob fiança, até que finalmente, em 2010, me deram liberdade, porque o mesmo senhor afirmou que aquilo não estava certo, que ele não me conhecia e que a acusação era falsa.

São essas, pois, as formas com que o governo opera contra as pessoas que se organizam.

L&L: No momento o rio que atravessa o município está ameaçado, não? Poderia explicar-nos um pouco mais sobre a relação da comunidade com ele e sobre a luta por sua preservação?

DV: O rio foi uma parte bem importante da vida de várias comunidades, que estão muito próximas dele. Há uma relação, há muitas histórias sobre o rio. Vocês foram à conversa na beira do rio? Bom, essa parte se chama jndaa ndo’ts’om, que se pode traduzir um pouco como “o rio de coração vivente” – essa parte aonde fomos, ela e nada mais. Para nós, cada parte do rio tem um nome; não tem todo o rio um só nome, como para o governo. Ele diz que é o rio San Pedro, mas para nós não é rio San Pedro: cada trecho tem seu nome. Há um trecho em que agarramos camarões, outro em que há algas, algas vermelhas – então chama-se assim –, ou então onde passou um jaguar, ou onde há muita areia fina – e chamamos de “a poça da areia fina”. Meu pai me conta que era só meter as mãos na água e tirar as folhas para fora, que ali brincavam os camarões e minha mãe os recolhia, de fora. Há muitas outras coisas nessa relação entre rio e a gente das comunidades.

E agora nos inteiramos, faz alguns meses apenas, de que uma comunidade chamada San Pedro Cuitlapa, que está perto do rio, numa parte acima do território amuzgo, e que foi um centro de controle no caminho para a montanha, negociou dar a água à cidade de Ometepec. Esta é a vila mais importante da região, lá estão os centros regionais de poder econômico e político, e é onde está mais forte a representação do Estado. Antes da chegada dos espanhóis, essa localidade era parte do território amuzgo, mas com a chegada dos colonizadores houve dispersão, guerras e enfermidades, e hoje há lá poucos amuzgos, embora haja. O atual governador nasceu em Ometepec e, em sua campanha eleitoral, prometeu dar água à cidade, margeada por um rio contaminado, que já não lhes serve – por isso agora estão de olho no rio daqui. O governador, então, elaborou um projeto e o negociou com a comunidade de San Pedro, que pediu escola, hospital, dois carros e não sei o quê mais. Todavia, negociaram com o governo a água, a água que não é deles; e direitos que não se deve negociar, que é obrigação do Estado atender.
Nós não estávamos sabendo até que chegou a tubulação ao território amuzgo. Já são vários quilômetros e vai direto a Ometepec. Em nenhum momento houve uma consulta às comunidades que vivem ao longo do rio – trata-se de uma violação da lei, que inclusive aqui, no estado de Guerrero, afirma que se deve consultar os pueblos afetados e isso não foi feito. Também o convênio 169 da OIT, assinado pelo governo mexicano, diz temos direito à consulta. E vemos que não são tubos estreitos, pequenos, mas tubos enormes e largos, com os quais o rio vai baixar muito, alterando muitas coisas. É com isso que não estamos de acordo: que se haja negociado necessidades e que não se haja feito uma consulta aos demais pueblos.

L&L: E qual o papel da rádio nesse processo?

DV: Nós sempre vinculamos tudo; se destaca a defesa da língua, da própria palavra – o valor da palavra –, mas na realidade se trata de uma defesa mais integral: uma cultura não pode existir se não há um território. Assim, nós temos ajudado, através da rádio, outras comunidades a organizar-se para defender o rio. Estava aqui um companheiro de uma comunidade de aqui de baixo – se chama Huixtepec. Há dois anos, essa comunidade, junto com outras que estão próximas dela, se organizaram para deter o saque de areia e cascalho que realizavam a cacique daqui da cidade e outros caciques de Ometepec, que escavavam o rio dia e noite. O povo se deu conta que a água abaixara, afora que houve mortos por afogamento. As máquinas deixavam o leito muito profundo, embora não se possa ver; confiante de que já se conhece o rio, que se pode caminhar, que as crianças podem nadar, não se percebe os buracos que elas fazem no fundo. Foi assim que duas pessoas, dois garotos, se afogaram. Sucederam-se, portanto, várias coisas, e os pueblos organizaram-se e disseram: “já basta!”. Chamaram a nós, da rádio, para cobrir quando detiveram o maquinário e os acompanhamos no processo da denúncia. Conformou-se uma frente – Frente em Defesa do Rio – que deu força também para que outros companheiros, que estão depois de Ometepec, criassem outra frente para defender o rio que passa ali perto, no qual sucedeu o mesmo, embora lá esteja já muito mal. Nós temos acompanhado esse tipo de processos de defesa do território, não é a primeira vez. E o tempo em que nos organizamos em município autônomo foi a época em que pusemos mais camarões, mais peixes no rio, repovoando-o, porque não havia sido cuidado.

Acredito que a defesa do território é fundamental, e passa também pela defesa do ar, das frequências – caímos no mesmo, não? Para nós, não estamos cometendo um delito ao utilizar as frequências para emitir nossa palavra. O ar é de todos. A rádio, em si mesma, é também a defesa do território, a defesa do nosso direito.

L&L: Por fim, notamos que há uma clara separação entre o papel tradicional das mulheres e dos homens na vida comunitária. Você poderia comentar essa divisão e a condição das mulheres no cotidiano do povo amuzgo? Considera que elas são oprimidas de certa maneira?

DV: Em geral, a participação das mulheres nos órgãos de governo não é igual à dos homens, é menor, ainda que elas participem. Nas assembleias sobre a água elas são maioria. Já nas assembleias sobre a terra, os homens são mais numerosos.

Há, sim, diferenças naquilo a que cada qual se dedica. As mulheres, em seu trabalho, estão mais em casa. Têm de preparar os alimentos e estão mais presas aos filhos. São as portadoras da cultura – são elas que ensinam a falar, transmitem os primeiros conhecimentos, os primeiros aprendizados sobre as coisas. Além disso, as mulheres tecem, é seu trabalho tradicional fazer roupa para a família e, atualmente, para vender, por necessidades econômicas. Os pais ficam mais longe dos filhos pequenos, já que vão ao morro, ao campo, para trabalhar. Os homens trabalham com a terra, cedo se levantam e vão semear ou buscar comida. Então chegam um pouco tarde, e já não há essa interação com o filho, ela é menor.

Assim é a separação de atividades. Sobre machismo, creio que em geral nós homens tratamos de aparentar que somos nós que decidimos, mas na verdade não vejo muitas diferenças. Não sei como é por outros lados, mas aqui as mulheres têm um caráter muito forte, não se deixar dominar facilmente pelos homens. Não há isso de “pobrezinhas das mulheres”. É o que vejo, mas há grupos de mulheres que dizem o contrário, não sei por quê. Dizem: “pobrezinhas das mulheres, estão muito dominadas, estão muito marginalizadas, são muito violentadas em seus direitos”. Em geral buscam obter postos no governo e pensam que isto é a igualdade, ter o seu cargo. Na nossa cultura, aqui, há sim diferenças, porém não se trata de algo opressivo. Não sei se se pode dizer que é machismo, talvez sim, mas não é uma situação extrema. São como papéis diferentes que se complementam.

L&L: Gostaria de acrescentar mais alguma coisa ou mandar alguma mensagem para aqueles que estão lutando no Brasil?

DV: No capitalismo não pode haver igualdade. Outras maneiras de viver são possíveis, outras maneiras de fazer as coisas. Essa rádio é possível porque, mesmo que o governo não queira, decidimos fazê-la acontecer. E mesmo sem dinheiro também, é resultado do trabalho de cada um, da convicção de cada um.

Dizem que o Brasil é um país de Primeiro Mundo, mas o que estão fazendo lá é desenvolver o capitalismo, e isso nunca vai dar às pessoas uma vida boa. Nós queremos vida para todos, respeito à natureza, afinal somos parte dela e, se não a preservamos, não está assegurada a nossa própria existência. Não somos inteligentes, o que está ganhando é a ambição, e esse é o problema.

O que fazemos aqui não é motivo de admiração. É a defesa de algo natural: a defesa da palavra, do direito que tenho de dizer o que penso. Nossa luta não é muito grande, mas muito básica, porque temos que falar. E por isso pensamos que se pode fazer o mesmo em todos os lados. Já encontramos gente lutando em lugares mais difíceis. Convidaram-nos a ir, por exemplo, à Cidade do México, que é um monstro, e lá encontramos, apesar de tudo, gente sensível, sensível à vida. Isso nos dá gosto. E creio que há pessoas assim por todos os lados. Saibam vocês, então, que também lá no Brasil elas existem. Acho que vocês, os estudantes, podem também atuar, organizar-se e agir para mudar as coisas.

Mais sobre a Rádio Ñomndaa

“A Palavra da Água”, crônica sobre o VIII aniversário da Rádio e a luta pelo Rio San Pedro aqui no Passa Palavra (http://passapalavra.info/?p=69855)

Comunicado da Rádio Ñomdaa e apoiadores em defesa do Rio San Pedro, no Enlace Zapatista (http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2013/01/06/radio-nomndaa-la-palabra-del-agua-comunicado-en-defensa-del-rio-san-pedro/)

“Nn’an ncue Ñomndaa”, texto de David Valtierra sobre o povo amuzgo, sua visão de mundo e sua língua (http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/7/3098/17.pdf)

Fotografias de Luiza Mandetta, do interior da Rádio Ñomndaa.

9 COMENTÁRIOS

  1. No meu artigo de despedida ( http://passapalavra.info/?p=60646 ) escrevi que «a esquerda do século XXI abandonou a luta por um novo ser humano — um ser humano integral em quem deixem de ser pertinentes as divisões entre sexos e as diferenças entre as cores da pele e os formatos do nariz e dos olhos — e reforçou todo o tipo de particularismos. Superar os particularismos é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é transformar a sociedade numa colecção de particularismos, ligados pelo mercado. Ressuscitaram-se assim as condições ideológicas para a biologização da cultura, que foi a operação distintiva do racismo e, mais especialmente, do nacional-socialismo germânico». Ora, é exactamente isto que faz o entrevistado, com aplauso dos entrevistadores.
    Não é por acaso que o entrevistado defende uma noção de língua herdada em linha directa do romantismo alemão e que constituiu um dos elementos formadores do nacional-socialismo germânico. Que o entrevistado tenha ou não a noção disso em nada altera o facto. E agora esta concepção apresenta-se sob o disfarce de um discurso de esquerda.
    Há duas únicas linhas nesta entrevista que me dão alguma esperança, quando o entrevistado reconhece: «Ultimamente, entretanto, se têm perdido muitas palavras. As novas gerações têm outra formação, a cultura dominante penetrou muito através da televisão, das rádios comerciais, da escola». São estas novas gerações, que, em vez de se prenderem a uma língua que as particulariza, a abandonam e adoptam plenamente uma língua que as integra na generalidade do país e do continente e lhes permite o acesso ao mercado global de trabalho, são estas novas gerações que me dão alguma esperança. É com elas que se formará uma classe trabalhadora universalizada. Mas estas novas gerações são apresentadas na entrevista como algo negativo.
    E por que motivo quererão esses jovens inserir-se no mercado de trabalho mais amplo? O entrevistado não dedicou sequer uma palavra às relações de trabalho na comunidade tradicional que ele tanto elogia, ou seja, não mencionou as relações de desigualdade, de clientelismo e de exploração que ocorrem nas sociedades arcaicas. Nem os entrevistadores se lembraram de mencionar o problema. Ou pensarão que antes do capitalismo não existiam outros tipos de relações de exploração? E assim, sob o pretexto de anticapitalismo, se tece a apologia das relações de exploração pré-capitalistas.
    Ora, tudo isto ocorre no Passa Palavra, um site que inclui o antinacionalismo entre os seus princípios constitutivos. Será que não se dão conta de que esta entrevista é pura e simplesmente uma apologia do nacionalismo? Um nacionalismo de dimensões geográficas minúsculas não deixa por isso de ser nacionalismo, flagrante quando o entrevistado critica a comunidade de San Pedro Cuitlapa por ter «negocia[do] com o governo a água, a água que não é deles». E «não é deles» porque «antes da chegada dos espanhóis, essa localidade era parte do território amuzgo, mas com a chegada dos colonizadores houve dispersão, guerras e enfermidades, e hoje há lá poucos amuzgos, embora haja». Isto é nacionalismo na sua expressão mais abjecta — o racismo. Ou será que o racismo só o é quando os sujeitos são louros e de olhos azuis e deixa de o ser quando são escuros e com outros narizes?
    Para terminar, dá-me vontade de vomitar o que o entrevistado diz acerca da opressão das mulheres, legitimada pelo facto de se inserir na sociedade tradicional. Mas, ignoro se vocês sabem, também em Portugal há camponeses e também eles têm tradições e algumas tradições comunitárias, e é nesse contexto que as mulheres camponesas são oprimidas. Então, haverá neste colectivo algum voluntário para interrogar um desses camponeses acerca de tais hábitos e tradições que, de acordo com os princípios do entrevistado e dos entrevistadores, deverão ser mantidos? Algum voluntário para lhe registar as respostas quando ele disser que não se trata de opressão mas de divisão das tarefas e dos lugares sociais? Eu imagino o que a entrevistadora diria se o companheiro ou o marido lhe explicasse um dia que ela ficaria em casa a tratar dos filhos e a coser as meias porque esse é o seu papel na sociedade. Mas quando o mesmo se passa com índias — e nem vou aqui deter-me no que a palavra índia possa significar — então fica tudo muito bonito, deixa de ser machismo e passa a ser multiculturalismo. Quanta hipocrisia!
    Um destes dias publicarei excertos de um livro de Julius Evola, mas apresentando-o como se tivesse sido escrito por alguém de uma qualquer comunidade arcaica não-europeia, só para me divertir com os elogios que lhe hão-de fazer.

  2. Como parte de um projeto, que venho alimentando, de criticar em diversas frentes o multiculturalismo, tenho realizado uma série de leituras. Reproduzo, abaixo, para os leitores do Passa Palavra, um trecho de um ensaio que estou lendo com bastante interesse e que corrobora amplamente a crítica feita por João Bernardo no comentário acima.

    «Hoje em dia, o amor pela diversidade, o cuidado em preservar, por elas mesmas, a variedade das espécies naturais assim como as culturas tradicionais não são mais o apanágio de uma extrema direita romântica. A rejeição da uniformidade própria dos Tempos Modernos, o desprezo pelo consumo de massa, a crítica do universalismo cosmopolita se tornaram até mesmo “de esquerda”. Antigamente, a reivindicação do direito à diferença se situava claramente na órbita da Contrarrevolução: diante da abstração formal da “grande Declaração”, os primeiros “nacionalistas” reclamavam o retorno à tradição do direito dos ingleses, dos franceses, dos italianos… em suma, de cada comunidade concreta e específica. […] No melhor dos casos, por vezes, mas com freqüência no pior dos casos, entramos na era da suspeita generalizada em relação às “Luzes”. Ao mesmo tempo, a ideologia do direito à diferença deixou de ser ou de parecer “reacionária”, passando a se identificar com a aspiração absolutamente natural dos colonizados a uma singularidade desprezada pelo imperialismo eurocentrista. […] Donde o gigantesco paradoxo de que estamos longe de nos livrar: o fechamento em si mesmo, o comunitarismo e o nacionalismo mais exacerbados adquiriram a forma da revolução! E o processo, praticado no Terceiro Mundo, se prolonga hoje na luta de certas repúblicas do Leste contra os restos do antigo império soviético. Em toda parte, é o mesmo grito que ressoa: sejam bons muçulmanos, bons tchecos ou bons eslovacos, mas também bons franceses e, como em 1914, bons alemães… E ninguém pode dizer, com certeza, se a exortação é “de direita” ou “de esquerda”. Só a história e a sociologia permitem escolher entre teses que tendem, aqui e ali, entre os antigos oprimidos como entre os novos fascistas, a se confundirem. O mal radical seria a mestiçagem e o universalismo grosseiro que dominam o universo da técnica, da cultura e do consumo de massa. Uma única palavra de ordem, da extrema direita como da extrema esquerda: é preciso aprender a “ressingularizar” os modos de vida, a rediferenciá-los, contra a “unidimensionalidade” do mundo moderno. Apesar de toda essa confusão, e mesmo sendo conveniente ficar atento aos caminhos percorridos pelas ideias do passado de um extremo ao outro, é preciso admitir que no final do percurso os discursos diferencialistas se assemelham. O amor pelo meio ambiente é hoje a clara prova desse fato: pois o elogio da diferença, onipresente nas legislações nazistas, é encontrado quase que palavra por palavra nas versões mais “avançadas” da ecologia profunda». (Luc Ferry. A Nova Ordem Ecológica: a árvore, o animal e o homem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p. 191-193).

    Precisamos, com urgência, criticar e combater as visões obscurantistas e nacionalistas que estão, historicamente, a invadir silenciosamente o território da esquerda, fazendo-a convergir com a reação, e com maior intensidade agora, em “tempos pós-modernos”. Ou adotamos, de uma vez por todas, a perspectiva de emancipação do gênero humano em geral, mediante a revolução proletária internacional, repudiando abertamente as intrusões nacionalistas-obscurantistas em nossas fileiras, ou trabalhamos contra essa perspectiva, mesmo que inconscientemente. Nos departamentos universitários, só há elogios para a valorização da diversidade; nos programas dos partidos de esquerda, dá-se o mesmo. E contribuímos, assim, para que a classe trabalhadora afaste-se da perspectiva de emancipação que já lhe foi cara em determinados contextos históricos.

  3. João, houve um equivoco na sua acusação de racismo, pois a citação não está como você a coloca. Você juntou a parte que diz que San Pedro Cuitlapa negociou o rio “que não é deles”, com a afirmação que a cidade de Ometepec (e não San Pedro como você afirma) “era parte do território amuzgo”. Por tê-las confundido você disse que era racismo, mas o texto não diz isso.
    Mas agora resta a questão, se esse “não é deles” não quer dizer que “é nosso”, ele deve querer dizer que não é deles porque o rio é parte da natureza. Ora, se for isso, não sei o que é pior – o racismo ou a defesa inconsequente da “não interferência” do homem na natureza, pois se for isso mesmo a humanidade estaria condenada à penúria total.
    Quanto à questão das mulheres, queria comentar um ponto que não foi tocado ainda.
    Diz-se que as mulheres tem o “papel” de cuidar da casa e dos filhos e tear roupas. Ora, quando se diz que uma escola retomou o ensino de tear, o que isso quer dizer, se não que a condição opressiva da mulher passa a se perpetuar pela educação oficial, com os aplausos das “autoridades tradicionais”? E se, como admite o entrevistado, as mulheres já produzem para o mercado, as condições técnicas que eles possuem não extenderiam ao máximo a jornada de trabalho?

  4. Emerson,
    Não creio que o erro existente na minha citação iliba o entrevistado da acusação de racismo. Vejamos a passagem completa: «[…] uma comunidade chamada San Pedro Cuitlapa, que está perto do rio, numa parte acima do território amuzgo, e que foi um centro de controle no caminho para a montanha, negociou dar a água à cidade de Ometepec. Esta é a vila mais importante da região, lá estão os centros regionais de poder econômico e político, e é onde está mais forte a representação do Estado. Antes da chegada dos espanhóis, essa localidade era parte do território amuzgo, mas com a chegada dos colonizadores houve dispersão, guerras e enfermidades, e hoje há lá poucos amuzgos, embora haja. O atual governador nasceu em Ometepec e, em sua campanha eleitoral, prometeu dar água à cidade, margeada por um rio contaminado, que já não lhes serve – por isso agora estão de olho no rio daqui. O governador, então, elaborou um projeto e o negociou com a comunidade de San Pedro, que pediu escola, hospital, dois carros e não sei o quê mais. Todavia, negociaram com o governo a água, a água que não é deles […]». A «localidade» que «antes da chegada dos espanhóis» «era parte do território amuzgo» é Ometepec; «hoje há lá poucos amuzgos, embora haja». Ora, San Pedro Cuitlapa, situado «numa parte acima do território amuzgo», «negociou dar a água à cidade de Ometepec». Portanto, os de San Pedro Cuitlapa não tinham nada que negociar porque não pertencem ao «território amuzgo». E em Ometepec, por seu turno, já só restam «poucos amuzgos». Leio e releio esta passagem e sempre entendo que a questão da água está imbricada com a questão dos amuzgos considerados racialmente.
    De resto, concordo com as suas outras observações. Em primeiro lugar, parece-me exacto que aquela maneira de encarar a questão da água decorre também da sacralização da natureza. Você conhece a Lei da Mãe Terra, que o governo boliviano promulgou recentemente? E tudo isto é feito com o aplauso do que hoje se chama esquerda.
    Em segundo lugar, em muitas sociedades o ensino básico e a enfermagem são considerados extensões do papel tradicional da mulher, que nem trabalhando fora de casa se liberta do enquadramento cultural de que é vítima.
    Em terceiro lugar, a assimilação da economia doméstica pelo mercado implica sempre uma extensão da mais-valia absoluta. O mesmo se passa com a agricultura familiar.
    Tudo isto são questões que a entrevista, em vez de expor criticamente, só contribuiu para obscurecer.

  5. João,
    Estive pensando sobre algumas das suas críticas não só à este texto, mas também em relação ao MST e à agroecologia, e me apareceu uma dúvida: devemos considerar, então, as lutas sociais de base territorial ou comunitária necessariamente reacionárias? Para sair do caso dos indígenas ou camponeses, me pergunto: a luta de um bairro pobre ou de uma ocupação contra sua remoção é reacionária?
    Afinal, são em geral embates travados para barrar a forma tirânica com a qual o capitalismo se desenvolve, removendo populações de seus territórios, destruindo sua memória e identidade, etc. Ao mesmo tempo, argumenta você, que esse desenvolvimento do capitalismo leva à superação dos particularismos e à universalização da classe trabalhadora – portanto, do ponto de vista da formação do socialismo, é também um desenvolvimento positivo.
    Se assumirmos isso, invalidamos a luta da maior parte dos movimentos sociais do Brasil hoje. Mas a luta territorial ou comunitária, não foi justamente uma das únicas formas encontrada pela classe trabalhadora nas últimas décadas para continuar organizada, contornando o problema da fragmentação da produção?
    (E, se isso foi resultado de uma transformação do próprio capitalismo, não seria o próprio desenvolvimento deste que levaria os trabalhadores de volta à luta territorial?)
    Como você vê isso? A luta de indígenas para manter seu território é reacionária, enquanto a luta de trabalhadores urbanos não é?

  6. Caio,
    As lutas sociais são sempre contraditórias, por isso eu costumo dizer que há uma única luta vitoriosa, que é a última. Até lá — e ainda falta muito — as lutas ou serão esmagadas ou serão recuperadas pelo capitalismo, e esta é a forma mais perversa da derrota.
    As lutas têm como ponto de partida questões concretas, e portanto particularizadas. Ora, a situação do particular no global é sempre contraditória. Os trabalhadores de uma empresa exigem melhores condições de trabalho, o que constitui uma pressão no sentido do desenvolvimento da mais-valia relativa, ou seja, do desenvolvimento do capitalismo; mas se no processo de luta ocorrer a ruptura com a disciplina de empresa e o estabelecimento de relações solidárias e de igualdade entre os trabalhadores, então fica demonstrada na prática a possibilidade de existência de relações sociais não capitalistas. Esta dualidade verifica-se em muitos outros casos. Por isso creio que devemos distinguir entre os objectivos de uma luta e a forma de organização dessa luta. Os objectivos podem ser muito limitados e, não obstante, a forma de organização ser muito radical. É um processo complexo, que tratei noutros lugares, e não tenho aqui possibilidade de desenvolver o assunto.
    Mas devemos distinguir as situações em que as relações de luta acentuam as divisões de classe e aquelas em que, pelo contrário, contribuem para fundir classes opostas. Um luta dos moradores de uma favela contra um projecto de urbanização que pretende construir ali habitações de luxo é uma luta dos trabalhadores contra as classes dominantes. Pelo contrário, a luta de um dado povo, considerado etnicamente, em vez de acentuar as clivagens sociais contribui para fundir as classes existentes no interior desse povo. Veja este vídeo que o Passa Palavra publicou e que é um exemplo do que quero dizer:
    http://passapalavra.info/2013/02/72413
    Neste vídeo, que considero lamentável, o cacique é apresentado como representante legítimo daquele povo. Por que não apresentar então a cacique de Brasília como representante legítima da nação brasileira? Ou o cacique de uma empresa como representante do colectivo dos trabalhadores dessa empresa? Nos casos em que se trata de nacionalismos, mesmo podendo ser micronacionalismos, não se trata já de lutas pela ruptura social mas de lutas para confundir num mesmo conjunto classes distintas. O Manolo e eu analisámos um exemplo num dos artigos da série De volta à África:
    http://passapalavra.info/2010/07/26128
    O caso de Marcus Garvey, que teve uma enorme importância histórica e cujas repercussões são ainda hoje muito profundas, deveria ser considerado cuidadosamente por todos aqueles que evocam a «memória» e a «identidade», termos que se tornaram politicamente correctos nesta época de multiculturalismo. Toda a história se faz pela destruição de memórias e de identidades e pela construção de outras identidades, com outras memórias. Já pensou que aquela comunidade cuja identidade e memória alguns desejam defender se estabeleceu, numa época anterior, destruindo ou cindindo e assimilando outras comunidades? Por isso o que me interessa numa luta é a sua capacidade de ruptura e de criação de relações sociais de tipo novo, e não a sua capacidade de conservar o passado.
    Termino com o que já escrevi noutros comentários. Aconselho-o a ler Julius Evola e a imaginar como ele seria considerado hoje se tivesse outra cor de pele.

  7. Observei os comentários. O que venho pensando é que o
    João Bernardo é visto aqui nesse site como “militante” (nao sei se por ele mesmo também ou só por outros), mas na verdade é um ótimo intelectual orgânico. E quando comento isso não estou dimininuindo em nada o trabalho dele, simplesmente colocando as palavras nos seus lugares, serve para saber em que momento da luta pedimos conselhos ou não para ele. Por que será que esse “erro” se comete? Deixo pra vocês pensarem as razões, eu tenho pensando em algumas.

  8. A propósito do comentário anterior, que constitui uma forma corriqueira e não muito subtil de difamação, penso o seguinte:
    Alguém que conta várias prisões, uma condenação criminal, períodos de clandestinidade e que viveu durante sete anos com documentação falsa, tudo isto por motivos políticos, pode e deve ser considerado um militante.
    Não entendo o comentário de Caio como um pedido de conselhos mas como um pedido de esclarecimentos. Afinal, é para isso mesmo, para observações e esclarecimentos, que o espaço de comentários deveria ser reservado, embora infelizmente seja mais usado como espaço de insinuações e de calúnias.

  9. Não pedi um conselho, mas um esclarecimento sobre a visão do João Bernardo – e, dependendo da resposta, teria agora certeza que não compartilho dela em absoluto, mas não foi o caso.

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