Quando um dos mais importantes políticos negros dos Estados Unidos afirmou ter inspirado Mussolini, não foi apenas jactância de uma inegável megalomania, mas algo muito mais sério. Por Manolo e João Bernardo

Veja aqui todas as 5 partes da série De Volta à África.

Marcus Garvey
Marcus Garvey em 1922

Marcus Garvey fundou em 1914, na Jamaica, a Universal Negro Improvement Association (UNIA), e dois anos depois, ao estabelecer-se nos Estados Unidos, começou a mobilizar com a sua organização um número de participantes que só seria ultrapassado pela campanha pelos direitos cívicos, durante a década de 1960 [1]. Aliás, a UNIA conseguiu ter filiados praticamente por todo o mundo, e nesta perspectiva é ainda hoje um caso ímpar. O colossal apoio de massas de que ela beneficiou era especialmente notável, porque jamais conseguiu atrair os intelectuais negros, que em geral se mantiveram afastados ou lhe foram mesmo hostis [2]. E apesar da estrutura capitalista que Garvey imprimira à associação, os homens de negócios negros consideraram-na também com desconfiança [3], aliás justificada pelos acontecimentos posteriores.

A principal base de apoio da UNIA encontrava-se entre o proletariado negro das cidades do norte e do leste dos Estados Unidos. Tratava-se em grande parte de um meio social de formação muito recente, constituído sobretudo por imigrantes oriundos do sudeste do país e das Antilhas, que haviam sido atraídos pelo crescimento industrial. Com a participação dos Estados Unidos na primeira guerra mundial, o recrutamento militar de brancos permitiu aos negros encontrarem mais facilmente lugares nas fábricas, e além disso o elevado crescimento econômico no período de 1916 a 1918 e também durante a primeira metade da década seguinte exigiu quantidades maciças de mão-de-obra não-qualificada. Entretanto, a descida dos preços do algodão no mercado mundial contribuiu para estimular os negros a abandonarem os estados do sul. Nestas condições, o fluxo migratório tradicional atingiu uma dimensão sem precedentes e calcula-se que entre 1916 e 1918 cerca de meio milhão de negros se tivesse deslocado para os centros industriais do norte do país. Em Chicago, uma cidade exemplar sob este ponto de vista, enquanto o número de habitantes brancos aumentou de pouco mais de 20% entre 1910 e 1920, a população negra cresceu quase 150%.

Como todos os desenraizados, bruscamente retirados de um sistema social e ainda não assimilados por outro, esta gente mal habituada à vida urbana era uma vítima fácil, porque voluntária, dos messianismos [4]. Garvey parece ter sido um notável orador, magnético e cativante, ele viera no momento oportuno, era o Moisés Negro a indicar o caminho do cativeiro para a Terra Prometida.

Congresso da UNIA em 1922
Garvey no Congresso da UNIA em 1922

A partir de 1920 o programa da UNIA confundiu-se praticamente com o tema do regresso a África, e foi então que ela se tornou uma enorme organização de massas. Reunindo em Agosto de 1920 delegados de vinte e cinco países no primeiro congresso internacional de representantes da população negra, Garvey reclamou que a África fosse reservada aos africanos e que se organizasse o regresso a África dos negros de outros continentes [5]. Tratar-se-ia de uma verdadeira expedição colonial, porque em terras africanas os negros vindos do outro lado do Atlântico constituiriam inevitavelmente uma elite, detentora de capacidades técnicas e administrativas com as quais os autóctones não saberiam competir, e transformar-se-iam em exploradores da mão-de-obra nativa. Esses imigrantes negros, proclamou Garvey, iriam “ajudar a civilizar as tribos africanas atrasadas” [6], e se tal houvesse sucedido ter-se-ia reeditado em grande escala uma experiência anterior – a da Libéria, onde, como visto anteriormente, escravos emancipados tinham-se convertido numa classe dominante tão feroz que condenou ao trabalho forçado a população autóctone, a quem foi inclusivamente negado o direito de representação política.

E era agora a Libéria a inspirar Garvey. Em 1920 ele enviou a Monróvia uma delegação da UNIA, que regressou com a promessa de que o governo local facilitaria empreendimentos agrícolas, comerciais e industriais. No seu relatório, porém, o chefe da delegação, depois de ter insistido nas potencialidades naturais da Libéria, denunciou em termos vigorosos a elite desse país e chamou a atenção para o facto de os liberianos oriundos dos Estados Unidos manterem os nativos num regime de verdadeira escravidão. Mas, para não deteriorar relações que se afiguravam promissoras, Garvey decidiu manter secreto o documento [7] e lançou no final desse ano uma enorme campanha destinada a recolher os capitais necessários para a promoção econômica da Libéria, nomeadamente a edificação de vias de transporte e outras obras públicas, a inauguração de estabelecimentos de ensino e a construção de fábricas. No começo de 1921 estava instalada em Monróvia uma delegação permanente da UNIA.

O programa do regresso a África exigia que se aprofundasse a clivagem entre os negros norte-americanos e a restante população do país. Somada à sua experiência nas Antilhas e na América Central, onde uma elite mestiça dominava junto com os brancos o restante dos negros de pele mais escura, esta razão levou Garvey a aceitar teses racistas extremas, opondo-se à miscigenação e excluindo os mestiços do seu movimento [8]. Ele defendia a segregação e pretendia a pureza racial, manifestada em cores de pele bem diferenciadas, que testemunhariam a ausência de contatos:

“Eu acredito numa raça negra pura, tal como todos os brancos que se prezam acreditam numa raça branca tanto quanto possível pura” [9].

O que melhor caracteriza socialmente este projeto é a simpatia com que contou por parte de elementos dos estados escravistas do sul e a oposição com que deparou por parte da esmagadora maioria dos negros, que reivindicaram o direito de viver no seu país em situação de igualdade com o resto da população e denunciaram na colonização africana uma estratégia destinada a transferir além-mar os críticos mais enérgicos do escravismo [10]. Mas a escassez de realizações práticas e a antipatia generalizada dos negros não dissuadiu os promotores de um movimento migratório concebido para evitar que a população branca enfrentasse os problemas de uma sociedade etnicamente variada. Ao pretender aplicar um projeto semelhante ao da Libéria a UNIA inseriu-se numa arraigada tradição de defesa da hegemonia branca nos Estados Unidos. Quando o presidente Harding, em outubro de 1921, declarou no Alabama que era contrário à mestiçagem e favorável à segregação, Garvey enviou-lhe um telegrama de felicitações [11], e a UNIA não teve vergonha de apoiar uma proposta de lei apresentada por um senador da direita racista, que propunha o repatriamento para África de todos os negros norte-americanos. Embora por razões opostas, observou Garvey, os objetivos de ambos eram convergentes [12]. O que para uns era uma deportação era para outros o caminho da salvação. Vários historiadores têm comparado, com acerto, o movimento lançado por Garvey ao sionismo criado por Theodor Herzl, já que ambos se aliaram aos políticos racistas como forma de promover a migração, num caso dos negros para África, no outro dos judeus para a Palestina.

Garvey num desfile
Garvey num desfile

E assim se explica que Garvey tivesse beneficiado da aprovação do Ku Klux Klan e de outras organizações racistas brancas, cujos representantes foram frequentemente convidados a discursar nos comícios da UNIA. “A Sociedade Americana Branca, os Clubes Anglo-Saxônicos e o Ku Klux Klan gozam de todo o meu apoio na sua luta por uma raça pura”, afirmou Garvey sem quaisquer rodeios, “no mesmo momento em que nós estamos a lutar por uma raça negra pura” [13]. De certo modo, o Ku Klux Klan era praticamente contemporâneo da UNIA, pois renascera em 1915, e, como reivindicava o envio maciço dos negros para a África, patrocinava qualquer propaganda que pudesse mobilizá-los naquela direção. Aliás, Garvey não só elogiou publicamente o Ku Klux Klan pelo facto de pretender transformar os Estados Unidos numa nação branca como iniciou conversações secretas com delegados do Klan, chegando a deslocar-se a Atlanta em 1922 para se encontrar com o seu chefe supremo [14].

Os motivos que faziam Garvey procurar a aliança da extrema-direita branca levavam-no a hostilizar a esquerda e o movimento sindical, negro ou branco. Os comunistas que procuravam introduzir-se na UNIA eram expulsos e Garvey incitava os seus adeptos a dispersarem pela força os comícios da esquerda. Como tantos outros operários que começaram a vida política como sindicalistas e sofreram a experiência frustrante de greves derrotadas, Garvey convertera-se num adversário do movimento sindical. Em agosto de 1929, num debate público com um representante do sindicalismo negro, ele procedeu à apologia do sistema capitalista e declarou que os negros deviam acumular o seu próprio capital, para que os trabalhadores negros pudessem exercer a atividade em benefício de patrões da mesma cor [15].

Desde há vários anos Garvey defendia que eram os operários brancos os verdadeiros rivais dos operários negros e que, enquanto a comunidade negra não tivesse conseguido desenvolver uma economia capitalista independente da sociedade branca, os operários negros tinham todo o interesse em manter os seus salários num nível inferior ao dos brancos, para serem competitivos no mercado de trabalho [16]. Embora improcedentes sob o ponto de vista econômico, atitudes deste tipo refletem situações reais. Quando os operários brancos das cidades industriais assistiram ao afluxo inusitado de imigrantes negros e depararam com a concorrência dos recém-vindos nos empregos e nos espaços urbanos os conflitos étnicos multiplicaram-se, atingindo na segunda metade de 1919 um enorme grau de violência. Sem a existência de um racismo profundo na classe trabalhadora branca seria incompreensível o racismo e o anti-sindicalismo manifestado pela UNIA, e é este círculo vicioso que constitui o verdadeiro problema do racismo.

Pelas mesmas razões que a levavam a não admitir a existência de uma clivagem de classes e a considerar apenas uma divisão de raças, a UNIA apresentava-se também como quadro de uma solidariedade étnica entre capitalistas negros e trabalhadores negros. A orientação seguida pela associação tinha duas faces inseparáveis, defendendo por um lado a segregação completa de negros e brancos no interior dos Estados Unidos, e por outro lado inserindo o movimento em moldes capitalistas, através da fundação de empresas e grupos empresariais. Aliás, como observou um historiador, “a própria organização da Universal Negro Improvement Association obedecia aos mesmos princípios de qualquer negócio” [17]. A Negro Factories Corporation, cujo capital era reservado à participação de negros, tinha por objectivo constituir e explorar empreendimentos nos grandes centros industriais dos Estados Unidos, da América Central e da África, e esta sociedade conseguiu implantar-se em certos ramos de consumo especialmente vocacionados para a clientela negra [18].

Uma ação da Black Star Line
Uma ação da Black Star Line

Mas o negócio mais arriscado em que Garvey se lançou foi a constituição de uma companhia de transportes marítimos, também sustentada exclusivamente por capitais negros, sob a forma de uma sociedade por ações, a Black Star Steamship Line. Embora a criação desta empresa fosse anterior ao lançamento da campanha para o regresso a África e nos sonhos de Garvey ela devesse obedecer a princípios de rentabilidade capitalista, na propaganda política e na publicidade comercial ambas as iniciativas ficaram estreitamente ligadas. Garvey estipulou que ninguém podia adquirir mais de duzentas ações na Black Star Steamship Line, e em quatro anos uma quantidade superior a 155.000 ações foi vendida a cerca de 40.000 negros. A dispersão do capital evitava que Garvey se submetesse a um ou outro capitalista mais poderoso e assegurava-lhe a independência na gestão. Por seu lado, os homens de negócios negros desconfiaram da viabilidade econômica do empreendimento, e com toda a razão, porque aquisições insensatas e uma administração caótica acabaram por levar Garvey aos tribunais e a empresa à falência [19]. Na realidade, as concepções que presidiam aos negócios de Garvey estavam muito próximas da conhecida burla [golpe] da pirâmide de lucros e a Black Star Line dependeu sempre da entrada permanente de novos capitais. Em 1924, enquanto aguardava a decisão do tribunal de recurso acerca da sua condenação pelas fraudes que haviam acarretado o encerramento dessa companhia, Garvey fundou outra similar, a Black Cross Navigation and Trading Company, que tal como a anterior devia servir tanto para promover o comércio entre populações negras estabelecidas em diferentes partes do mundo como para repatriar os negros para África [20].

um navio da Black Star Line
Um navio da Black Star Line

Na emigração para África a UNIA levaria consigo não apenas uma estrutura empresarial mas também um aparelho político completo. O congresso negro internacional reunido em agosto de 1920 proclamou Garvey Presidente Provisório da República Africana e ele formou um governo cujos membros ostentavam designações curiosas, como Supremo Potentado ou Supremo Vice-Potentado, e deviam receber chorudas remunerações, que aliás parece não ter havido possibilidade de satisfazer. Para rematar, Garvey fundou uma Igreja Ortodoxa Africana, encabeçada por um patriarca consagrado expressamente, criou ordens de cavalaria e outras instituições honoríficas, inventou títulos disparatados, Príncipe de África, Duque do Nilo, Conde do Congo e mais de igual inspiração, estipulou hierarquias, mandou desenhar, costurar e emplumar vistosíssimos uniformes, para uso seu e de mais gente, formou movimentos paramilitares masculinos, femininos e infantis, que se exibiam em paradas de dezenas de milhares de participantes e aos quais faltava tudo, armas ou competência técnica, mas que possuíam nomes sonantes e roupas aparatosas, a Legião Africana Universal, as Brigadas Voadoras da Águia Negra, as Enfermeiras da Cruz Negra Universal, a Brigada Motorizada Universal, os Cavaleiros da Sublime Ordem do Nilo. Era a condição de proletário, com o seu estigma e as suas lutas, que o Moisés Negro recusava, acenando aos seguidores com a miragem da transformação em nova elite. Estavam todos a postos para o regresso a África.

Mas de tão grandiosos projetos de fomento, tudo o que os liberianos viram foi uma serração mecânica. E a falta de fundos, somada ao agravamento das rivalidades internas, retirou qualquer eficácia à atuação dos delegados de Garvey em Monróvia. O governo da Libéria, que de início considerara a UNIA como uma oportunidade de reforçar o capitalismo local, passou a encará-la como uma perigosa concorrente e talvez certas pressões das metrópoles coloniais europeias tivessem contribuído para esta mudança de atitude. O certo é que em junho de 1924 os governantes liberianos se opuseram terminantemente às atividades da UNIA no seu país, declarando que não autorizariam o estabelecimento de quaisquer colonos enviados pela associação. Como observou um biógrafo de Garvey, “na prática o movimento do regresso a África ficou liquidado quando a República da Libéria se recusou a apoiar o programa de colonização” [21]. Entretanto, outros africanos haviam denunciado a pretensão de Garvey a apresentar-se como presidente provisório da África e houve também nigerianos e senegaleses a pronunciar-se contra a colonização do seu continente pelos negros norte-americanos [22]. Com igual insucesso se deparou a delegação enviada pela UNIA à Abissínia no final da década de 1920, não se mostrando os governantes deste país interessados em qualquer afluxo maciço de negros americanos [23].

Perante tantos obstáculos, Garvey viu-se na necessidade de prestar atenção à política interna dos Estados Unidos e decidiu apresentar candidatos nas eleições, mas corria assim o risco de descaracterizar o seu movimento. Garvey nunca desistiu de encontrar uma base em terras africanas, e depois de romper com ele um dos dirigentes mais importantes da UNIA acusou-o de ter pretendido enviar uma delegação à Sociedade das Nações para requerer um mandato sobre certas regiões da África. Com efeito, em 1922 o representante da Pérsia na Sociedade das Nações aceitou apresentar uma petição da UNIA reclamando que fossem confiados a um governo constituído por negros os mandatos das antigas colônias africanas da Alemanha ou certos territórios da África Ocidental. E em setembro de 1928, numa época em que as multidões já não o escutavam e quando a UNIA estava à beira da irrelevância, Garvey deslocou-se a Genebra para comunicar novamente aquela reivindicação à Sociedade das Nações. Aliás, num discurso pronunciado pouco antes em Londres ele pedira às potências coloniais a concessão de algumas regiões africanas, mesmo as mais inóspitas, para serem entregues ao controle político e econômico de negros [24]. Garvey morreu em 1940 e um biógrafo resumiu-lhe duas décadas de atividade ao afirmar que “a ideia de fundar um Estado africano independente nunca deixou de fazer parte do programa de Garvey até ao final da sua vida” [25].

Garvey com o príncipe do Dahomé e com George Marke em 1924
Garvey com o príncipe do Dahomé e com George Marke em 1924

O Moisés Negro só aparecia como profeta enquanto pudesse acenar com o mito da colonização africana. Renegando a condição de proletários, Garvey e os seus seguidores propunham-se como “nação proletária” [26] ou, mais exatamente, pois é sempre disto que se trata, pretendiam-se classe dominante de uma “nação proletária”, nação nova, para cuja criação faltava apenas reunir estes potenciais capitalistas aos explorados de sempre, que do lado de lá do mar não sabiam o que as marés lhes reservavam. Com o seu conservadorismo econômico e o seu radicalismo político na mobilização das massas, a UNIA não se diferenciou de qualquer organização fascista nas suas tentativas de revolta dentro da ordem. Um movimento obedecendo a critérios de recrutamento estritamente étnicos e que apresentava como única via de salvação uma expansão territorial conduzida em termos raciais deve ser considerado como uma primeira edição do partido de Hitler. Já em 1922, quando se acumulavam as dificuldades da Black Star Steamship Line e Garvey iniciava os confrontos com a justiça, ele atribuiu as suas dificuldades simultaneamente aos agentes do comunismo e aos capitalistas brancos [27], antecipando um tipo de denúncias que seria depois a especialidade dos nazis. Nem faltou aos dirigentes da UNIA o anti-semitismo, elemento indispensável para introduzir certa coerência naquela dialéctica absurda [28].

Ao lermos a descrição das cerimônias públicas em que o Moisés Negro recebia as homenagens de uma corte de dignitários da Legião Africana empunhando espadas e vestidos de uniformes de gala, acompanhados por esposas cobertas de jóias, compreendemos que ainda neste pendor para a política exercida como uma encenação Marcus Garvey se revelou fascista. Ele não fugiu à verdade quando, três anos antes de morrer, considerou Mussolini como seu discípulo:

“Nós fomos os primeiros fascistas. Disciplinamos homens, mulheres e crianças e preparamo-los para a libertação da África. As massas negras viram que só neste nacionalismo extremo podiam depositar as suas esperanças e apoiaram-no de imediato. Mussolini copiou de mim o fascismo, mas os reacionários negros sabotaram-no” [29].

Os “reacionários negros” não haviam feito mais do que reconhecer que o capitalismo norte-americano estava já demasiadamente evoluído para abandonar os negros que integrara e que inelutavelmente convertia em proletários assalariados, na maioria, em empresários, uns poucos. C. L. R. James, socialista antilhano que considerava o slogan de “retorno à África” como “fantástico e reacionário”, sintetizou a situação com uma analogia muito comum à época, e mesmo depois: “Os negros desejaram retornar à África por sua própria vontade tanto quanto os judeus alemães, antes de Hitler, desejaram ir à Palestina” [30]. Nos seus termos estritos, o projeto de ida para África fora um sonho, que se desvaneceu em 1924 perante a relutância dos africanos e o descontentamento das metrópoles europeias. Não foram o Presidente Provisório, os seus ministros e o seu patriarca, as suas milícias carnavalescas quem sucedeu aos colonialistas europeus na exploração do proletariado da África. As independências políticas não trouxeram classes dominantes de além-mar, promoveram-nas entre os autóctones, não menos cúpidas nem menos aparatosas do que quaisquer outras.

Mas o fracasso prático de Garvey não representou um insucesso ideológico. Centenas de milhares de pessoas o haviam seguido, muitas mais o haviam escutado e a imprensa da UNIA atingiu durante anos uma tiragem considerável, sendo lida em diversos países e territórios coloniais, e proibida em alguns deles [31]. Mesmo a condenação de Garvey, em fevereiro de 1925, por fraude relacionada com a Black Star Line, a sua detenção durante quase três anos e a sua expulsão dos Estados Unidos em dezembro de 1927 não liquidaram imediatamente o movimento, e até ao começo da década de 1930 a UNIA mobilizou ainda numerosos adeptos. Por isso a mensagem doutrinária de Marcus Garvey tem ocupado até aos dias de hoje um lugar significativo na ideologia de muitos políticos negros, tanto nos Estados Unidos como noutros lugares, e não só na extrema-direita do movimento negro, francamente anti-semita e partidária da livre empresa capitalista, mas igualmente na esquerda radical.

Stockely Carmichael
Stokely Carmichael

Quando Stokely Carmichael, um dos mais notáveis expoentes do militantismo negro de esquerda dos Estados Unidos na segunda metade da década de 1960, partiu para a Guiné, também ele apelou para a emigração maciça dos negros norte-americanos com palavras que lembram as usadas por Garvey:

“A África não precisaria de estar dependente de técnicos estrangeiros para a reparação e a manutenção do mais moderno equipamento importado. Os técnicos africanos existem, eles estão na América. […] A nossa terra é em África, não na América. O nosso objectivo principal deve ser a África” [32].

Em meio século o capitalismo evoluíra e não era já enquanto nova burguesia que Carmichael concitava os seus irmãos de cor a atravessarem o Atlântico, mas enquanto tecnocracia, que com as suas habilitações e a sua experiência não deixaria de se impor aos autóctones. Os termos haviam-se atualizado, mas mantinham-se inalteradas as consequências desta dialéctica social.

NOTAS

[1]: Edmund David Cronon. Black Moses: the story of Marcus Garvey and the Universal Negro Improvement Association. Madison e Londres: University of Wiscosin Press, 1968, p. 3 (parcialmente disponível em http://books.google.com.br); George Padmore. Panafricanisme ou communisme? La prochaîne lutte pour l’Afrique. Paris: Présence Africaine, 1960, p. 97-98.

[2]: E. D. Cronon, ob. cit., p. 171; Arthur Herman. The idea of decline in Western History. Nova Iorque: The Free Press, 1997, p. 211.

[3]: E. D. Cronon, ob. cit., pp. 52, 73-74.

[4]: Para a análise da base social do movimento de Garvey ver id., ibid., pp. 22-27 e 40 e segs.

[5]: Id., ibid., p. 65.

[6]: Citado em A. Herman, ob. cit., p. 211.

[7]: E. D. Cronon, ob. cit., p. 124.

[8]: Id., ibid., p. 191; G. Padmore, ob. cit., pp. 99, 100.

[9]: Citado em E. D. Cronon, ob. cit., p. 193, A. Herman, ob. cit., p. 212 e G. Padmore, ob. cit., p. 99. Segundo Edmund David Cronon em op. cit., p. 191, Garvey declarou em 1923: “Eu acredito na pureza racial e na conservação dos padrões de pureza racial”. E continuaria a proclamar os mesmos princípios em agosto de 1929, no exílio jamaicano, a crer em id., ibid., p. 152.

[10]: Eli Ginzberg e Alfred S. Eichner. El negro y la democracia norteamericana. México: Unión Tipográfica Editorial Hispano-Americana, 1968, pp. 70-72.

[11]: E. D. Cronon, ob. cit., pp. 194-195.

[12]: Id., ibid., pp. 186-187.

[13]: Citado em A. Herman, ob. cit., p. 214.

[14]: E. D. Cronon, ob. cit., pp. 103, 188-191; A. Herman, ob. cit., p. 213; G. Padmore, ob. cit., pp. 99-100, 106-107.

[15]: E. D. Cronon, ob. cit., p. 152.

[16]: Id., ibid., pp. 195-196.

[17]: Id., ibid., p. 61.

[18]: Id., ibid., p. 60.

[19]: Id., ibid., pp. 50-59, 78 e segs., 101, 112 e segs.

[20]: Id., ibid., pp. 121-122.

[21]: Id., ibid., p. 130.

[22]: Id., ibid., pp. 106-107, 127-128.

[23]: R. D. Ralston e Albuquerque Mourão. “Africa and the New World”. Em: UNESCO International Scientific Committee for the Drafting of a General History of Africa (org.) General history of Africa, vol. VII: A. Adu Boahen (org.) Africa under colonial domination, 1880-1935. Londres: Heinemann; Berkeley: University of California Press; Paris: UNESCO, 1985., pp. 749-751.

[24]: E. D. Cronon, ob. cit., pp. 109, 147-148.

[25]: Id., ibid., pp. 186.

[26]: Um dos principais elementos ideológicos do fascismo foi o conceito de “nação proletária”, formulado pela primeira vez por Enrico Corradini entre 1908 e 1910. Os fascistas apresentaram a segunda guerra mundial como uma luta das “nações proletárias” contra as “nações plutocráticas”, e o terceiro-mundismo herdou uma boa parte desta perspectiva.

[27]: E. D. Cronon, ob. cit., p. 101.

[28]: Id., ibid., pp. 163, 200; A. Herman, ob. cit., pp. 213, 214.

[29]: Citado em E. D. Cronon, ob. cit., p. 199 e G. Padmore, ob. cit., p. 106. Ver ainda A. Herman, ob. cit., p. 213.

[30]: C. L. R. James. “The right of self-determination and the negro in the United States of America”. Resoluções da Convenção de Nova Iorque do Socialist Workers Party, 11 jul. 1939. Disponível em http://www.marxists.org/archive/james-clr/works/1939/07/self-determination.htm

[31]: No Brasil, Abdias do Nascimento, ativíssimo militante do movimento negro, foi leitor de artigos de Garvey publicados na imprensa da Frente Negra Brasileira, à qual era filiado. Ver seu depoimento no documentário Abdias Nascimento (dir. Antonio Olavo. Brasil, 2000).

[32]: Citado em The Economist, 21 de Novembro de 1998, p. 98.

[Veja aqui a quarta parte desta série de artigos.]

23 COMENTÁRIOS

  1. Uma questão aos autores:

    E onde está o movimento Rastafári nisso tudo? Garvey é tido como um de seus profetas, por vezes considerado o segundo João Baptista, arauto do Messias Hailê Selassiê. E se não me engano, no imaginário rasta inicial, seriam os próprios navios da Black Star Line a conduzir os negros americanos de volta à África.

  2. Caro Roberto,
    Convidamo-lo a esperar pelo artigo seguinte desta série, que deverá ser publicado no próximo domingo.

  3. A Plataforma Guetto colocou no Facebook uma chamada de atenção para uma tal Universidade Marcus Garvey, um evento que ocorre entre 2 e 4 de Agosto de 2013:
    https://www.facebook.com/events/630587313634513/?ref=3
    A Plataforma Guetto esclarece que «este evento enquadra-se dentro de um conjunto de programas de formação política organizado pela Plataforma Gueto com o objetivo de munir-nos, enriquecer-nos de conhecimento que nos emancipa». A Plataforma Guetto considera ainda Marcus Garvey como «um dos mais importantes líderes africanos de todos os tempos».
    É necessário que a chamada esquerda tenha chegado a um grau muito profundo de degradação para escolher como luminária um político confessadamente fascista e racista, anti-sindicalista e anticomunista, e cujos projectos relativamente à África denotavam um acentuado neocolonialismo. Seria interessante que a Plataforma Guetto divulgasse a opinião que a National Association for the Advancement of Colored People tinha a respeito de Marcus Garvey. Aliás, faço notar que uma das obras usadas neste artigo para fazer a crítica do movimento de Garvey tem como autor o pan-africanista George Padmore.
    Na época de Garvey eram necessários os fascistas para enterrarem os valores da esquerda, mas hoje a própria esquerda se encarrega de se enterrar a si mesma.

  4. Eu estive na formação da plataforma gueto e foi esclarecido a todos os presentes as contradições de Garvey. Fingir que Garvey (quer se goste ou não) não foi um líder importante no século XX é simplesmente mentir. Pelo que percebi foi dado a entender que Garvey vem antes de muita coisa e olhou para o mundo de um ângulo que a esquerda não vê. De várias leituras de africanos do campo do socialismo são apresentadas figuras que materialmente (e não teoricamente) contribuiram para a dignificação dos africanos no mundo de para a sua união no mundo.Ainda hoje uma boa parte do mundo pobre que nem proletário chega a ser é negro ou tem “melanina a mais”, ignorar isto é mentir. Por isso ignorar que Garvey contribuiu para que muitos pobres o deixassem de ser é omitir. Falar das vergonhosas relações de Garvey com o KKK sem explicar o que se tirou daí também é omitir. Fingir que a esquerda comunista e J.Edgar Hoover não procuraram arrebentar com o movimento AUTO-SUFICIENTE que Garvey iniciou é OMITIR. Falar da posição de Garvey perante aqueles mestiços intelectuais da NAACP que lhe chamaram “PRETO GORDO E RIDÍCULO” é omitir. Fingir que a esquerda portuguesa, a esquerda russa, chinesa e cubana não procurou apenas garantir que numa nova ordem africana eles teriam acesso aos recursos africanos é ser desonesto. Fingir que a emancipação das pessoas não passa por elas não esperarem mais nada de ninguém a não ser delas próprias tal como Garvey disse a todos os africanos que eram e são essencialmente pobres e por isso deviam ter a sua emancipação monetária e financeira , fingir que não é preciso ter dinheiro para mudar o mundo é ser revolucionário de teclado e esquerdista de boca. Garvey teve defeitos grandes mas o mundo tremeu com a sua ideia de unir os africanos universalmente. Esta ideia essencialmente esta é a ideia( prática) que passa de geração e geração que vai aprendendo com os erros de outros. Ou será que todos os marxistas continuam tão racistas como os primeiro socialistas?

  5. Este artigo é suficientemente elucidativo acerca das contradições do movimento de Marcus Garvey e acerca das implicações neo-imperialistas que teria o seu regresso a África. O comentador anónimo que assina «eu» esqueceu-se, entre os grandes elogios que tece a Garvey, de mencionar estas frases do seu mestre: «Nós fomos os primeiros fascistas. Disciplinámos homens, mulheres e crianças e preparámo-los para a libertação da África. As massas negras viram que só neste nacionalismo extremo podiam depositar as suas esperanças e apoiaram-no de imediato. Mussolini copiou de mim o fascismo, mas os reacionários negros sabotaram-no». A questão é esta.

  6. Não cabe tudo numa mensagem e há coisas para fazer para além de teclar.Mas continuemos, o propósito (se percebi bem) da plataforma foi de dar a conhecer uma das figuras incontornáveis no século vinte, alguém cujo o compromisso político e objectivo filosófico-político antecede a revolução de 1917 até.Garvey passou em Lisboa em 1913 e um ano depois já estava a sintetizar a sua análise com base em algo que até hoje esquerda direita ou centro nenhum conseguiu impedir; ou seja o facto da maioria dos africanos no mundo estarem em condições de pobreza. Antes de nascer o fascismo já havia Garvey, antes de teóricos europeus sintetizarem a ideologia fascista e o poder carismático que passou a estar em voga da esquerda à direita, já Garvey tinha organizado, movimentado e emancipado as massas. A plataforma defende-se como um movimento Anti-imperialista e está claro há anos que é essa a sua luta. Fingir que não existiu um Garvey e que este não teve impacto internacional em muitos papás de libertadores africanos (incluíndo os que foram todos assassinados com apoios de CIA e quicá KBG), fingir ou tentar passar a borracha sobre este primeiro ensaio de movimentação de massas é esconder a história. Por isso, foram beber em Garvey muitos de esquerda e de direita e não o reconhecem O nacionalismo africano; ora falemos desta ideia. África é um país? Não! A unidade africana está mais coesa? Podia estar mais. Disciplina militante é má? Apenas para quem não passa das palavras e nada ou pouco age.As mulheres pela primeira vez tomam parte de uma organização na qual não querem ter um papel subalterno: sim ( a senhorita Garvey fez questão disso) elas fizeram questão de mostrar o seu igual valor nesta organização em 1914 (14 não 17).Se este artigo é elucidativo, também o foi a formação que ocupou o primeiro dia da universidade de verão, pois nela toda essa informação foi partilhada com os presentes como importante matéria de reflexão. Não se omitiu às pessoas nada do que hoje não se considera de valo nem o que é hoje inválido aceitável ou impossível.Foi este o objectivo e foi cumprido e os outros presentes que o confirmam. Em vez de fingir que não existiu um Garvey a plataforma lançou o seguinte desafio: vamos falar desta figura que está no nascimento da organização contra a opressão que procura subjugar africanos; vamos ver o que há de bom e de mau nesta experiência.Mas tal como no primeiro parágrafo deste texto, o trabalho prático de Garvey na ORGANIZAçÂO e DISCIPLINA necessária para a mudança é impossível de se esconder. De resto, sem reflectir e sem olhar para trás não se sabe onde estamos nem onde queremos estar.Finalizando com a já habituaç chamada de atenção: as lentes eurocêntricas não são as únicas válidas para interpretar o mundo.Atenção. Já basta a exportação do capitalismo, da democracia de fachada só faltava agora a exportação do modelo moral. É exactamente outra coisa que se tira de Garvey, africanos olhem para vocês pelos vossos próprios olhos e resolvam os vossos problemas com as vossas próprias mãos.Algo que no final da sua vida o seu rival Dubois reconheceu ser algo em que Garvey tinha razão (para além de secretamente assistir aos discursos de Garvey em Madison Square Garden). Fica sempre bem a alguém falar ou criticar acções quando pelo menos esteve presente no local onde se desenvolveram em vez de fazer serviço de opinação remota.

  7. Este artigo tem dois autores. E se o anónimo comentador «Eu» sabe onde nasci e qual é a cor da minha pele, vejo que ignora a taxa de melanina na pele do Manolo e qual é a sua nacionalidade. Fez a Plataforma Gueto muito bem em não ignorar Garvey. Os factos históricos existem precisamente para ser conhecidos. Mas faço notar que já dois anos antes, em 4 de Julho de 2010, este artigo de uma série dedicada pelo Passa Palavra ao mito do retorno a África não ignorara Garvey. Aliás, talvez a leitura de toda a série fosse útil às pessoas da Plataforma Gueto. Não ignorámos também que Marcus Garvey se classificou a si próprio não só como fascista mas como o verdadeiro criador do fascismo. A questão é esta e só esta, e não há como fugir-lhe.

  8. Lamento. Mas devo dizer-lhe que me parece faltar-lhe seriedade. Se agora assume e afirma remontar para 2010 o seu trabalho ou chamada de atenção sobre Garvey, e por isso aconselha a plataforma a ler outros artigos da série (que por acaso acabei de ler); creio que antes de criticar a esquerda ou procurar conotar de esquerda ou direita tudo o que se move no cenário político activista devia pensar que você não procurou perto de ninguém da plataforma saber quais eram as intenções da plataforma ao mostrar o percurso da figura em questão. Se você em 2010 pode escrever sobre Garvey, porque não podem outros em outros contextos e realidades falar sobre Garvey? É lhe reconhecida alguma especial autoridade moral , alguma exclusividade sobre o assunto? De novo Garvey, mas poderia ser Malcolm ou Fanon, ou simplesmente qualquer pessoa viva que conheça a realidade dos africanos; escolha qualquer um destes nomes ou um anónimo africano ou seu descendente e verá que a origem ou cor da pele nem sempre revelam a máscara social que muitos vestem. Foi Garvey a chamar atenção a negros jamaicanos que não deviam ter vergonha de se assumiram como negros em vez de se afirmarem brancos. Aliás quem conhece o seu percurso percebe como este episódio lhe custou caro. Mas poderia ser dito o mesmo por Fanon, ou por mim face a muitas pessoas que vou encontrando ao longo da minha vida com proporções diferentes de melanina ( mais escuro ou não) mas com a ideia comum de serem brancos ou simplesmente não-negros ou não-africanos.A sua pele não lhes serve. É comum este comportamento e entre várias vozes a de Garvey foi uma daqueles que disse: Olha-te ao espelho e não te aches feio ou inferior como negro, como africano. Mas o elevado estatuto social está associado ao Branco e não ao Negro, fora de África e dentro dela, ontem e hoje .Por isso neste exacto momento em que trocamos opiniões ( e qualquer pessoa a que me dou ao trabalho de responder o faço como prova de respeito) neste momento temos pessoas que não são brancas a terem como modelo de beleza particularidades biológicas que não são as suas.Há necessidade destes quadros mentais levarem pessoas a processos de transformação química do seu ser? Têm toda a liverdade e direito de o fazer apenas pergunto porque razão o fazem. A realidade é que a fanfarronice de Garvey esconde uma verdade, ele fez muito daquilo que fascistas (e anti-fascistas) foram copiar e não assumem, ele reclama o fascismo rigorosamente como invenção sua ou estilísticamente hiperboliza para chamar atenção ao facto de a sua criatividade politico-organizacional ser de tal modo forte que os mais improváveis seguidores surgiram? Vejamos: África não precisa de se libertar hoje? Não é necessário que africanos também tenham acesso a educação e recursos de outra ordem hoje e em África? As elites africanas de hoje não continuam a depositar o seu capital financeiro e a sua imagem em caixas-forte do Ocidente? Você aceita o conceito pós-colonialismo? Você está a ver alguma guerra mundial a ocorrer como fruto da busca de um espaço vital Garveyano?Você está a ver alguma potência africana sentada no conselho de segurança ou a subjugar economicamente e financeiramente um país ocidental? Você está a ver alguma colónia africana na Europa? Você acha que o retorno a África e a união internacional dos africanos não passam de orquestrações do Ocidente e que em nada é natural ao afrodescendente procurar se aproximar de África e contribuir para o seu sucesse? Responda-me, quantos “euro-africanos” vivem em Acra?Qual tem sido o padrão migratório deste grupo desde que Kwame Nkruma tomou o poder? E já agora a mesma pergunta sobre o resto de África. Sou africano, cheguei recentemente de uma áfrica onde mais de 10% da população da capital são eurodescendentes.São bem tratados e bemvindos todos os que vão por bem, incluíndo todos os descendentes de africanos espalhados pelo mundo e todas as pessoas de bem para com África. Então porque não procurar levar o melhor da diáspora para trabalhar em ou para África? Isto parece-me muito diferente do discurso que mais tarde fascistas vieram ter. O fascismo expandiu-se para colonizar o mundo e África como parte dele. O Garveyismo simplesmente (e desastradamente é certo) procura que africanos voltem a África, ou auxiliem África. Fica muito correcto esclarecer que a Black Star Line para além de levar pessoas de volta a África, proporcionava doação e troca de mercadorias com África, auxiliando muitos que se acenturavam em negócio próprio PARA DEIXAREM DE PERTENCER Á CASTA SERVIL. E sobre os sindicatos: não tivessem os sindicatos sido tão cínicos e conservadores em relação aos negros e estes não se sentiriam com a necessidade de ingressar na UNIA para poderem exercer as suas profissões com dignidade e segurança.Lembremo-nos, Garvey foi sindicalista, creio que sabia do que falava.Até porque não foi o único e não é novidade hoje experenciar o conservadorismo dos sindicatos face a questões raciais. Pelo menos onde estou. Boa noite e bom estudo.

  9. Se, na sua Universidade de Verão, a Plataforma Gueto ensinou realmente que Garvey era fascista mas que, apesar disto, ele teve muitos aspectos positivos, então a coisa é ainda pior do que eu pensava.

  10. Meu caro, sejamos rigorosos então. Algo comum aos totalitarismos são campos de concentração, censura, polícia de regime e arrastarem o Mundo para guerras mundiais. Falando por mim e sobre o que percebi é que se tratou de um recurso estilístico infeliz a hiperbolização de Garvey, aliás algo comum à demagogia de Garvey e algo que decididamente não se esconde mas se recorda precisamente para evitar que mentes menos habituadas a reflectir políticamente acabem por escolher as mesmas soluções descabidas, hoje. E para isto serve a história. Em bom rigor, como eu afirmava, Garvey faz parte da era dos grandes demagogos, da política inflamada e não é a esconde-lo que as pessoas vão reflectir sobre os riscos desse facilitismo. Mas Garvey antecede todas essas organizações fascistas e é isso que ele quer dizer .É isso que ele afirma. Não tivemos com Garvey polícia secreta da UNIA a vasculhar a vida de outros pelo contrário esse foi mais o trabalho do Fascista J.Edgar Hoover para destruir o trabalho de Garvey.Mas também dos espiões da NAACP e de Dubois o minaram. De fascismo Garvey não tem nada nem de outro tipo de totalitarismo, liderou uma organização internacional e não um país, e procurou aumentar a auto-estima de gente que continuava escrava e que por azar dos azares tinha a pele negra!! Que novidade!Essa gente que ficou privada do democrático direito de voto até à morte de Garvey na “América democrática”.Que facho era Garvey por querer que estas pessoas se libertassem da sua condição de cidadãos de terceira categoria| Se não tem polícia de regime, nem tivemos UNIA a enviar milícias a ninguém nem sequer ao KKK ( que merecia), se não temos censura, e temos os discursos de Garvey a revelarem a apologia de uma África Democrática; como não perceber a piada que tanto preocupa o autor deste artigo e intitula-o? Como? Simples. O autor do artigo não consegue identificar o campo de concentração fascista que Garvey criou porque ele não existe. O autor não consegue encontrar nos estatutos da organização de Garvey a palavra fascista porque ela não o era! O Autor não consegue encontrar o regime autocrático de Garvey porque o mesmo não era governante (por mais que apregoasse ser) mas era sim líder de uma organização cívica e internacional. Garvey apenas afirma em tom provocatório ( e todos percebem isso) que os fascistas copiaram-no ( e outros totalitaristas não esqueçamos); é essa a provocação de Garvey que não tem nenhum plano fascista de exterminar em campos de concentração nenhuma “raça” porque está demasiado preocupado em resolver problemascomuns de negros internacionalmente, de África e nisso e nada mais se concentrou. Trabalho que chegue num mundo dominado pelo Ocidente como o de hoje é.E qual é a cor dos Ocidentais e dos 1% e dos G8 e Bilderbergs? Será maioritariamente “mestiça”, “amarela”, “negra” , “marron” , “vermelha”; meu caro creio que a tonalidade é essencialmente uma gama de rosa, salmão, beje… sei lá?? Portanto creio que dizer que Garvey foi fascita é uma provocação gratuita e um imprecisão intelectual grave. Mas talvez seja eu a estar errado e preciso aprender mais qualquer coisa sobre Garvey. Mas afirmar que a Plataforma é uma organização que apresenta Garvey como um fascita acho-o simplesmente ridículo e provocatório.Ridículo, mesquinho e provocatório. Boa noite João Bernardo, afinal o SINISTRISMO não é ultrapassado com o advento de novas gerações.A direita agradeçe-lhe João!A extrema mesmo.

  11. Sim, aínda, porque apenas reparei que não foi feita no texto, nenhuma referência ao que em 1937 Garvey escrevia de Mussolini e de Selassie. Pois ficaria muito bem a tão precisos e rigorosos autores aprofundarem a denúncia que Garvey fez sobre a animalidade do fascismo e sobre a covardia de Selassie. Mas isso talvez interesse apenas a pessoas da plataforma falar; nessa tão repreensível reflexão histórica sobre Garvey e a sua passagem por Lisboa. Lamento informar os escolásticos que não se resume a Garvey o fascínio que as massas proletárias fascitas italianas tinham provocado. Mesmo na África falante de Português houve registo de um primeiro momento de fascínio em relação a esse demagogo “moreno” do Sul da Europa, muitos se deixaram embarcar pela demagogia carismática e populista de Mussolini para mais tarde aprender com a sua ingenuidade política. Mas o fenómeno quando explodiu fascinou o Mundo e por isso nos nossos livros de história também falamos de Mussolini, Hitler, Salazar, Franco, Riviera entre outro… porque a história não se esconde e porque ( embora me desagrade muito afirmar isto) são temas importantes, para reflectirmos sobre extremos, racismo, guerra e até que ponto o homem pode ser o pior animal á face da terra. É importante falar de Garvey quer se goste ou não.

  12. Africanos são mesquinhos!!!!! Por que repudiam tanto os líderes negros na América como a figura de garvey???? Obvio, na prática ele teve muitas falhas, na ideologia também, mas isso não tira o mérito dele… Garvey, apesar de ser chamado de ”O primeiro fascista”, termo criado por europeus e ele aceito se chamado assim, ele nunca matou e nem queria criar ser hostil com uma raça. Raças existem, é podemos já admiti isso. As teorias racistas não foram refutadas, apenas engavetadas pela ONU, UNESCO, INSTITUIÇÕES JUDAICAS-MAÇONS, MAS NA MENTALIDADE EUROPEIA A SUPERIORIDADE RACIAL DOS BRANCOS ESTAR PERFEITAMENTE NA SUA LETRA E NO SEU ESPÍRITO. NEGAR A EXISTÊNCIA DELA NÃO MUDARÁ ISSO. MARCUS GARVEY NÃO FOI NENHUM DEMAGOGO, SUAS IDEIAS PRÁTICAS FORAM INVIÁVEIS. DEMAGOGIA É UMA ESTRATÉGIA DE ENGANAÇÃO BEM ENGENHADA DE UMA FORMA ANTECIPADA POR POLÍTICOS DENTRO DO SEU GABINETE PRA ENGANAR TODA UMA NAÇÃO. ESSE NÃO ERA E NUNCA FOI O CARÁTER GARVEYSTA. VIVA MARCUS GARVEY E MAIS REPEITO PELO ESTE NOME.

  13. Importante reflexão, garvey foi importante, pena que algumas.decisoes foram controversas, pena que rachou com os irmãos pretos socialistas .

  14. Quando alguém se presta ao trabalho de tentar salvar algo de progressista em um sujeito declaradamente fascista, fica claro até onde a ideologia identitária pode chegar, seja ela branca ou preta.

  15. Paulo Henrique,

    Enquanto um dos autores dessa série de artigos, e nomeadamente deste artigo sobre Marcus Garvey, a minha resposta à sua questão consta no ensaio Outra face do racismo, publicado em 2020, e cuja primeira parte pode ler aqui. Para as partes seguintes pode ver os links.

    Já agora, no caso de ser útil, informo que esse ensaio foi há pouco publicado em França, em língua francesa, como pode ver aqui.

  16. Caríssimos,

    Já que o Paulo Henrique colocou o link para esse texto do Antonio Risério, resolvi copiá-lo e colá-lo aqui, já que o acesso a ele está restrito a assinantes da Folha.

    Um abraço a todos do,
    Antonio

    “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo
    Sob discurso antirracista, o racismo negro se manifesta por organizações supremacistas

    Antonio Risério
    Poeta, romancista e antropólogo, autor de “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” e “As Sinhás Pretas da Bahia”

    [RESUMO] Ataques de negros contra asiáticos, brancos e judeus invalidam a tese de que não existe racismo negro em razão da opressão a que estão submetidos. Sob a capa do discurso antirracista, esquerda e movimento negro reproduzem projeto supremacista, tornando o neorracismo identitário mais norma que exceção.

    Todo o mundo sabe que existe racismo branco antipreto. Quanto ao racismo preto antibranco, quase ninguém quer saber. Porém, quem quer que observe a cena racial do mundo vê que o racismo negro é um fato.

    A universidade e a mídia norte-americanas insistem no discurso da inexistência de qualquer tipo de “black racism”. Casos desse racismo se sucedem, mas a ordem-unida ideológica manda fingir que nada aconteceu.

    Ilustração de rosto masculino dividido no meio, costurado, com a boca aberta, como se gritasse. De um lado ele é negro, de cabelos pretos e olhos castanhos e do outro, loiro de olhos azuis.

    O dogma reza que, como pretos são oprimidos, não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca. É uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo.

    A história ensina: quem hoje figura na posição de oprimido pode ter sido opressor no passado e voltar a ser no futuro. Muçulmanos escravizaram e mataram multidões de pretos durante séculos de tráfico negreiro na África.

    No entanto, a visão atualmente dominante, marcada por ignorância e fraudes históricas, quando não pode negar o racismo negro, argumenta que o racismo branco do passado desculpa o racismo preto do presente. Mas o racismo é inaceitável em qualquer circunstância. A universidade e a elite midiática, porém, negaceiam.

    Em “Coloring the News”, William McGowan lembra uma série de ataques racistas de pretos contra brancos no metrô de Washington. Em um deles, um grupo de adolescentes negros gritava: “Vamos matar todos os brancos!”. O Washington Post, contudo, não tratou o conflito como conduta racial criminosa e sim como “confronto de duas culturas”.

    McGowan sublinha que a recusa em reconhecer a realidade do racismo antibranco é particularmente evidente na cobertura midiática de crimes de pretos contra brancos.

    De nada adianta a motivação racial ser ostensiva, como no caso de ataques a idosos brancos no Brooklyn, quando um membro da gangue preta declarou: “Fizemos um acordo entre nós de não roubar mulheres pretas. Só pegaríamos mulheres brancas. Foi um pacto que todos fizemos. Só gente branca”.

    O “detalhe” não foi mencionado nas reportagens do jornal The New York Times, e a postura foi a mesma quando três adolescentes brancos foram atacados por uma gangue de jovens pretos no Michigan. Os rapazes pretos curraram a moça branca e fuzilaram um jovem branco.

    O New York Times não indigitou o caráter racial do crime e o relegou a uma materiazinha de um só dia. Se os papéis fossem invertidos, uma gangue de jovens brancos currando uma mocinha preta e assassinando um jovem negro, o assunto seria explorando amplamente —e em mais de uma reportagem. Lá, como aqui, o “double standard” midiático é um fato.

    Merece destaque o racismo preto antijudaico, que não é de hoje. Em Crown Heights, no verão de 1991, os pretos promoveram um formidável quebra-quebra que se estendeu por quatro dias, durante o qual gritavam “Heil Hitler” em frente a casas de judeus.

    Mas a elite midiática, do New York Times à ABC, contornou sistematicamente o racismo, destacando que séculos de opressão explicavam tudo.

    Vemos o racismo negro também contra asiáticos. Na história racial de Nova York, negros aparecem tanto como vítimas quanto como agressores criminosos. Judeus e asiáticos, ao contrário, quase que só se dão mal.

    Em um boicote preto a um armazém do Brooklyn, cujos proprietários eram coreanos, os pretos foram inquestionavelmente racistas. Diziam aos moradores do bairro que não comprassem coisas de “pessoas que não se parecem com nós” e chamavam os coreanos de “macacos amarelos”.

    Curiosamente, por mais de três meses, a grande mídia não deu a menor atenção ao boicote. Um jornalista do New York Post denunciou: “Se fosse boicote da Ku Klux Klan a um armazém de um negro, logo se tornaria assunto nacional. Por que as regras são outras quando as vítimas são coreanas?”.

    Não são poucos, de resto, os comerciantes coreanos que perderam a vida em enfrentamentos com “consumidores” negros. Há casos de militantes pretos extorquindo amarelos. Extorsão e violência racistas, é claro.

    Sob a capa do discurso antirracista, o racismo negro se manifesta por meio de organizações poderosas como a Nação do Islã, supremacista negra, antissemita e homofóbica.

    Discípula, de resto, de Marcus Garvey —admirador de Hitler (seu antissemitismo chegou a levá-lo a procurar uma parceria desconcertante com a Ku Klux Klan) e de Mussolini—, que virou guru de Bob Marley e do reggae jamaicano, fiéis do culto ao ditador Hailé Selassié, o Rás Tafari, suposto herdeiro do Rei Salomão e da Rainha de Sabá.

    A propósito, a Frente Negra Brasileira, na década de 1930, não só fez o elogio aberto de Hitler, inclusive tratando Zumbi como um “Führer de ébano”, como apoiou o Estado Novo de Getúlio Vargas, versão tristetropical do fascismo italiano —e o próprio Abdias do Nascimento, guru de nossos atuais movimentos negros, foi militante integralista.

    O líder da Nação do Islã, Louis Farrakhan, sempre exibiu também um franco e ostensivo racismo antijudaico. Hoje, o Black Lives Matter pede a morte dos judeus em manifestações públicas.

    Em um artigo recente no jornal Le Monde (“Biden, au coeur du combat identitaire”), Michel Guerrin sublinhou que o “antissemitismo está bem presente no poderoso movimento Black Lives Matter”.

    A turma discursa contra o “genocídio” palestino, “organiza manifestações onde podemos ouvir ‘matem os judeus’, é próxima do líder da Nação do Islã, Louis Farrakhan, que fez o elogio de Hitler, e tem como cofundadora da sua seção em Toronto, Canadá, Yusra Khogali, que praticamente chegou a pedir o assassinato de brancos”.

    O racismo antijudaico de pretos pobres dos guetos pode contar com alguma pequena motivação cotidiana, mas o que pesa mesmo é o antissemitismo generalizado nas lideranças da esquerda multicultural-identitária.

    Tudo bem criticar o governo de Israel. Os próprios israelenses costumam fazê-lo, vivendo em um regime democrático, ave raríssima no Oriente Médio. Outra coisa é pregar o desaparecimento de Israel, como querem o Irã e alguns movimentos de esquerda. Aqui, o antissemitismo. O ódio multicultural-identitário a Israel parece não ter limites.

    Tomo Yusra Khogali —jovem mulata sudanesa que não diz uma palavra sobre as atrocidades de negros contra negros em seu país natal, vivendo antes no Canadá, onde se compraz em xingar a opressão branca— como um caso exacerbado disso tudo.

    Ela não só confessou que tem ímpetos de assassinar todos os brancos. Expôs também uma fantasia “acadêmica” que bem pode ser classificada como a primeira imbecilidade produzida por um “neorracismo científico”.

    Protestos contra morte de Daunte Wright, homem negro baleado em abordagem policial nos arredores de Minneapolis

    Vejam a preciosidade pseudobiológica de madame Khogali: os brancos não passam de um defeito genético dos pretos. “A branquitude não é humana. De fato, a pele branca é sub-humana”. Porque a brancura é um defeito genético recessivo. “Isto é fato”, afirma solenemente.

    Diz que as pessoas brancas possuem uma “alta concentração de inibidores de enzima que suprimem a produção de melanina” e que a melanina é indispensável a uma estrutura óssea sólida, à inteligência, à visão etc.

    Enfim, apareceu a mulata racista para inverter o “racismo científico” branco do século 19 —e dizer que os brancos, sim, é que são uma raça inferior. Mas Yusra é apenas um exemplo, entre muitos, e ela teve a quem puxar.

    O fato é que não dá para sustentar o clichê de que não existe racismo negro porque a “comunidade negra” não tem poder para exercê-lo institucionalmente. Mesmo que a tese fosse correta, o que está longe de ser o caso, existem já meios para o exercício do racismo negro.

    Engana-se, mesmo com relação ao Brasil, quem não quer ver racismo, separatismo e mesmo projeto supremacista em movimentos negros. O retorno à loucura supremacista aparece, agora, como discurso de esquerda.

    Se quiserem manter a complacência, podem falar disso como de realidades apenas embrionárias, mas a verdade é bem outra. Militantes pretos, como pastores evangélicos, querem o poder.

    Não devemos fazer vistas grossas ao racismo negro, ao mesmo tempo que esquadrinhamos o racismo branco com microscópios implacáveis. O mesmo microscópio deve enquadrar todo e qualquer racismo, venha de onde vier.

    Como em um texto do escritor negro LeRoi Jones: “Nossos irmãos estão se movimentando por toda parte, esmagando as frágeis faces brancas. Nós temos que fazer o nosso próprio mundo, cara, e não podemos fazê-lo a menos que o homem branco esteja morto”.

    Resta, então, a pergunta fundamental. O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente, penso que é norma. Decorre de premissas fundamentais da própria perspectiva identitária, quando passamos da política da busca da igualdade para a política da afirmação da diferença.

    Ao afirmar uma identidade, não podemos deixar de distinguir, dividir, separar. Não existe identitarismo que não traga em si algum grau e alguma espécie de fundamentalismo.

    Nesse fundamentalismo, se o que conta é a afirmação de um essencialismo racial, reagindo ressentido a estigmatizações passadas, dificilmente os sinais supremacistas não serão invertidos. As implicações disso me parecem óbvias.”

  17. A esta longa lista que o Paulo Henrique referiu e o Antonio de Odilon Brito aqui transcreveu falta algo, que teve apenas uma breve menção: o racismo de negros contra negros. Abordei esse tema na quinta parte do meu ensaio Outra face do racismo e o Passa Palavra analisou a questão no artigo Racismo negro antinegro na África.

    Os negros só se distinguem dos brancos numa coisa, precisamente aquela que distingue os brancos dos negros. É só isso, e mais nada.

  18. Obrigado João Bernardo, pelas indicações. Achei estranho o estardalhaço que a esquerda está fazendo com relação à publicação desse artigo do Risério. Ele tem problemas, é claro, mas parece completamente desproporcional com a reação. E são reações morais, pois de tudo o que eu vi até agora, nenhuma tenta sequer demonstrar os pontos onde supostamente o autor estaria sendo desonesto ou racista. Apenas o qualifica de racista e pede sua cabeça.

  19. A publicação do artigo de Risério na Folha de S.Paulo causou, como era de se esperar, um grande rebuliço.

    Ver, por exemplo, para uma síntese do que se passou, esta notícia:

    Folha é acusada de veicular textos racistas em busca de audiência
    Crítica ao jornal por artigo de Antonio Risério inclui grupo da Redação; Direção defende liberdade de expressão ampla
    19.jan.2022 às 23h16
    Suzana Singer
    São Paulo

    A um mês de completar as comemorações pelo seu centenário, a Folha lida com a acusação de abrigar textos racistas com o objetivo de alavancar a audiência.

    A crítica vem de fora e de dentro. O estopim foi o artigo “Racismo de Negros contra Brancos Ganha Força com Identitarismo”, do antropólogo baiano Antonio Risério, publicado no sábado (15) na Ilustríssima. Nele, o autor afirma que “o racismo negro é um fato” e discorda da definição de que só há racismo quando existe opressão.

    Risério cita casos de ataques a brancos por parte de negros e afirma que “militantes pretos, como pastores evangélicos, querem o poder”.

    A Folha já publicou desde então cerca de dez artigos que refutam a tese de Risério e que o acusam de tentar deslegitimar os avanços obtidos pelo movimento negro.

    Vários leitores se manifestaram também. “A Folha tem prazer em ficar do lado errado da história”, escreveu Matheus Henrique, do Rio Grande do Norte.

    Em apoio a Risério, foi divulgada uma carta de intelectuais e artistas, com 781 signatários, entre os quais aparecem os nomes dos antropólogos Luiz Mott e Roberto da Matta e da cineasta Ana Maria Magalhães. Em um dos trechos, afirmam que o autor “é no momento uma das vozes mais importantes do país, sobretudo por fazer oposição a uma ideologia intolerante e autoritária. Manifestamo-nos com um apelo para que sua livre expressão seja respeitada”.

    Polêmica semelhante já havia acontecido em outubro passado, envolvendo o colunista Leandro Narloch, que citou um livro escrito por Risério. Agora, porém, um grupo de jornalistas da Folha encaminhou à Direção uma carta alertando para o risco de publicar de forma “recorrente conteúdos racistas”.

    Como os próprios autores reconhecem na carta, é incomum que jornalistas se manifestem sobre decisões editoriais da chefia. Os 208 remetentes (192 identificados, 16 anônimos) afirmam que “buscar audiência às expensas da população negra é incompatível com estar a serviço da democracia”.

    “O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância. Dessa forma, vai na contramão de esforços importantes para enfrentar o racismo institucional dentro do próprio jornal, como o programa de treinamento exclusivo para negros”, afirma trecho da carta.

    Além do treinamento exclusivo para negros, que está com inscrições abertas para a sua segunda edição, a Folha criou o cargo de editor de Diversidade, aumentou o número de colunistas negros e levou em conta a questão identitária na formação do novo Conselho Editorial.

    O texto havia sido submetido para publicação em Tendências/Debates, mas, enquanto era avaliado pela Direção de Redação, foi vazado para a concorrência do jornal. A publicação foi então suspensa, uma vez que a seção só publica artigos inéditos.

    Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima, não concorda com a avaliação feita por parte de seus colegas. “O texto do Risério, por criticável que seja, se inscreve nos limites do debate público, algo que, infelizmente, vem se estreitando nos últimos tempos”, diz.

    Em sua coluna, Hélio Schwartsman afirma que não viu nada de “escandaloso” no artigo de Risério e comemora o fato de a Folha continuar promovendo o debate de assuntos que “estão se tornando tabu”.

    Citado no abaixo-assinado, o colunista Leandro Narloch diz que “uma concepção não racista do mundo pressupõe que a cor da pele não determina a moralidade de um indivíduo. Por isso é bastante questionável afirmar que ‘obviamente não existe racismo reverso’, como dizem os autores”.

    A Direção da Folha reconhece o abaixo-assinado como um instrumento legítimo de manifestação, mas afirma que o conteúdo vai contra a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão, pilares do Projeto Folha.

    “O abaixo-assinado erra, é parcial e faz acusações sem fundamento, três características indesejáveis em se tratando de profissionais do jornalismo. Erra ao sugerir que a Folha publicou artigos que relativizam ou fazem apologia do racismo, o que não aconteceu, até porque racismo é crime. É parcial ao omitir iniciativas que têm sido a prioridade do jornal nos últimos três anos. Acusa sem fundamento ao creditar a publicação de opiniões divergentes, que são a base do jornalismo defendido pelo jornal, a uma pretensa busca por audiência –os textos mencionados tiveram cerca de 1% da audiência total dos dias em que foram publicados”, afirma Sérgio Dávila, diretor de Redação.

    Será organizado um seminário interno para discutir pluralismo e a questão racial. Antonio Risério não quis comentar a polêmica provocada por seu artigo, assim como Demétrio Magnoli, colunista da Folha também citado no abaixo-assinado. Os jornalistas que assinaram o texto também não quiseram acrescentar declarações.

    Leia íntegra do manifesto a favor de Antonio Risério aqui.

    Leia íntegra da carta aberta de parte dos jornalistas da Folha aqui.

    Leia a íntegra da resposta do diretor de Redação, Sérgio Dávila, e do editor da Ilustríssima, Marcos Augusto Gonçalves, abaixo.

    “O abaixo-assinado é um instrumento legítimo de manifestação dos jornalistas sem cargo de confiança que ali colocaram seu nome. O recurso já foi usado em outros momentos da história da Folha. Também são saudáveis a crítica e a autocrítica, desde sempre estimuladas pelo jornal. O preocupante é o teor do texto, que vai contra um dos pontos basilares e inegociáveis do Projeto Folha: a pluralidade e a defesa intransigente da liberdade de expressão.

    Além disso, o texto erra, é parcial e faz acusações sem fundamento, três características indesejáveis em se tratando de profissionais do jornalismo.

    Erra ao sugerir que a Folha publicou artigos que relativizam ou fazem apologia do racismo, o que não aconteceu, até porque racismo é crime.

    É parcial ao omitir iniciativas que têm sido a prioridade do jornal nos últimos três anos, como a contratação de profissionais negros no elenco de colunistas, blogueiros e repórteres e a criação da editoria de Diversidade, a primeira do gênero na grande imprensa.

    Acusa sem fundamento ao creditar a publicação de opiniões divergentes, que são a base do jornalismo defendido pelo jornal, a uma suposta busca por audiência –até porque os textos mencionados tiveram menos de 1% da audiência total dos dias em que foram publicados e em muitos casos levaram a cancelamentos de assinatura.

    A Folha seguirá fazendo o jornalismo que a consagrou nos últimos 100 anos, com uma Redação que esteja disposta a implementar com profissionalismo os princípios defendidos por seu Projeto Editorial: um jornalismo crítico, apartidário, independente e pluralista.”

    Sérgio Dávila, diretor de Redação

    “Como editor da Ilustríssima, considerei que o texto submetido a mim por Antonio Risério, por criticável que pudesse ser, se inscrevia nos limites do debate público, algo que infelizmente vem se estreitando nos últimos tempos, e não só no Brasil. O autor fala por si, tem uma história intelectual, acadêmica e política. Foi preso pela ditadura militar, estudou e publicou livros sobre as manifestações da cultura negra na Bahia e trabalhou com Gilberto Gil no Ministério da Cultura no governo do PT –partido com o qual passou a divergir posteriormente. Suas posições muito críticas sobre a ideologia identitária e seus dogmas o levaram a protagonista de polarizações com representantes desses movimentos.

    Obviamente eu presumia que o texto provocaria reações, mas imaginava que viriam argumentos –o que seria uma contribuição para o debate. Infelizmente, não houve debate algum, mas um tsunami nas redes sociais para tentar silenciar e punir, como de hábito, o divergente. No caso, prevaleceu a acusação tida como verdade absoluta de que se tratou de uma manifestação ‘racista da Folha’. Respeito a posição do grupo expressivo de jornalistas que assinou a carta aberta, embora eu tenha sérias divergências conceituais sobre como e o que foi colocado.”

    Marcos Augusto Gonçalves, editor da Ilustríssima

    Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/folha-e-acusada-de-veicular-textos-racistas-em-busca-de-audiencia.shtml

  20. Trechos assim deixam tudo mais claro:

    “Precisava este jornal botar negros em cargos de direção, gente que enxergue sem miopia nem proposital daltonismo o que é racismo contra negros (eu disse contra negros). Precisava tirar racistas e fascistas da pauta, do secretariado de Redação, alçar negros aos cargos de editores, dos postos mais altos da administração. Mudança profunda é isso, diversidade, pluralismo. O resto é cosmética, fachada.”
    (Felinto, Marilene. A Folha envelheceu mal: Jornal precisa de negros em cargos de direção para ser capaz de enxergar o racismo. Folha de S.Paulo, 22 jan. 2022. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/a-folha-envelheceu-mal.shtml)

    Em outras palavras, a solução para o “racismo” – publicar textos que criticam o identitarismo – é o… racismo. Para promover novos gestores.

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