“Disparate” e “disparatado” foram termos a que José Preto ontem, na audiência no Tribunal da Relação do Porto, recorreu para criticar a conduta dos agentes da PSP na detenção dos arguidos da Fontinha, durante o despejo do Es.Col.A, considerando “radicalmente ridícula” a condenação em primeira instância. No decorrer das alegações do recurso, o advogado de defesa frisou que é ilícito discutir posições politicas e filosóficas em processo criminal. Por seu turno, a Procuradora-Geral adjunta junto do Tribunal Superior, aparentemente, recuou na posição do MP, ao pedir uma condenação por ofensas à integridade física agravadas, caso os arguidos venham a ser absolvidos do crime de resistência e coação a funcionário. A decisão do colectivo de juízes será conhecida a 22 de Maio.
“Boa parte dos disparates violentos que estamos aqui a discutir não aconteceria se as pessoas olhassem para os outros na perspectiva do bonus pater”, afirmou José Preto no final da primeira parte das suas alegações. O advogado retomava assim a ideia com que iniciara a sua intervenção: “o critério do bonus pater estabelece para qualquer decisor e para qualquer decisão a perspectiva do pai e isso traduz a exigência de um grau de afecto como universal perspectiva decisória, como o demonstram as caracterizações de Locke e Morus quanto ao Pátrio Poder – a demonstração é forte, porque estamos bem antes do sentimento ter feito a sua entrada triunfal na História da Cultura, como fundamento da Moral, com Rousseau”. “Para julgar os outros é preciso conseguir amar os outros”, acrescentaria depois, numa aula de mestrado da Faculdade de Direito do Porto, citando Pierre Drai (primeiro juiz de França, antigo Presidente da Cour de Cassation, cujo decesso ocorreu há dias).
O advogado foi desmontando as acusações em causa, em jeito de súmula do recurso de 63 páginas. Chamar resistência e coação à atitude dos arguidos “parece-me estar além do disparate”, disse. “Não há nenhum organismo vivo que não resista à captura, ninguém gosta de ser preso. A resistência é tão natural que é irreprimível“.
Há uma “profunda confusão” nos depoimentos dos polícias, “nenhuma é verdadeira”. Quanto à confusão e inabilidades várias dos depoimentos, citou Platão para dizer: “fala-se naturalmente bem daquilo que se conhece”. Motivo pelo qual os depoimentos dos polícias não podem deixar de haver-se como meras falsidades, o que se reforça pelas auto-contradições e divergências de versão seja no depoimento do subcomissário, seja nos demais depoimentos policiais.
Por outro lado, a polícia intervém “como se na ordem jurídica portuguesa existisse a subordinação pessoal”. E quanto às alegadas ofensas corporais dos arguidos aos policias defende que assentam em “fundamentos absurdos”. Salientou ainda a desproporção do número de polícias para cada um dos arguidos, agentes que se encontravam equipados com couraça, perneiras, caneleiras, joelheiras, cotoveleiras e guantes, equipamento que sempre faria de qualquer pontapé ou murro um acto simbólico onde só poderia magoar-se quem o desse.
“Completamente disparatada” foi como José Preto classificou a hipótese de que qualquer expressão injuriosa tivesse sido ouvida aos arguidos, dadas as divergências das versões das pretensas vítimas, sublinhando-se a necessidade que o juiz de primeira instância teve de induzir uma resposta do subcomissário, o que fez lendo o auto de notícia redigido pelo próprio depoente e do qual o próprio redactor divergia.
O visionamento de imagens das detenções e as gravações das testemunhas do julgamento em primeira instância levam José Preto a concluir que a Polícia estava “sobre-excitada”, pela própria natureza política da ocupação em causa. Ora, “não era a Es.Col.A que estava em debate” e, tendo cada um o direito de pensar o que quiser, ninguém pode ser detido em função das suas ideias políticas.
A propósito, o advogado teceu também críticas às alegações finais em primeira instância da procuradora do Ministério Público, considerando “inadmissível” que tenha “levado a tribunal criminal um debate político”. “Não aceito a condenação”, comentou José Preto depois da audiência.
Este advogado não acompanhou os arguidos no julgamento sumário, vindo a disponibilizar o seu apoio pro bono após a condenação dos mesmos a três meses de prisão, substituída por multa, ao que acresce a taxa de justiça, num total de €954 cada.
No decurso das alegações, cerca de 50 pessoas concentraram-se em frente ao Palácio da Justiça, sob o lema “Somos Todos Arguidos da Fontinha”. Quem não pôde estar presente enviou mensagens e houve faixas solidárias em várias cidades do país.
Após a audiência, o advogado falou durante duas horas e meia a um curso de mestrado da Faculdade de Direito do Porto, a convite do Catedrático de Direito Constitucional daquela Faculdade, Prof. Paulo Ferreira da Cunha. Aí, regressando ao critério do “Bonus Pater”, explicitou, citando Pierre Drai, que foi Primeiro Juiz de França (Presidente da Cour de Cassation): “ Para julgar os outros é preciso conseguir amar os outros” e “ninguém pode ser ultrajado a pretexto de um processo” (em alusão ao comentário que Pierre Drai formulou na comemoração do centenário da anulação da sentença condenatória do Capitão Dreyfus).