Após diversas ações de denúncia, a campanha de escrachos constitui mais uma ferramenta em prol de uma maior visibilidade das propostas em torno da questão da habitação reunidas, na Iniciativa Legislativa Popular (ILP) hipotecária [1]. Por Rita Pérez

O início de uma forte campanha de escrachos, iniciada na passada semana e com sinais de se prolongar por mais tempo, levou-nos a entrevistar a Comissão de Escrachos de Madrid, uma comissão aberta de coordenação que surge do seio da Assembleia de Habitação de Madrid, o espaço de coordenação dos grupos de habitação das diferentes assembleias de bairro e populares, junto com a Plataforma contra os Despejos (PAH), a Oficina de Habitação de Madrid e outras organizações.

Diagonal: Qual a atual composição do vosso grupo? É um grupo composto por afetados?

Comissão de Escrachos de Madrid: Na Assembleia da Habitação de Madrid tentámos romper com a divisão entre «afetado/solidário». Consideramos que a habitação é um problema que nos afeta a todos, se não diretamente pela hipoteca, por outro tipo de efeitos: o dinheiro investido nos resgates à banca, a criação do Banco Mau [2], a desproteção do inquilino de forma a descriminar a fórmula do aluguer em relação à do empréstimo… o sistema hipotecário prejudica o direito à habitação em todas as suas formas. Mas sim, dentro do nosso grupo existem pessoas que viveram processos hipotecários, outras que não.

D: O que é isso do escracho?

CEM: Uma ferramenta que consiste na denúncia pública dos responsáveis por certos conflitos. Pode realizar-se de múltiplas maneiras, desde a sensibilização dos vizinhos através de conversas, cartazes… até à intromissão na sua vida quotidiana, de forma a consciencializá-los para as consequências sociais de que são responsáveis.

D: Como surgiu a ideia de recorrer ao uso de escrachos?

CEM: O termo escracho é oriundo da Argentina, da associação H.I.J.O.S, como instrumento na denúncia dos responsáveis pelo genocídio na última ditadura militar. Contudo, a ferramenta foi utilizada em diversos momentos e em diferentes conjunturas. De todas elas, retiramos as particularidades que se adequam à nossa situação e aos nossos objetivos.

 D: Qual o objetivo desta campanha de escrachos no âmbito da ILP?

CEM: Informar os deputados que declaram não tencionar aprovar a proposta mínima da ILP na sua integridade – apresentada pela PAH e assinada por quase um milhão e meio de pessoas – da dimensão da tragédia social em causa.

D: A quem se vão dirigir?

CEM: Em particular aos deputados desses partidos, o PP, a UPyD, a UPN e o PNV [3].

D: Receiam uma estratégia de criminalização da campanha?

CEM: Um escracho não significa mais que o colocar em prática da organização civil; nem sequer nos atrevemos a caracterizá-lo como desobediência. O cumprimento escrupuloso das regras do jogo democrático é tão óbvio quanto as más práticas dos governantes. A estratégia de criminalização por parte de certos setores indica o caminho certo que vimos seguindo. A tentativa de criminalização revela a sua falta de interesse na oferta de soluções. Recorremos a todos os meios que tínhamos à disposição: votámos, denunciámos a lei das hipotecas, manifestámo-nos, tentámos parar os despejos, criámos uma rede de apoio… o escracho é apenas mais uma ferramenta.

D: Imaginem que alguns desses escracháveis fica com medo, temendo que a qualquer momento a coisa lhes fuja das mãos (medo assim é raro). Pára-se o escracho?

CEM: Os escracháveis são pessoas que com as suas omissões e decisões colocam diariamente muitas vidas em perigo. O medo é coisa rara, às vezes muda de lado e ao atacar gente rígida, crente da sua absoluta segurança, esta pode perder a cabeça… O escracho é o mínimo que podemos fazer. Aliás, deviam agradecer-nos – e não temer-nos – uma vez que estamos a canalizar de forma pacífica toda a raiva e sentimento de injustiça nutridas por muitas pessoas.

D: Como foram as primeiras experiências de escracho?

CEM: Acreditamos que estas ações devem estender-se a muitos bairros e a muita gente que, embora apoie a campanha, ainda não enveredou pela sua dinamização e participação. Ficámos surpreendidos pelo apoio espontâneo da vizinhança durante a realização dos escrachos. Chegam-nos constantemente novas moradas e localizações de possíveis escrachos e são cada vez mais as pessoas que nos perguntam como participar… A coisa vai aumentar.

D: As convocatórias dos escrachos são públicas? Como saber? Como comunicar, por exemplo, o bar onde toma o pequeno-almoço um determinado escrachável?

CEM: Toda a informação que nos chega relativa a lugares onde realizar os escrachos é comunicada às assembleias de bairro para que elas organizem a ação. A ideia é que a Comissão de Escrachos constitua um mero órgão de gestão que facilite o trabalho importante, da responsabilidade dos bairros. A Comissão de Escrachos é aberta e reúne-se às segundas-feiras no Patio Maravillas. Toda a informação considerada útil ou é comunicada por viva voz na assembleia ou pode ser enviada por correio eletrónico ( [email protected] ).

D: A repressão acompanha-vos em cada ação, a maioria das vezes tomando a forma de presença policial e de identificações. Temem algum tipo de sanções? Têm previsto formas de responder a essas possíveis multas? Têm apoio legal?

CEM: Acreditamos que alguma multa poderá surgir, mas enquanto movimento organizado consideramos que as multas individuais devem ser assumidas coletivamente. Assim o serão. No seio das redes responsáveis pela criação do 15M, existe uma grande quantidade de advogados e estruturas anti-repressivas que formam parte do movimento.

D: E uma vez votada a ILP?

CEM: Consideramos que a ILP é uma proposta mínima e, como tal, a sua aprovação compreenderia uma das muitas pequenas vitórias que, dia a dia, fruto de um trabalho comum, conquistaríamos. A ILP não é um fim, é apenas mais uma etapa no processo de desenvolvimento e consolidação de uma luta com muito caminho a percorrer.

Notas do tradutor

[1] Iniciativa legislativa popular que defende as seguintes propostas: pagamento da dívida ao banco por cedência da habitação a pagar; aluguer social ao longo de um período de cinco anos a afetados; proibição de despejos quando se trata do imóvel habitado e quando os motivos do não pagamento de dívida são alheios à sua vontade.
[2] Entidade bancária (parcialmente financiada por fundos públicos) responsável pela compra de ativos tóxicos a bancos privados.
[3] Respetivamente, o Partido Popular, a União Progresso e Democracia, a União do Povo Navarro e o Partido Nacionalista Basco.

Traduzido por Passa Palavra a partir daqui.

Os leitores encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas,
tanto de Portugal como do Brasil.

2 COMENTÁRIOS

  1. Eu sou contrário ao escracho em todas as ocasiões e contra quem quer que seja, incluindo os praticados pelas feministas e quejandos ou os que tenham como alvo deputados que votem programas de austeridade ou quaisquer outros. O escracho é uma forma de linchagem moral, repulsiva como o são todas as linchagens, uma soma de cobardias que se dão força só por serem muitas e as vítimas serem poucas. Pior ainda do que um exercício colectivo de cobardia, o escracho é uma escola de cobardia, e é este tipo de aprendizagem que sobretudo me preocupa. A linchagem moral pode ser suportada com altivez pela vítima, que sairá assim fortalecida da prova, mas revela sempre a baixeza dos linchadores e contribui para os aviltar mais ainda. Uma forma especial de escracho foi muito usada em 1944 e 1945 nos países europeus libertados da ocupação nazi. Consistia em rapar o cabelo das mulheres acusadas de terem tido relações sexuais com soldados alemães e em humilhá-las publicamente. Quem não souber do que se trata, pode ver aqui:

    http://www.google.com.br/search?safe=off&hl=pt-BR&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1280&bih=692&q=tondues+de+la+lib%C3%A9ration&oq=tondues+de+la+lib%C3%A9ration&gs_l=img.12

    Na Bélgica chegaram a pôr algumas dentro de jaulas do Jardim Zoológico, e existem fotografias disso. Antes do 25 de Abril, quando eu era ainda leninista, já sentia pelas linchagens morais a mesma repulsa que sinto hoje, a ponto de ter tido durante anos, na minha mesa de trabalho, a fotografia de uma destas mulheres, de cabeça rapada, exposta ao escracho da populaça. A dignidade, a extraordinária altivez com que ela enfrentava os insultos, o seu olhar frio, constituiu para mim uma lição diária. Aprendi muito com essa fotografia.

  2. na Argentina os altos funcionários do governo Kirchnerista sofrem escrachos públicos quando frequentam lugares da alta classe média (a qual fazem parte…). Passeando com seus filhos pelo shopping center recebem vaias espontâneas e coletivas, andando pela rua, chega-se ao ponto até de terem objetos atirados contra seus carros, em função de que eles podem comprar dólares sem limitações, enquanto a classe média elitista tem de penar para poder viajar para Miami. Esse é um país com uma fortíssima cultura de escracho.

    Pessoalmente tenho achado interessante no caso do Levante, os escrachos das figuras da ditadura no Brasil, pois muitas vezes expõe-se algo que ninguém nem tinha idéia, de que teu vizinho era um torturador, tema que muitos brasileiros consideram não apenas de uma outra época mas de um outro mundo, algo que não lhes afetou. Uma forma de reativar uma memória no país.
    No entanto, como no exemplo destes escrachos e dos escrachos mencionados no texto, são organizações de esquerda usando esta técnica. O que será quando a direita começar a fazê-lo? Serão tachados de fascistas, de instigadores da irracionalidade das massas?
    Apenas para finalizar a reflexão, a entrevistada pinta a coisa com tanta naturalidade, como se o escracho fosse uma prática óbvia da organização civil. Tem que ficar claro que o escracho é uma OPÇÃO tomada por uma organização civil. As opções sempre podem ser boas ou ruins, nenhuma delas é algo apenas natural de uma organização.

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