Continuamos em nossas trincheiras

Há tempos temos falado que vivemos um momento terrível, de grande derrota para aqueles que buscam uma transformação social profunda e não acham normal sermos escravos do dinheiro e da propriedade privada. Aqueles que consideram que a terra deve servir para atender às necessidades de habitação e de produção de todos os que precisam morar e se alimentar, e não às necessidades da especulação. Aqueles que consideram que as fábricas e todos os meios de produção devem ser controlados por quem sabe usá-los, os trabalhadores, dando fim à existência de patrões e banqueiros parasitas, ou seja, acabando com a exploração, com os antagonismos de classe e com as próprias classes; e assim por diante.

Vínhamos dizendo que, nesse momento histórico, a perspectiva de uma transformação social profunda praticamente não existe mais, e mesmo nas periferias as pessoas estão tomadas por um enorme conservadorismo, por uma vontade de ser melhor do que as outras; por um individualismo que as faz procurar se dar bem mesmo prejudicando os demais; por um consumismo que as faz acreditar que a realização pessoal se resume a comprar uma televisão de plasma e o celular de última geração; por um ódio que as faz estranhar seus iguais, e idolatrar o playboy da novela; por uma cegueira que as faz aplaudir a militarização, a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, as chacinas e os massacres cotidianos cometidos contra a população pobre.

Falávamos também que, nesse contexto, algum acontecimento como a piora na situação econômica e o aumento do custo de vida ou do desemprego poderia criar as condições propícias para algum aventureiro canalizar aquele ódio e articulá-lo em algum projeto de ultradireita, levantando bandeiras nacionalistas e outras como a da pena de morte, e da redução da maioridade penal, etc.

Afora essa conjuntura mais imediata, levávamos em consideração que as formas capitalistas de opressão e de exploração estão sendo aperfeiçoadas há séculos, bebendo de uma história milenar de violência, extermínio e alienação. Dessa maneira, a desgraceira capitalista está entranhada em nossa pele, em nossa cabeça, marca nosso jeito de falar, de sentir, de se relacionar com os nossos iguais, determina nossa rotina, canaliza e suga a nossa energia vital.

Diante de tudo isso, avaliamos que, enquanto movimento popular, estamos reduzidos à construção de pequenas experiências de auto-organização, de caráter local, que não fiquem debaixo do braço de politiqueiros, ongueiros e empresários, e que não dependam das migalhas do Estado. E com enormes dificuldades nos engajamos a nos enraizar nalguns bairros, fomentando processos organizativos e lutas diretas em torno de diversas pautas relacionadas às necessidades das quebradas. Nessa caminhada, nos esforçamos bastante para fugir da tendência de nos tornarmos marqueteiros e burocratas – “militantes”, “dirigentes”, “articuladores” e “negociadores” profissionais -, da tendência ao centralismo, à hierarquização, ao oportunismo, e ao triunfalismo (a ideia de que “estamos vencendo!”, mesmo diante das piores derrotas), enfim, tendências que predominam em boa parte das organizações de esquerda.

Enfim, não estávamos autorizados a nos espantar com a guinada conservadora das manifestações de massa que tomaram as ruas do país nas últimas semanas. Mas também não estamos autorizados a nos paralisar de medo, muito pelo contrário. Até ontem sair às ruas reivindicando o que quer que fosse era visto pela maior parte da população como aberração ou como “coisa de vagabundo”. Hoje existe a possibilidade de construir uma cultura de luta e de enfrentamento que há muito não se via. Se os conservadores tentam canalizar a revolta da população para fins destrutivos e elitistas, cabe aos lutadores e lutadoras populares colocarmos em pauta os nossos interesses de classe.

Não temos e nunca tivemos certeza sobre os rumos que devemos tomar, e muito menos temos condições de apresentar propostas mais gerais, para o conjunto da esquerda. De todo modo, pelo sim, pelo não, insistiremos nas nossas pequenas lutas, nesse trabalho cotidiano de resultados bem questionáveis e difíceis de ver, pois acreditamos que talvez aí surjam importantes trincheiras de resistência a novas ofensivas conservadoras que se delineiam nas massas de classe média que entoam o hino nacional e repetem as palavras de ordem veiculadas pela grande mídia. Não podemos esquecer que o “Brasil” é um campo de batalha; que o Estado opressor, os patrões que sugam nosso sangue e a polícia assassina que atua nas periferias são, também, compostos por brasileiros, e nem por isso deixam de estar do lado de lá das trincheiras.

O povo não acordou, porque a violência que sofremos nunca nos deixou dormir, e todo dia é uma nova batalha. A periferia está sempre alerta, mas precisamos nos organizar e não nos deixar levar por bandeiras e frases ocas que representam os interesses dos nossos inimigos.

Rede de Comunidades do Extremo Sul de São Paulo-SP

2 COMENTÁRIOS

  1. Mais claro impossível, é isso! Eu apenas acrescentaria que, considerando a diversidade dos movimentos e coletivos, me parece haver a necessidade de uma plataforma comum de lutas. Nos tornamos um mapa de fragmentos e pedaços esparramados Brasil afora, sequer contamos com uma solidariedade mútua, o cada um por si também está inserido no interior das lutas, muitas vezes a “livre concorrência” encontra espaço aqui mesmo.Não é chegada a hora dessa plataforma comum de lutas?

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