O que chega até os ouvidos e ao conhecimento do público é insuficiente e superficial. Frente a essas questões, torna-se inevitável promover uma análise crítica e participativa sobre o rap. Por Arthur Moura [*]
Existem muitas interpretações sobre “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição” de Adorno. Apocalíptico, exagerado, reducionista. Alguns alegam que Adorno negou, com toda a sua teoria crítica, a importância da música de massa, ou ainda, uma construção de linguagem popular e principalmente democrática. No entanto, poucas análises sobre os efeitos gerados na música advinda do sistema capitalista são tão viscerais. Adorno trata de uma determinada etapa da configuração das forças autoritárias modernas e o que isso representou na esfera da criação artística. “A nova etapa da consciência musical das massas, diz Adorno, se define pela negação e rejeição do prazer no próprio prazer.”
Hoje, com a reconfiguração do estado moderno, assim como o processo global que redefiniu a ordem dos conflitos, torna-se muito mais claro o quê o autor criticava em 1938. Para discutir os efeitos do prazer enquanto possibilidade distante do gozo pleno ou até mesmo da experiência continuada das multiplicidades dos sentidos, não poderíamos deixar de fazer menção às transformações de toda uma conjuntura do sistema capitalista, assim também como não poderíamos deixar de fazer menção à pós-modernidade e aos seus efeitos fluidos em tempos rígidos. Seria relevante ainda esclarecermos o que se entende por massa e luta de classes. O fato é que tudo isso nos dá um entendimento global, holístico e mais consistente ao que pretendemos analisar, neste caso, o rap independente.
O prazer, assim como qualquer outra mercadoria no sistema capitalista, é oferecido em abundância em nossa sociedade. O prazer ganha novos significados, novos lugares, novos momentos a serem experimentados, assim como novas possibilidades de acesso e uso. O prazer é aceito em outras categorias, desde que esteja segregado e dentro de uma moralidade. O cristão sente prazer ao estabelecer sua conexão com o divino aos domingos na igreja do seu bairro, o homem de família sente prazer ao chegar em casa e abraçar os filhos e a professora sente prazer ao entrar em sala de aula para lecionar. O prazer pode morar num local de prostituição, no trabalho ou no lar. Mas o prazer mais atraente e desejado é aquele que é oferecido por um certo alguém que experimentou ou até mesmo construiu a sensação e se beneficiou daquilo e agora oferece essa oportunidade desde que se estabeleça uma relação de dependência e restrição a este acesso.
Dessa forma, nega-se o prazer no próprio prazer. Supõe-se, portanto, a tutela e o uso restrito do prazer. Com isso, atribui-se ao que usufrui dos bons limites do prazer a incapacidade de autogerir sentimentos inerentes da vida. Mas o que é o capitalismo senão a negação da vida?
Destitui-se cada vez mais o gênero humano de surgir em si o encantamento dos sentidos. Dos sentidos que experimentam não a suposta coesão do sistema harmônico ocidental ou que siga modelos e padrões estabelecidos a partir de tutores do gosto que se pretendem perpétuos a partir da construção do espetáculo, da imagem e da estética. A negação e rejeição do prazer no próprio prazer é o que mantém e garante o bom ordenamento e a manutenção da dependência ao vazio, a só o que lhe é oferecido. O que é oferecido, todavia, não gera nenhuma dúvida sobre seus valores por se apresentar enquanto possibilidade de escolha.
O personalizado (também real na sociedade de consumo), aquilo que é construído para um certo alguém, para aquele que possui uma determinada distinção social, que muitas vezes é o que garante a sua manutenção no meio, já não é mais nenhuma novidade no sistema capitalista. Sendo assim, esvai-se toda a possibilidade de dúvida sobre aquilo que se manifesta enquanto mercadoria.
A mercadoria não é mal vista na sociedade que atua a favor de distinções sociais ou que busca estabelecer domínio sobre qualquer outro segmento da sociedade. Pelo contrário, a mercadoria é admirada, requisitada e desejada (em outro termo, ela é fetichizada). Primeiramente, pelo seu acesso proporcionar um contato com um bem que muitas vezes está atrelado a sua sobrevivência. Com isso, teoricamente torna-se inviável buscar formas alternativas a fim de fugir da eterna aparência das coisas. A mercadoria na sociedade de consumo é uma necessidade para se preservar o estado de coisas. A experimentação supérflua dos sentidos afirma explicitamente o mau uso de funções fundamentais para a garantia da superação da escravidão moderna e da servidão voluntária.
Para Adorno, “o fascínio da canção da moda, do que é melodioso, e de todas as variantes da banalidade, exerce a sua influência desde o período inicial da burguesia. (…) Hoje, contudo, quando este poder da banalidade se estendeu a toda a sociedade, sua função se modificou.” Ter acesso a determinados setores da sociedade depende muitas vezes da manutenção da banalidade como pré-requisito à possibilidade desse acesso. Tal sistema sustenta, a partir de formas de controle e domínio, algo insustentável em qualquer organização social: o pensar pelo outro, o pensar para o outro. Não seria irônico constatar que a gratidão e submissão daquele que é subjugado às formas de controle e domínio não se distinguem na sociedade moderna. Eles são sinônimos na sociedade de controle. São duas faces da mesma moeda. São aparatos discursivos que se infiltram nos valores e constructos sociais e a sua permanência não pode escamotear para sempre o conflito que se anuncia. É só observarmos os rumos que o capital toma, legitimado pelo Estado. São superestruturas a serviço da escravidão moderna, do domínio sobre os corpos, corpos estes funcionais e objetivos, segregados, supostamente autônomos, seguros de suas posições políticas, justos e bem feitores. São escravos voluntários que levam uma vida patética perante uma aparente impossibilidade de mudança.
Pensar o fetiche na música é primeiramente pensar e refletir acerca do papel histórico da mecanização da arte e da sua extrema dependência para com a técnica. Dessa forma se configura a arte enquanto segregada de sua função social revolucionária, a qual o rap se pretende historicamente. Quem mais contribuiu e contribui para essa banalização do que a burguesia e a chamada pequena burguesia? As classes dominantes vão ao cinema para, acima de tudo, se divertir. A vida agitada, os múltiplos compromissos, o mau relacionamento com o namorado, ou uma simples vontade de distração num domingo entediante quando não resta mais nada na TV e o facebook quase que virou um papel de parede são os principais motivadores para ir ao cinema. Para estes, cinema é entretenimento, diversão, distração ou um mero tapa buraco em meio à vida agitada. As classes dominantes, movidas pela superficialidade das coisas, consomem o cinema como qualquer outra mercadoria e vangloriam-se de conhecer os principais filmes em cartaz ou os diretores mais badalados. Não se propõem a discutir a fundo o que é visto em tela, acreditando nas imagens cegamente.
É muito conveniente fazermos nossas análises sobre o efeito da mercantilização da arte e da vida como um todo com nossos olhares voltados unicamente à classe trabalhadora. Sua música é banalizada frente a potência que oferece. Potência que para a burguesia é algo a ser neutralizado, pois do contrário é arriscado acontecer algum problema maior. Por isso há um grande investimento em tornar essa coisa que se denomina massa num enorme mercado onde a banalidade é moeda corrente. A banalidade esvazia para inutilizar tudo aquilo que possa causar constrangimento à ordem estabelecida. Banalizar uma ida ao cinema transforma o ritual em distinção social. Distinção social esta que depende do acesso e consumo de bens.
A classe média, por ser subserviente e tutelada historicamente, banaliza a si própria como opção segura de se alcançar o sucesso de vida. O mesmo sucesso que ela vê no cinema hollywoodiano espetaculoso é desejado em suas vidas pequeno-burguesas. Os valores a ela empregados historicamente tornam-se inclusive fator de disputa, gerando assim o prestígio como alavanca ao seu vazio existencial. A essa banalização serve a cultura enquanto mercadoria e distinção social.
Discutir o fetiche na música requer pensar sobre os mecanismos de coesão social que se manifestam no rap, no samba, assim como em relações econômicas, científicas e filosóficas. A cultura, enquanto resultado da manifestação de um determinado segmento da sociedade num determinado espaço temporal, dialoga e necessita de dialogar com frequências outras, que não se limitam ao seu próprio núcleo. A cultura na sociedade capitalista doentia é apenas um baú de relações sombrias. Constroem-se mitos para se legitimar farsas.
Adorno entende o estrelato como um dos mecanismos que hoje, construído pela sociedade de consumo, já se anunciava fiel aos valores reacionários e totalitários. Historicamente sabemos que tais regimes dependem da manutenção da obediência e do bom convívio normatizados por regras e leis. Se formos analisar o caso do Brasil, perceberemos uma forte disposição à manutenção de grupos que não abrem mão do bom funcionamento da máquina estatal acompanhada da economia capitalista.
O neoliberalismo, sustentado por um Estado que procura em suas ações trilhar o que se almeja por Estado democrático de direitos, fortificado por condutas populistas e práticas fascistas (que historicamente também funcionou muito no controle das massas), age como principal aparato que legitima uma esquerda burocrática e partidária e que há muito se aliou às disputas pelo poder fora das ruas. Adorno sugere uma análise frente a ascensão do nazismo em confluência com a forte propulsão do capital. O Estado de hoje sugere uma aproximação com o que é diferente com o intuito de docilizar a sua manifestação. Num regime totalitário se estabelece outras formas mais determinantes sobre o que é diferente (vide o regime fascista e nazista). O que dizer, por exemplo, de projetos populistas como o “bolsa-artista”? O governo anuncia que serão beneficiados artistas de diversos segmentos e que serão avaliados por uma banca examinadora interna. Da tutela emana a gratidão subserviente e o bom convívio e abraçar “boas oportunidades” tornam-se um dever. Não se reflete sobre aonde se quer chegar, mas como chegar a um lugar de destaque, de estrelato, de prestígio e poder.
Essa manutenção da subserviência aos moldes de relações mecânicas são muito presentes no rap, principalmente no rap independente. Ao passo que o rap independente não se propõe a refletir sobre o que vem anunciando como nova proposta de linguagem, postura e valores. Não é difícil observarmos o porquê para tal indisposição. O rap independente, por já ocupar lugares de prestígio, sente-se indisposto a discutir até mesmo pequenas contradições por priorizar uma série de coisas e afazeres que secundarizam problematizar a fundo o que vem sendo construído.
O rap independente aqui analisado construiu canais e redes de comunicação que consomem ideais prontos e valores supérfluos e que legitimam a necessidade de uma relação igualmente fantasiosa. Essas redes e canais de comunicação é algo, portanto, muito cobiçado entre artistas do rap independente. Essa rede não suporta algo que vai além do gerenciamento de carreiras, construção de mitos e uma falsa apreensão da dimensão dos conflitos sociais. Essa rede tende a crescer na medida em que consegue se popularizar um artista. A popularização de um artista não depende do seu dom, nem mesmo se o MC é verdadeiro ou falso de acordo com suas intrigas pessoais. Não depende do seu bom versar, mas principalmente do que se pode extrair de um determinado artista, seja fama, prestígio, dinheiro ou posição social. Hoje os artistas independentes são os próprios gerenciadores do seu núcleo. São MCs empresários acima de tudo. São MCs que angariam recursos de prestígio bastante o suficiente para inserir um outro MC que está começando agora na cena com mais segurança de sucesso.
Pensar o rap longe das questões pessoais sempre foi um desafio entre os próprios do rap. Isso se dá por várias razões. Primeiro: o debate fora desse âmbito deslegitima a necessidade de uma popularização forçada ao espetáculo. As intrigas pessoais sempre alimentaram comentários e expectativas sobre quem está vencendo a batalha dos insultos, quem está tendo mais acesso no youtube, comentários e curtidas no facebook e coisas do tipo. A popularização de muitos MCs é devido às repercussões de pequenas intrigas, na maioria das vezes simuladas entre os próprios. Com isso, ambas as partes se beneficiam. Para isso, temos inúmeros exemplos de fora e de dentro do Brasil. Quando a intriga não existe, ela é forjada, pois se estabeleceu que a combatividade do MC é mensurada pela sua afirmação enquanto superior e verdadeiro. Vide as famosas tretas entre Marechal e Cabal, Gutierrez e P Rima, De Leve e Marcelo D2, Nocivo Shomon e Emicida, entre muitos outros. Tudo isso se sustenta pelo caráter espetaculoso.
Segundo que, quando se sai da esfera do pessoal, a crítica passa a refutar ideias e não a postura individual de um determinado MC ou grupo. A crítica passa a servir das pessoas enquanto pertencentes a um determinado processo político. A esfera do pessoal cria campos de reconhecimento que servem como alicerce de projetos mesquinhos. Pretende-se, então, construir formas seguras de se escamotear contradições que ponham em cheque concepções normativas. O encanto, a subjetividade e a profanação sugeridos por Adorno ficam, portanto, reféns da ressignificação individualista, gerando um ouvinte dócil, consumidor. Dialogando com Adorno, este diz que
“o prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo”.
A construção da autonomia no rap independente é forjada segundo critérios de reprodução passiva de mecanismos já experimentados exaustivamente por aparatos burocráticos coercitivos ao longo da história. Se estudarmos o teor lírico de MCs em destaque de hoje, encontraremos poucas semelhanças com aquilo que inicialmente moveu o surgimento do hip hop como manifestação de negação às opressões garantidas pela sociedade dividida em classes.
Desde que comecei a estudar e analisar criticamente a formação do rap, assim como suas construções discursivas, observei que o que chega até os ouvidos e ao conhecimento do público, e até mesmo daqueles que pretendem saber um pouco mais sobre tais relações, é insuficiente e superficial. Isso se dá por dois motivos. O rap realmente conseguiu consolidar uma imagem de estilo combativo e bem sucedido, gerando a aceitação daquilo que é proposto como nova linguagem de forma acrítica e passiva. Por outro lado, a maioria dos estudiosos (muitos deles acadêmicos, professores de universidades, pesquisadores, mestrandos e doutores) contentam-se em fazer críticas superficiais traçando uma análise que não prioriza os conflitos e contradições internas, restando apenas acreditar naquilo que se apresenta enquanto imagem. Os trabalhos acadêmicos, em sua grande maioria, são frígidos e cínicos em relação ao compromisso crítico com aquilo que denominam seu objeto de estudo. Frente a essas questões, torna-se inevitável promover uma análise crítica e participativa sobre o rap.
Continua …
Nota
[*] Este texto é a primeira parte de uma adaptação do capítulo “O Encantamento dos Sentidos”, da monografia “Uma Liberdade Chamada Solidão: a formação do rap independente no Rio de Janeiro (1990 – 2013) Universidade Federal Fluminense (curso de História)
As ilustrações são da obra de Jean-Michel Basquiat
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.