A dialéctica, como movimento lógico do raciocínio, nasceu entre os místicos e nas mãos deles, ou na cabeça, foi um poderoso utensílio. Depois desceu à terra e, aplicada à realidade empírica, o que perdeu em etapas sucessivas de um pensamento virado para o infinito ganhou em eficácia analítica. Tornou-se um utensílio mais poderoso ainda. Mas o verdadeiro poder conseguiu-o quando passou a servir aos chefes políticos, aos subchefes também, para justificar hoje o contrário de ontem e mostrar aos estúpidos que somos que o avesso é a expressão dialéctica do direito. Depois de termos aprendido que a ditadura realiza dialecticamente a liberdade, o amor à nação manifesta dialecticamente o internacionalismo, o capitalismo de Estado constitui a etapa dialecticamente necessária para o comunismo, a destruição da arte resulta dialecticamente da fusão da arte na vida, estamos prontos para tudo. Passa Palavra

3 COMENTÁRIOS

  1. Dialética como análise e dialética como crítica. Deixou de funcionar apenas um dos dois aspectos ou a ausência de um necessariamente anula o outro? Me vejo levado a pensar se existe uma diferença substancial entre uma análise crítica e uma análise não crítica. O que comprova a crítica? O que nos garantia antes que havia uma força transformadora essencial na atividade da crítica, qual era essa fonte de autoridade que já não “funciona” mais, como nos indica a experiência enunciada como “falência da crítica”? O que ocorre hoje que não acontecia antes, essa promiscuidade superficial do conceito e do desejo, como que perdidos num shopping center, prontos para grudarem e desgrudarem rapidamente nas marcas e nas mercadorias. Diremos que a vigência da crítica antes impedia este tipo de subjetivação?
    Se pensamos que hoje a razão cínica funciona imune à crítica, queria poder comprender melhor como é que a crítica então surtia efeito em uma razão hegemônica e uma subjetivação, contra a qual se colocava como oposição. Que efeitos isso teve no mundo, como é que isso se traduz nas experiências sociais? Pois eu consigo ver o cinismo e a impotência da crítica hoje, mas quando tento pensar nesta luta da crítica contra “algo”, não entendo como isso funcionaria.
    Será a impossibilidade desta imagem o próprio sintoma desta falência? Insistir na crítica seria apenas uma tentativa de representar o Pai da horda primitiva, ou haveria aí escondida na crítica uma experiência prenhe de consequencias?

  2. A dialéctica quer em Platão quer em Hegel, embora de modo diferente, tende a mostrar a diferença entre conhecimento e verdade, ou seja, que um enunciado explícito carece da inclusão da posição de enunciação que funciona aí como negatividade e até desordem emergentes.

    Em Platão não nos devemos fascinar inteiramente pelas posições explícitas de Sócrates é preciso ainda olhar também para a forma em que essas posições se constituem e embora possamos chegar a suspeitar que Platão possa ter manipulado a forma da dialéctica através da invenção de diálogos ainda assim é importante considerar que talvez não houvesse melhor opção e “fingir” que os diálogos existiram mesmo para que possamos aceder à dimensão fundamental, mas mais fugidia, da dialéctica.

    O que eu quero dizer aqui é que Sócrates aparentemente não vai com uma tese que debita de um púlpito (com excepções, a maior das quais, em “O Banquete” onde se trata mais de uma colecção de discursos do que propriamente de um diálogo) mas vai antes na disponibilidade de escutar o interlocutor partindo do que ele diz para constituir a sua aproximaçáo ao tema em pauta – o que isto indica é que, formalmente, nem o interlocutor nem Sócrates saberiam no início do resultado a que chegaria o diálogo e que só no fim, uma vez estabelecida a tese final, se poderia retrospectivamente reconstituir o diálogo como um cujo fruto só poderia ser aquele que deu.

    Mas isto não deve esconder as duas dimensões formais em jogo, ou seja, que o diálogo é em primeiro lugar uma contingência cujo alcance não se percebe do início e em segunda instância é o que só poderia ter aquele fim quando todos os passos são revisados.

    O conhecimento é ali o que explicitamente levamos connosco, uma tese sobre o belo ou a justiça, a verdade contudo não é só isso é também que essa tese só foi possível pressupondo o diálogo e que, portanto, só retrospectivamente é uma verdade valida por si mesma.

    Em Hegel isto é muito mais explícito. Quem quiser pode ler a secção da Ciência da Lógica dedicada ao infinito verdadeiro: o movimento lá ilustra bem o que é a dialéctica, que o infinito verdadeiro (da razão especulativa) só é concebível a partir dos impasses entre o finito e o infinito espúrio (do entendimento), ou seja, que foi preciso o ‘erro’ do entendimento para se constituir a verdade da razão.

    O que a dialéctica deixa desde logo é a impossibilidade de uma qualquer tese poder conter-se dentro de si mesma até porque uma tese que se constitui aponta para si tanto quanto aponta para um “lugar” que só de fora da tese a pode recolher como um todo, como uma formulação de sentido – esse lugar de fora é fundamental para a constituição da tese, sem ele a tese não se fecha numa unidade mais ou menos complexa de sentido. Porque é “de fora” e é fundamental para a amarração da lógica interna da tese ocorre desde logo que este interior está minado com a necessidade de um ponto fora dele, de um ponto que para aquela amarração é cego.

    Vemos esta lógica também na decisão, ou seja, eu posso estudar um problema até à exaustão mas há sempre uma diferença, um salto fenomenológico direi, à falta de melhor expressão, entre o estar em análise e o decidir baseado no que se analisou – a decisão tem a faculdade de amarrar a análise num todo, numa totalidade de sentido, cujo não acontece enquanto não se decide nada e só se analisa.

    A decisão permite criar uma oposição entre o complexo da análise e o complexo formado depois da decisão, do que emerge uma nova possibilidade de retomar a análise mas agora com a experiência do complexo gerado da decisão.

    Então, a dialéctica não é uma receita de previsibilidade mas pelo contrário é a certeza de que nada está garantido a não ser esta falta de garantia.

    Muito basicamente o princípio da dialéctica é que só é possível começar a pensar sem que todos os dados e influências estejam presentes explicitamente e que, portanto, dada a diferença dentro do pensamento explícito entre o explícito e o implícito, só é possível começar a pensar errando e que é no erro que o que pensávamos se vai duplicar tornando-se objecto para um outro pensamento. É também assim, por exemplo, com o erro, o deslize, o acto falhado, embora não só, que, para Freud, a consciência acede ao insonsciente.

    Vamos de erro em erro, ou, como dizia Che Guevara de derrota em derrota até à vitória final – indicando com isto que há no processo revolucionário uma diferença irredutível entre a luta e o seu resultado, ou seja, que nenhuma revolução consegue passar a instituição sem que alguma coisa específica à revolução desapareça irremediavelmente e outras coisas apareçam sem que tenham sido previstas. Ou seja, ninguém sabe durante a luta o que é que realmente significará a vitória, quer dizer, o ser humano vive constantemente em obras mas sem fechar para as ditas – está em obras e está estabelecido e aberto ao público ao mesmo tempo.

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