Essas ocupações pretenderam apresentar-se como uma continuidade da radicalidade empreendida pelas manifestações de rua, mas, longe de significar um avanço das lutas, estas ações são a própria confissão de que chegou o refluxo. Por Passa Palavra
I
As lutas dos trabalhadores conjugam dois aspectos indissociáveis mas, ao mesmo tempo, inconfundíveis: seu conteúdo programático e sua forma de organização. A decisão de apresentar dadas reivindicações ou de passar imediatamente à prática dadas pressões decorre da forma de organização adotada. Reivindicações similares podem ter sido deliberadas em sistemas organizativos muito diferentes, e a pressão que de imediato resulta da apresentação de reivindicações, ou que é exercida independentemente de qualquer reclamação explícita, pode ser posta em prática de acordo com formas de organização muito variadas. Todos aqueles que se importam, sobretudo, ou mesmo exclusivamente, com as ideologias e os labirintos da consciência, se interessam pelas reivindicações formuladas e subestimam, ou ignoram, as formas de organização.
Para nós, é decisivo o fato de que as mesmas reivindicações possam processar-se mediante formas de organização diferentes, por vezes mesmo antagônicas. Só depois, a prazo, é que a identidade ideológica inicial, revelada na formulação reivindicativa comum, diferencia-se em ideologias distintas ou antagônicas, que expressam diferentes formas organizativas. Mas, como até agora as situações mais frequentes têm sido aquelas em que os processos reivindicativos não duram o suficiente para originar uma expressão ideológica eventualmente distinta da inicial, todos os que se limitam a analisar o nível ideológico ficam sem qualquer possibilidade e perceber a diferença entre as formas de organização.
O que nos leva direto a algumas consequências estranhas das manifestações de junho.
II
Após as jornadas de junho, com o refluxo das mobilizações de massa nas ruas, começaram a pipocar em todo país ocupações de órgãos do Legislativo, em especial Câmaras de Vereadores, que estavam em recesso parlamentar. E são o sintoma de uma dinâmica curiosa.
Estas ocupações são compostas principalmente por trabalhadores qualificados cujos traços característicos analisamos ainda em abril, durante as primeiras manifestações contrárias à eleição do pastor Marco Feliciano para a comissão de direitos humanos da Câmara dos Deputados (ver aqui). E são uma forma de luta que parece ignorar todo o acúmulo político que tivemos em junho.
A primeira coisa é que representam, fisicamente, um movimento para o interior da institucionalidade, quando em junho, pelo contrário, as manifestações faziam questão de situar a rua como o espaço da luta. Além disso, as ocupações são um alívio para todas as organizações militantes, em especial partidos, que sofriam com o desencaixe entre sua forma de organização e as formas que o movimento assumiu nas ruas, por diferenças do ritmo e da linguagem que exige a política das ruas (ver aqui). De fato, com as ocupações agora os militantes de partidos estão de volta a um terreno que conseguem compreender, no qual suas práticas burocráticas voltam a fazer sentido e a ter alguma eficácia.
As Câmaras de Vereadores são um espaço com o qual militantes partidários já estão familiarizados, e suas ocupações repetem o teatro das ocupações de reitoria e das acampadas e “ocupas” protagonizadas pela juventude nos últimos anos. Em qualquer delas está sempre presente um setor sincero e disposto à luta, em geral identificado como “autônomo”. São militantes novos procurando experiências de luta, e militantes mais velhos que vão parar ali porque se orientam mais por um senso ativista do que por uma reflexão estratégica. Não raro militantes que nas últimas semanas ocuparam as casas legislativas tiveram em qualquer destas duas formas de ação sua primeira experiência de ativismo político – e sua circulação entre uma e outra forma tem consequências que analisaremos adiante.
Vale observar como ocupações e acampadas, na medida em que foram virando praxe, foram perdendo impacto e se tornando espaços vazios de qualquer sentido político. No caso das ocupações de reitorias, não obstante suas pautas e o esforço daqueles que as construíram, elas terminaram por servir menos à conquista de suas próprias pautas que ao reforço da imagem “revolucionária” de grupos externos em meio a novos militantes que, de outra maneira, vê-los-iam como o que são –burocratas em busca de reforço à sua estratégia de conquista do espaço político na entidade estudantil “A” ou “B”. No caso das acampadas e “ocupas” – exceto em poucos lugares onde a vinculação imediata a movimentos sociais deu-lhes outro caráter – elas não passaram, e à revelia das intenções daqueles que a fizeram, de ações que objetivavam a própria ação, de performances que pouco fizeram além de garantir “vivência militante” a quem delas participou. Fizeram amizades, construíram relações entre seus pares, viveram de modo “radical” – mas, em geral, nada além disto.
E assim as manifestações de junho conseguiram, entre outras coisas, o que antes parecia impossível: unir os ditos “autônomos” com os ditos “partidários” na mesma vacuidade política. Duas frações de um mesmo setor de classe – os trabalhadores qualificados – antes separadas por divergências táticas, agora agem em conjunto sob a mesma forma de ação. Mas aquilo que qualquer analista menos atento saudaria como um avanço, vemos como um retrocesso. É evidente que onde houve ligação entre ocupações e movimentos de massas, a dinâmica foi outra. Em Belo Horizonte, a Prefeitura foi ocupada pelos movimentos de moradia; em Vitória, a ocupação da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES) tinha a pauta clara da revogação do aumento no pedágio metropolitano; no Rio, uma tentativa de ocupação da Câmara foi feita pelos professores municipais em greve. Também em cidades pequenas, devido às dimensões e dinâmicas que lhes são próprias, se desenvolveram processos mais interessantes. Mas nas capitais e metrópoles, de modo geral, estas ocupações se deram de modo absolutamente descolado de movimentos reais, mais como umatática de desespero que como uma tática de luta. Desligadas do cotidiano e de processos reais (seja de mobilização de rua, seja de trabalho de base) elas tem um efeito no máximo midiático, espetacular. E em política, sabemos por experiência, espetáculos não levam a conquistas, mas a derrotas.
Essas ocupações pretenderam apresentar-se como uma continuidade da radicalidade empreendida pelas manifestações de rua, mas, longe de significar um avanço das lutas, estas ações são a própria confissão de que chegou o refluxo. Formas radicalizadas de luta, as ocupações de órgãos públicos foram transformadas em verdadeiras performances teatrais, em atos auto-suficientes e auto-referentes, bem ao modo das acampadas. Servem também para que organizações duramente criticadas nas manifestações de junho possam criar um espaço político igualmente “radical” para dividirem as migalhas políticas do bolo que as manifestações de rua cozinharam. E, além de tudo, pouco ou nada contribuem para superar o abismo entre os trabalhadores qualificados que as constroem e os trabalhadores menos qualificados que assistem à performance na televisão dos restaurantes durante o almoço.
Para que tal crítica seja mais bem compreendida, oferecemos dois exemplos clássicos do que dizemos.
III
Em Salvador foram muitas as manifestações de rua no mês de junho, chegando a maior a ter mais de dez mil pessoas nas ruas. Porém, a cidade estava sitiada por policiais, pela Força Nacional de Segurança e pelo exército devido à Copa das Confederações, e os atos ou não conseguiam chegar aos seus alvos (Fonte Nova, Palácio de Ondina [residência do governador da Bahia], etc.), ou eram duramente atacados quando a eles chegavam (Iguatemi). Assim, os gestores públicos saíram ilesos, não tendo que ceder em nada às demandas expressas nas manifestações de rua.
Quando o virtual estado de sítio que se abateu sobre as cidades-sede da Copa das Confederações foi encerrado, as manifestações de rua em Salvador não tiveram mais força para dobrar os gestores públicos; isto ficou bem claro quando uma passeata com destino à Prefeitura não fez outra coisa além de se dispersar no local e “fazer passe livre” na Estação da Lapa, horas depois. As disputas internas entre os ativistas que reuniam quase semanalmente desde junho no Passeio Público passaram a pautar sua dinâmica; a cada semana uma força política ganhava evidência para logo em seguida perdê-la para o próximo grupo, e por sua vez perdê-la para o imediatamente seguinte. Apesar disto, a miscelânea de partidos, coletivos libertários, militantes “independentes” (de quê, afinal?) e novos ativistas, todos eles reunindo condições indispensáveis para a continuidade de sua ação após o encerramento das grandes ações de massa (como disponibilidade de tempo e disposição para o sacrifício de outras atividades em prol das ações militantes), levou à formação de uma frente de lutas que, adotando o nome do movimento cuja ação militante deu início às jornadas de junho e cuja vitória completa praticamente encerrou este ciclo de lutas, se autodenominou “Movimento Passe Livre Salvador”.
Dentro desta frente de lutas, e apesar do crescente caráter fratricida e desorganizado das assembleias deliberativas, se consolidavam os interesses em, de um lado, se somar ao MPL “nacional” – inclusive na sua forma de organização e deliberação – e, de outro, em focar as ações diretas também contra os governos estadual e federal (ambos sob gestão do PT). Projetava-se timidamente a expansão das atividades para outros setores além daqueles que já vinham se agregando nas assembleias deliberativas (muitos estudantes universitários; alguns professores municipais e estaduais; muitos artistas de rua e poetas; alguns profissionais da comunicação social; etc.), o que deixava aberto o caminho para iniciar o chamado “trabalho de base”. Através da construção de um ciclo de debates e atividades, estava-se apontado para as seguintes perspectivas estratégicas: 1) Rejeição à via parlamentar; 2) Mobilização de jovens e trabalhadores; 3) Participação em espaços que possibilitem a articulação com outros movimentos; 4) Construção de força nas ruas, nas lutas. Partia-se do pressuposto de que as ruas não voltariam a ser ocupadas por milhares de pessoas nos próximos dias e que era preciso se preparar para momentos futuros.
Contra esta tendência estavam não só a aposta nas conquistas imediatas através da institucionalidade por parte de indivíduos e grupos habituados a converter derrotas massivas em vitórias mínimas, mas também o voluntarismo de setores libertários empolgados por formas de ação política que já não se usavam em Salvador há muitos anos, e os novos ativistas, apaixonados pelo momento que tinham vivido em junho. A soma destes fatores resultou em que a ação imediata passasse a ser a principal razão de ser dos ativistas, e não a organização para a ação. Nos dias entre a audiência pública na Câmara de Vereadores e a sua ocupação, foi esta a tônica dos debates, que terminou por dividir os autoproclamados “revolucionários” daqueles a quem acusavam de “burocratas”. Não obstante, havia uma tendência a se sobrepor às divergências internas através do discurso da unidade, e havia um respeito mínimo pelos espaços de construção coletiva. Foi um período curto, é verdade, mas trouxe uma perspectiva de construção coletiva e de longo prazo para muitos que se decepcionavam com a falta de vitórias do movimento.
Mas uma dinâmica curiosa foi logo percebida. De um lado, enquanto as manifestações massivas estavam nas ruas, os ativistas mais dispostos à “radicalização” – ou seja, pixações, confrontos com a polícia, etc. – cederam gradualmente à gritaria de “sem violência” e “sem vandalismo” e perderam o momento adequado para ações mais extremadas; de outro, após o refluxo, todos os ativistas que restaram usaram muito de seu próprio tempo em discussões inúteis nas assembleias, em especial a recorrente rixa entre “partidários” e “não-partidários”, e não conseguiram sequer construir a confiança necessária para estas mesmas ações extremas. Se as coisas continuassem assim, em breve não haveria mais nada a unir os últimos resistentes.
Foi então que se aprovou e construiu na assembleia um ato em direção ao Centro Administrativo da Bahia – onde se concentram os órgãos do governo estadual em Salvador (ver aqui um relato). Organizado com as próprias forças dos ativistas, contou com menos de 150 pessoas, sendo que cerca de um terço era de estudantes secundaristas mobilizados através de panfletagem nas portas das escolas próximas. Se esta ação serviu para alguma coisa, foi para ser termômetro da capacidade de mobilização dos ativistas reunidos semanalmente no Passeio Público; por isto mesmo, exceto por insignificantes ações simbólicas como o rebatismo do monumento a Luís Eduardo Magalhães para Carlos Marighella, a denúncia da violência policial em frente à Secretaria de Segurança Pública e o constrangimento ao presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Nilo (PDT), a marcar uma audiência pública com o governo estadual; exceto por estas ações, estava mais que demonstrado que a capacidade de mobilização social dos ativistas reunidos no Passeio Público andava próxima do zero. Afinal, o número de pessoas no ato, sem contar os secundaristas, era menor que o número de participantes regulares da assembleia dos sábados.
Um dia antes do ato, a surpresa: a ocupação da Câmara de Vereadores. Ela foi feita com base numa controversa “comissão de ação direta” constituída dias antes em assembleia no Passeio Público; para os que dela sabiam e para os que entraram na Câmara, a tentativa era a de criar um fato político capaz de, ao mesmo tempo, constranger a Prefeitura à negociação de sua pauta e colaborar na ampliação da mobilização. Respondeu, de quebra, às insistentes cobranças de setores libertários por “mais ação”, e foi, assim, também uma tentativa de reverter o quadro de autofagia e cizânia em que os ativistas se encontravam.
Ao mesmo tempo em que era paulatinamente esvaziada de sentido político, a ocupação passou a ditar o ritmo e as pautas das manifestações em Salvador, centralizando inclusive as assembleias deliberativas, que foram transferidas do Passeio Público para a frente da Câmara. Pela necessidade de presença massiva para dar suporte aos ocupantes, militantes que poderiam estar construindo novas mobilizações nos bairros, nas escolas, nas universidades, etc., viram-se obrigados a concentrar-se num acampamento improvisado na frente do prédio histórico. O processo de transformação de uma frente de lutas num movimento social foi abortado, o trabalho de base foi suspenso e as brigas internas passaram a acontecer cotidianamente.Em pouco tempo, entretanto, os dois objetivos da ocupação foram frustrados. O prefeito, Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM), recusou e recusa-se a “negociar com partidários” – e é fato que na ocupação estiveram presentes, entre outros tantos, militantes de partidos que vão do PSOL ao PTC. Paulo Câmara (PSDB), presidente da Casa, nem exigiu o prédio de volta através de reintegração de posse, nem se colocou à frente de qualquer processo de mediação entre os ocupantes e o prefeito; ameaçou cortar a luz e a internet, mas, além disto, nada fez – e, inédito na história das ocupações ocorridas após as manifestações de junho, não apenas garantiu um suprimento diário de água e de café da manhã para os ocupantes. Com isto, foi fazendo aos poucos da ocupação um ato sem sentido além do afã militante.
Agora, com os fatos a comprovar que não tinham qualquer capacidade de mobilização própria, os manifestantes viram-se forçados a render-se a qualquer tipo de aliança e a qualquer tipo de tática para garantir que sua derrota tivesse ares de vitória moral. Não bastassem falas várias que convergem no sentido de que “as audiências públicas já são uma vitória” – como se o peixe vencesse o anzol ao morder a isca – na manifestação de 13 de agosto consolidou-se a aliança dos ocupantes e de seus apoiadores com a UJS (juventude do PCdoB) e a Associação de Grêmios e Estudantes de Salvador (AGES) (ver aqui o site da entidade). E agora, o chamado “Movimento Passe Livre Salvador” encontra-se refém da organização que contribuiu com a derrocada da Revolta do Buzu, dez anos atrás, e da organização que contribuiu com a derrocada da Frente Única Contra o Salvador Card mobilizada pelo Movimento Passe Livre sete anos atrás. No momento em que qualquer destas alianças ruir, por haver chegado o limite da mobilização de cada entidade, cai também o movimento, por não haver construído bases próprias para além dos indivíduos que hoje constituem seu “núcleo duro”.
Mesmo que os ativistas hajam seguido o rumo da institucionalidade e a ocupação tenha resistido um mês esperando Godot, nada mudou em Salvador: o valor da passagem não baixou e o prefeito sequer atravessou a rua para conversar com os ocupantes. Um ou outro vereador assumiu compromissos, mas nada de concreto foi oferecido ao movimento. Com o desgaste interno, o cansaço físico e as divergências a montante, lançou-se mão do que deve ser a última carta.
Pouco mais de um mês atrás – e já parece uma década – um fato importante nas lutas em Salvador foi a formação de uma comissão para representar o movimento em uma audiência pública com a Câmara de Vereadores. Essa comissão foi destituída e substituída por outra formada em quase sua totalidade por militantes com história na luta pelo transporte público na cidade. A formação de comissões era, sem dúvida, o momento de maior tensão, pois servia como termômetro para avaliar a capacidade de mobilização de cada força política neste processo. A cada nova comissão formada, a possibilidade de implosão aumentava, mas também ficava mais evidente que determinados grupos ganhavam força, enquanto outros eram vencidos pela inexperiência ou pelo cansaço.
Formou-se nas últimas semanas, então, uma outra comissão, destinada a apresentar as propostas do movimento à Assembleia Legislativa e ao governador Jacques Wagner (PT), sem caráter deliberativo, com poder apenas para levar propostas ao governo estadual e trazer de volta aquelas que lhe fossem apresentadas. A comissão era composta por ocupantes da Câmara, por “independentes” e por representantes dos partidos políticos – mas, somados os três setores, a esmagadora maioria da comissão era formada exatamente por setores próximos ao governo estadual. Sabendo da oposição entre a Prefeitura de Salvador – controlada pelo DEM – e o Governo da Bahia – controlado pelo PT – os ativistas do “Movimento Passe Livre Salvador”, vendo decair sua capacidade de mobilização, tomados pelo cansaço, já desgastados e sem perspectiva alguma de qualquer conquista imediata, apostaram todas as fichas num blefe alto: colocar prefeitura e governo para brigar entre si, uma vez que o governo administra os trens suburbanos (através da Companhia de Trens de Salvador) e o transporte coletivo metropolitano (através da AGERBA). Conquistar redução tarifária nos ônibus metropolitano e a tarifa zero no trem suburbano poderia fazer a Prefeitura ceder. Mas perderam de vista o principal: que agora não são eles quem dão as cartas, mas as mesmas forças políticas hostilizadas pelas manifestações de junho, originadoras do movimento. Já foram politicamente derrotados há algum tempo, mas a ânsia por alguma conquista imediata que dê sentido a seus esforços ainda anima seus corpos, que erram, trôpegos, em busca de cérebros com que se alimentar.
Mas isto é apenas parte da derrota. Durante a audiência pública, a comissão propôs, e o governo estadual aceitou, a formação de uma comissão técnica para avaliar a viabilidade das reivindicações apresentadas, com participação tanto dos ativistas quanto de técnicos governamentais e representantes de outros movimentos sociais. Além de haverem extrapolado seu mandato, deliberando o que não tinham poder para deliberar, não perceberam o óbvio. Esta comissão é uma comissão auxiliar à Câmara Técnica de Mobilidade Urbana do Conselho Estadual das Cidades, que por sua vez é um órgão auxiliar do Conselho Estadual das Cidades, que por sua vez é um conselho “deliberativo e fiscalizador no que se refere às questões da Política Estadual de Desenvolvimento Urbano”, que por sua vez não foi sequer formulada ainda (exceto se se considerar “desenvolvimento urbano” apenas como “habitação de interesse social”, que já tem política aprovada em lei estadual). Em suma: qualquer proposta tem grande possibilidade de se perder no emaranhado burocrático.
Por último, o mais grave: o governo empurrou para o movimento a tarefa de dizer o que é possível ou não técnica e financeiramente, além de responsabilizá-los pela criação das políticas de governo, que obviamente nunca acontecerão.
E assim, pela própria iniciativa daqueles que a construíram, a ocupação da Câmara de Vereadores de Salvador mostrou-se um verdadeiro tiro pela culatra. Não conseguiu obrigar a Prefeitura a negociar. Não conseguiu sequer incomodar os vereadores, que quando foram provocados a votar a isenção de ISS para construtoras retornaram ao trabalho, votaram o que tinham de votar e foram embora. Sequer a mídia a ocupação consegue mais pautar. E o que consegue junto ao Governo da Bahia é através de formas completamente contrárias àquelas que lhes deu origem. Finda com apenas dois últimos resistentes, e com os cerca de vinte que acamparam do lado de fora do prédio, nem sequer pode-se afirmar que hoje ainda exista o “Movimento Passe Livre Salvador” para além de um grupo no Facebook e duas ou três figuras a dar entrevistas em nome do que antes ocupava as ruas. E agora que a unidade não faz mais sentido a ninguém, as denuncias de agressão física, racismo, assédio e abusos sexuais, todas sufocadas até então, vêm à tona, sem contudo que tenha mais alguém para ouvi-las.
IV
A jornada de lutas que derrubou o aumento em São Paulo no mês de junho, longe de constituir uma rebelião popular completamente espontânea, foi um processo extensamente discutido e planejado pelos movimentos que a protagonizaram. Analisando as limitações das experiências anteriores de lutas contra o aumento na cidade e confrontando-as com as mobilizações que haviam alcançado vitórias em outros lugares (Floripa, Vitória, Teresina, Natal, etc), o coletivo do Movimento Passe Livre de São Paulo escolheu assumir uma estratégia de mobilização intensa, radical e descentralizada. O sucesso dessa estratégia dependia da capacidade que a mobilização teria de transbordar o controle do próprio movimento, abrindo um cenário de revolta popular na cidade que só poderia ser freado com a revogação do aumento.
Permitir que a luta ultrapassasse controle da organização que a iniciara era, portanto, um desafio que o MPL-SP colocara a si mesmo. Nesse sentido, mesmo com o MPL tendo assumido o lugar de “porta-voz” da mobilização para imprensa e o poder público, seus militantes se recusavam a falar em nome da massa manifestantes: “não podemos negociar nada diferente a revogação do aumento, porque essa é a reivindicação que está levando as pessoas para a rua”. Não havia, portanto, a possibilidade de negociar concessões com a Prefeitura e o Governo.
Ficava claro, portanto, que o lugar daquela luta era a rua. Seria na rua, e não no dentro dos espaços institucionais, que se efetivaria a redução das passagens. Essa opção já se fazia perceber no gesto do primeiro grande ato, no dia 6 de junho, quando a passeata de milhares de pessoas passou reto pelo edifício da Prefeitura, sem sequer uma parada, e seguiu para a Av. 23 de Maio, onde foi erguida uma barricada de catracas com pneus (reza a lenda que dentro do prédio já aguardava uma comissão de negociação formada pelo Secretário de Transportes, o Chefe de Governo e outros, mas que terminou ignorada). Diferentemente das jornadas contra o aumento empreendidas em São Paulo durante a gestão Kassab (DEM-PSD), nas quais os movimentos pressionavam por abertura de negociações ou audiências públicas, sob a gestão Haddad (PT) esses caminhos – ou labirintos? – institucionais apareciam como armadilhas. Afinal, são eles que o PT melhor domina, são eles uma das ferramentas históricas de cooptação dos movimentos sociais.
Ao longo de junho, por vezes os movimentos discutiram a possibilidade de ocupar algum órgão público, como a Câmara, a Prefeitura ou a Secretaria de Transportes. Mas logo ficava visível que isso significaria sufocar a luta: quem mais se interessava com os manifestantes entrando em suas salas eram os próprios gestores. O sentido do movimento deveria ser o inverso, de espalhar a luta pelas ruas e bairros da cidade. O único momento em que uma manifestação se dirigiu à Prefeitura de São Paulo, foi para destruí-la.
Dois meses após a revogação do aumento, as organizações de esquerda, enfim recuperadas do estado de perplexidade daqueles dias, já fazem seus balanços de junho e formulam estratégias de atuação para aproveitar-se do grande ascenso das massas. Contudo, não fazem uma autocrítica de seus programas ou práticas apenas tentam repetir as bandeiras e ações com as quais já estavam acostumados. Um exemplo claro disso são as autoproclamadas “jornadas de Agosto” realizadas pelo PSTU por meio de seu aparelho estudantil, a ANEL, que seriam voltadas para ocupações de Câmaras Municipais para aprovar o “passe livre” estudantil. Em São Paulo, aproveitando-se da mobilização organizada pelo Sindicato dos Metroviários e pelo Movimento Passe Livre no dia 14 de Agosto, destacaram um grupo de pessoas após o final das manifestações e fizeram um verdadeiro teatro na Câmara dos Vereadores. Enquanto sua base, para a qual queria mostrar-se radical depois da polêmica em relação ao Black Block, seguia em uma passeata pronta para o confronto, os dirigentes já combinavam por telefone com os vereadores a entrada de uma comissão de lideranças para negociar. Depois de serem convidados a entrar pelo presidente da Câmara estenderam uma faixa que dizia que a ANEL havia ocupado-a, e enquanto a vanguarda negociava uma audiência pública a base era violentamente reprimida pela Polícia Militar. Saíram da dita ocupação afirmando que tinham conquistado uma Audiência Pública sobre a política de transporte, na qual pautariam o “passe livre” estudantil; vale destacar que o MPL-SP recusou diversas vezes propostas semelhantes feitas pela Câmara no intuito de colocar o movimento dentro da esfera institucional, o PSTU não apenas aceitou essa entrada como procurou negociar com Ricardo Young (PPS) a realização dessa audiência. Acerca da relação de parlamentares com o “passe livre” estudantil vale citar a nota do MPL-SP:
Acreditamos que tanto o projeto em tramitação no Congresso, quanto essa audiência em São Paulo seguem a linha apresentada pelo senador Renan Calheiros (PMDB), que, no auge das revoltas de junho, defendeu um projeto que concederia o benefício do passe livre para estudantes, através de recursos de royalties de petróleo destinados à educação. Não é, portanto, a primeira vez que as instituições parlamentares tentam recuperar o protagonismo tomado pela população que foi às ruas modificar os rumos da política e decidir ela própria onde devem ser investidos os recursos públicos. Renan, e agora a Câmara de São Paulo e o Congresso, parecem acreditar que foi apenas a juventude a se manifestar e, por isso, apostam no enfraquecimento deste setor através de uma medida que o beneficia. Esta avaliação parcial do processo que vivemos em junho é apenas um sintoma que evidencia o descompasso entre as instituições e a população. As precárias condições de vida, a organização popular e as vitórias que conquistamos criaram uma cultura de luta que não pertence apenas à juventude, mas aos trabalhadores e trabalhadoras, desempregados e desempregadas, excluídos e excluídas em geral. Nada vai impedir a continuidade de nossa caminhada.
A falsa ocupação da câmara apareceu com uma dupla negação das Jornadas de Junho. Enquanto as mobilizações de junho defendiam uma pauta explicitamente proletária com ampla mobilização popular no centro e na periferia; ao invés de tentar o diálogo com o conjunto da população procura se afirmar uma entidade estudantil como referência de maneira divisionista e oportunista. Enquanto junho foi marcado pelo protagonismo das ruas e pela negação da institucionalidade, a “jornada de agosto” contribui para uma retomada do protagonismo dos parlamentares na condução da política.
V
O critério do radicalismo de uma luta não é o seu conteúdo programático inicial, as reivindicações primeiro formuladas. Se estas forem tão avançadas que sejam apenas entendidas por uma minoria, incapaz de se ampliar num movimento mais amplo, servirão então apenas para continuar o isolamento da minoria e, portanto, para manter a fragmentação dos trabalhadores. Nesse caso, contrariamente às aparências, tais programas e reivindicações nem são avançados nem radicais e constituem um componente da passividade e do fracionamento que atinge a grande parte da classe trabalhadora. Ao contrário, reivindicações que digam imediatamente respeito à massa dos trabalhadores e sejam passadas ativamente à prática pelo coletivo da força de trabalho servem para que cada um aprenda a autocondução dos processos de luta. Permitem que as relações sociais igualitárias, coletivistas e solidárias criadas nas lutas deixem de ser palavras incompreendidas de programas ignorados e passem a constituir o resultado de uma prática conjunta. É nesta perspectiva e neste nível que a problemática do radicalismo deve ser colocada.
As ocupações de órgãos legislativos são, inegavelmente, uma forma radical de luta, que a depender da situação em que são empregues podem dar bons resultados; perto de votações com prazo legal incontornável (como as leis orçamentárias) ou como parte mínima de movimentos massivos, por exemplo. E só funcionam para conseguir dos gestores municipais algo que depende imediatamente de aprovação de projetos de lei. Mas no enorme retrocesso vivido após as manifestações de junho na maioria das cidades onde ocorreram, tem sido um último alento de militantes que, por inexperiência ou oportunismo, não conseguem perceber nestas horas a necessidade de reagrupamento de forças. Nestas condições, são verdadeiras arapucas políticas, prontas para pegar os incautos. E, como insistimos, que em nada contribui para a superação do abismo entre trabalhadores qualificados que as constroem e aqueles que apenas a assistem passivamente.
Ainda que o refluxo pareça forte, caberia se perguntar sobre eventuais avanços no que diz respeito à capacidade de organizaçao de setores que nao os trabalhadores qualificados. Penso, notadamente, as ocupaçoes na zona sul de Sao Paulo ou ainda as manifestaçoes em torno da violência policial no Rio de Janeiro. Pessoalmente nao tenho como acompanhar in loco tais desenvolvimentos visto que nao moro no Brasil. Entretanto, coloco a pergunta àqueles e àquelas que acompanham de perto.
P.S.: Peço desculpas pelos eventuais erros de ortografia. O teclado nao aceita uma série de sinais.
Aquiles,
As jornadas de junho, num sentido amplo, não foram obra dos setores mais precarizados da sociedade e, no geral, esteve descolada do núcleo de problemas por eles enfrentados. A gloriosa exceção ficou por conta do caso Amarildo. Pela primeira vez vimos a classe média levar a sério um protesto contra o cotidiano de chacinas e horror que os pobres enfrentam nas favelas, quebradas, bairros dormitórios. O caso Amarildo é, inclusive, mais importante que o cancelamento dos vinte centavos e foi a grande vitória no processo. Eu diria até que apresenta uma linha tática.
Marcos,
barrar o aumento do transporte público foi uma vitória de fato. O caso do Amarildo ainda não está resolvido e pessoalmente não vejo um desfecho de vitória no caso. Sem tirar o mérito de que o assunto tenha criado interesse em outros setores da sociedade com relação às mazelas da população que habita as favelas, fato é que o povo dobrou os governantes no que diz respeito ao aumento, não podemos dizer, ainda, o mesmo sobre o caso Amarildo. O dia que Cabral renunciar antes de seu mandato terminar, aí poderemos avaliar se a mobilização em torno da morte de Amarildo teve saldo positivo ou não (e a análise terá de ser honesta, tendo em vista que este não é o único motivo da fragilidade atual do governador).
Lucas,
Em Campinas, a prefeitura basicamente dobrou o dinheiro repassado às empresas por conta do cancelamento do aumento. De 36 milhões irá para 71 milhões em 2014. O povo não paga 30 centavos a mais, lá era 3.30, mas os empresários não perderam nada. Se formos fazer as contas, eles saíram ganhando. Há vários mecanismos para as prefeituras encherem os bolsos das empresas e isso deve estar ocorrendo pra todo lado.
Sendo assim o saldo positivo maior fica em outro aspecto. Eu contaria dois ganhos centrais. As mobilizações de junho, embora todos os problemas, deixou o campo mais fácil para as mobilizações da quebrada. Houve uma afirmação massiva do direito e necessidade de protestar e isso facilita o campo para quem não tem outra alternativa se não a luta para ter uma casa, comida, ou não ser morto pela PM.
E tem o caso Amarildo, que não salvou a vida dele mas evita a morte de vários na medida em que criou uma sensibilização inédita em torno da ideia de que pobres sem leitura também são gente. Ainda hoje a esquerda só gosta de falar da morte e da tortura daqueles que haviam sido criados para ser elite e foram abatidos. É muito importante que, enfim, tenha surgido alguma solidariedade com os que vivem sob o horror imposto pelas polícias nas quebradas.
Ainda que o caso Amarildo tenha ganho notoriedade e esteja sendo o centro de demandas e açoes de uma parte consideravel da esquerda e de setores médios, fico preocupado com o relativo silêncio no que diz respeito às ocupaçoes por moradia em Sao Paulo.
Penso que etes primeiros começaram a se articular em torno de grupos e organizaçoes que vinham crescendo em visibilidade ha algum tempo entre os setores médios da sociedade. Ao meu ver, este processo (que adensou-se a partir da desocupaçao de pinheirinho e da “limpeza” da crakolandia) ganhou força com as jornadas de junho que, cabe lembrar, começaram com uma grande marcha contra a truculência policial.
Em contra partida, diferentemente do caso Amarildo onde a luta é essencialmente politica (pois contra a instituiçao policial e a violência que lhe é inerente) cabe ressaltar que os participantes das ocupaçoes estao se contrapondo diretamente ao capital, travando sua luta na arena economica e nao apenas politica; além do que, segundo vejo pela internet o estao fazendo “espontaneamente”, experimentando formas de auto-organizaçao que podem vir a ser o preludio para algo mais interessante.
Aqui, mais uma vez, o silêncio de boa parte da esquerda é anuncio de falta (nao necessariamente consciente) de critica direta ao capital. Cabe lembrar que mesmo com relaçao à desocupaçao de pinheirinho o que mais chamou a atençao da esquerda em geral foi a violência com a qual a policia de Sao Paulo agiu e nao o carater essencialmente economico desta desapropriaçao e de como ela se articula com a importancia da especulaçao imobiliaria no Brasil.
A propósito, observei que as manifestações de junho deram origem a uma série de produções no campo da arte e da cultura em geral – isso daria até um artigo. Produziram músicas de vários tipos, poemas, grafites, camisetas, peças de teatro, filmagens várias, textos e tem gente vendendo, além destas coisas, palestras pra todo lado. Não por acaso, os situacionistas diziam que a cultura é a mercadoria por excelência. Depois de junho….uma oportunidade de negócios.
Mas queria chamar a atenção para um caso específico: a Boitempo, editora cara que publica livros de esquerda, foi a primeira a reunir uma dúzia de intelectuais e publicar um livro sobre o assunto. Será que alguma parte dos lucros obtidos com a venda deste livro será destinada a pagar fianças e gastos processuais das pessoas presas nas manifestações? Será que alguns dos leitores destes livros terão a coragem de fazer esse questionamento diante das palestras que virão?
Enquanto isso, no Rio de Janeiro…
Acho que tem faltado, em várias análises publicadas aqui no passapalavra ou em outros meios (oficiais ou alternativos) uma perspectiva mais clara do que tem acontecido no Rio de Janeiro, que parece diferente do que está acontecendo em São Paulo ou outras cidades.
No Rio de Janeiro, não houve o fim das mobilizações, nem a sua tomada pelos ‘coxinhas’ (aliás, expressão que nem existe no Rio), nem a hegemonia dos partidos políticos tradicionais, e nem a mídia ninja (do fora do eixo) tem tal protagonismo. Ao contrário, o protagonismo, a firmeza e a determinação na luta tem sido dada pelos movimentos populares e autônomos, que tem garantido o caráter popular e radical, além de sua continuidade até esse fim de inverno.
É claro que não são mais os 300.000 ou 1 milhão de junho, mas são milhares de pessoas que vão às ruas todas as semanas, mesmo com a repressão brutal, as prisões arbitrárias (sempre às dezenas), as campanhas da globo e a intransigência do governo do estado e prefeitura, mesmo cedendo em poucos pontos (veja o ‘balanço’ feito pelo globo.com: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/09/cem-dias-de-protesto-no-rj-governo-recua-mas-insatisfacao-persiste.html – eles não citam, por exemplo, o recuo da prefeitura sobre a remoção da Vila Autódromo). E se em junho, também no Rio houve a ameaça da tomada das manifestações com as pautas dos ‘coxinhas’, de fato eles saíram das ruas e as manifestações tem pautas populares e de esquerda: abrir a ‘caixa preta’ das empresas de ônibus, mas não pelos parlamentares financiados por elas e que faria tudo terminar em pizza; a desmilitarização da polícia militar; a solução e o fim dos casos de desaparecimentos e chacinas nas favelas e subúrbios do Rio; o fim das remoções nas favelas; a denúncia das mentiras contadas pela rede globo, que teve mesmo que se justificar em um editorial porque apoiou a ditadura em 64; além das palavras contra o capitalismo, o Estado, a burguesia, e a favor da organização popular. Se soma a isso ainda a greve dos professores, que ganhou nas ruas manifestações de um tamanho que há muito tempo não se viam.
Os partidos políticos de esquerda, marcando presença na maior parte das manifestações, não conseguem hegemonizar e ditar o ritmo e as pautas das mobilizações, e em boa parte das vezes suas declarações ficam a reboque do que acontece nas ruas. O mídia ninja (do fora do eixo), mesmo tendo se destacado, principalmente depois da prisão de alguns deles em uma manifestação, parece na verdade mais tentar correr atrás (às vezes literalmente) da dinâmica colocada pelas mobilizações. O movimento segue seu caminho, e parece, agora, que o mídia ninja apenas acompanha, lateralmente. E se a transmissão ao vivo tem um impacto e uma importância de denúncia da repressão, a falta de análise e a incompreensão do que é o movimento deixa clara a distância do mídia ninja e do que tem acontecido nas ruas. As andanças de um lado pro outro do black block os deixam perdidos, sem entender e literalmente correndo atrás do movimento. Ainda assim, é de se ressaltar que eles permaneceram muitas vezes em meio às balas de borracha, e bombas de ‘efeito moral’ e gás lacrimogêneo, para transmitir o que acontecia.
Quanto ao black bloc, que tem se destacado e dado mais trabalho ao governador, ao prefeito e à polícia militar, se engana quem pensa que é composto de filhos da classe média. Muito ao contrário. É um grupo popular. E se não é exclusivamente de filhos da periferia, é muito mais popular do que a ideia de filhos da classe média. Não é a toa que nas manifestações amplas estão juntos dos movimentos de favela e organizações populares. Assim, sem dúvida, aconteceu no Rio um salto de organização, mobilização e consciência popular, que pelo menos menos tem sido capaz de incomodar o poder, de baixo pra cima e contra a ordem.
No dia 7 de setembro, não só o desfile militar organizado pelo Estado já seria 40% menor do que em outros anos, como também 400 pessoas conseguiram furar o bloqueio da tropa de choque e efetivamente atrapalhar o desfile de manhã cedo, gritando palavras contra o governador Sérgio Cabral, contra a violência policial. A polícia jogou bombas indiscriminadamente, atingindo inclusive aqueles que foram assistir o desfile, numa repressão brutal, que prendeu mais de 20 pessoas. Depois as manifestações continuaram. Perto do meio dia, a manifestação do grito dos excluídos, tradicional há muitos anos, tinha mais gente do que o público do desfile militar da manhã. Ao longo da tarde, muita gente se concentrou nas escadarias da câmara municipal, e no fim da tarde se dirigiram à manifestação marcada para ir até a sede do governo do estado, onde foi recebida com outra repressão brutal, com quase 80 pessoas presas e muitas feridas.
As dimensões e a persistência das mobilizações são surpreendentes, e sem dúvida são surpreendentes diante da pasmaceira e da aparente falta de perspectiva que vivia o Rio. Mas são ainda mais para quem não ligava para o trabalho cotidiano de muitos grupos de ocupações, favelas, escolas, ruas, aldeias, e outros lugares, que ajudaram a construir a resistência ativa que acontece nos últimos meses no Rio de Janeiro.