Por Felipe Luiz Guma

 

Há amplo consenso nacional em torno da necessidade de reformas para que o dito Estado democrático de direito e sua concepção de cidadania sejam efetivadaos: rios de tinta foram gastos sobre a situação execrável e estamental da sociedade brasileira. Surgida da violência escravocrata e do genocídio das populações autóctones, sua dita modernização sempre foi autoritária e, muitas vezes, somente para inglês ver, situação que, até hoje, perdura nas populações urbanas e rurais, cuja única inclusão dá-se no âmbito de sua exclusão. Assim, diante de direitos tolhidos, é impressionante que muitos ainda busquem os motivos da atual onda de protestos: o país todo é o motivo, de leste a oeste, de norte a sul, de 1500 a 2013.

São risíveis muitos dos comentários relativos aos protestos de junho, desqualificados pelo establishment midiático em um primeiro momento e tratados a cacetadas pelos poderes do Estado defensor do status quo. Contudo, tendo ganhado vulto, imediatamente passou-se a tratá-los de outras maneiras; agora, o problema não são mais as manifestações, que são justas, mas os vândalos, que depredam o patrimônio público, surram coronéis e enfrentam a polícia. É porque a violência social cotidiana é em todo aceitável; por outro lado, a luta contra ela, esta não, esta não tem justificativas, é anormal, aberração; acostumados a reinar pela força, quando esta se lhes é contraposta não vêem no que se balizar.

Apenas os mais afeitos aos livros podem não apoiar as mobilizações populares pelo fato de estarem no âmbito de reformas no sistema ao invés de pôr-se em uma perspectiva revolucionária e autogestionária. Não entraremos, aqui, no velho debate entre reforma e revolução, que, para nós, já foi superado há muito tempo no interior do pensamento político libertário pelas proposições malatestianas. Em suma, que importa que o povo lute por estatização das universidades ou por cotas, conquanto que o faça por democracia direta e por métodos de ação direta, com demandas anticapitalistas, sem centralismos ou crença nas capacidades do voto ou da representação parlamentar em mudar a sociedade: a análise histórica dá amplos exemplos de quais métodos funcionam e quais não, e mesmo a direita, quando consegue mobilizar-se, vai às ruas  para barrar o que não é de seu interesse.

A fixação no programa como central para a luta não serve para nada senão justificar, primeiramente, a primazia da vanguarda, depois o seu governo, mantendo a velha distinção entre quem manda e quem faz. É o povo em luta que muda o mundo, não os terroristas da teoria, que erguem o dedo para apontar quem segue e não segue a cartilha revolucionária. Destes, os movimentos pouco precisam, posto que mais atrapalham do que ajudam, impedindo o aumento da força social, com debates sectários e jargões consumidos pelas traças do tempo histórico.

Diante da bruta realidade brasileira e do tratamento histórico dado pelos governos às demandas populares, as menores vitórias assemelham-se a verdadeiras tomadas da Bastilha e vinte centavos tornam-se bilhões: não existe política em abstrato, ela é sempre certa correlação de forças, certos embates, cujos vencedores e perdedores são determinados pela situação em especifico.

Não à toa, portanto, que, nas Jornadas de Junho uma das principais reivindicações envolvia o problema da educação, praticamente consenso nacional, se bem que, desde uma análise que busque compreender forças em combate, com finalidades diferentes, se partindo de alguém como Skaf [presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Fiesp] ou do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O estado lamentável da escola pública, precarizada por muitos anos, mas amplamente acessível à população, contrasta, entretanto, com a situação da universidade pública, bastante elitizada, mas, em grande parte dos casos, espaços de plena excelência, com amplo aporte de verbas, docentes bem remunerados e infraestrutura, em muitos casos, invejável. No ensino superior reina a perversa inversão, em que estudantes de baixa renda vêem-se forçados a pagar mensalidades abusivas nas tantas uniesquinas, ao mesmo tempo em que setores de classe média, classe média alta ou das próprias elites têm o conforto de estudar em universidades de ponta, sustentadas pelo suor das populações periféricas e pela massa trabalhadora aculturada pelos meios de comunicação em massa.

Enquanto estudante de filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) encontrava-me precisamente no meio de um movimento contestatório no âmbito desta universidade. Quando estoura Junho, estávamos em uma forte greve que atingiu mais de 60% da instituição, envolvendo ainda docentes e trabalhadores cujos eixos eram, de modo geral, a valorização do pessoal, uma política efetiva de cotas (contra a política de cotas de Alckmin, o PIMESP), medidas de permanência estudantil efetivas e, por fim, democracia nas instâncias da universidade, marcadas pelo domínio de docentes, que têm 70% do peso decisório no sistema — imposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de Fernando Henrique Cardoso — na UNESP, consubstanciado no 70-15-15 (estudantes e trabalhadores) e ainda mais antidemocrático em outras universidades, como na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo.

A UNESP, como se sabe, é uma das maiores universidades do país e, em sendo paulista, talvez ainda mais elitizada que muitas das demais universidades públicas do Brasil. Embora tão afastada dos interesses populares, o atual reitorado orienta suas ações não no sentido da mínima democratização da instituição, mas, muito ao contrário, pelas diretrizes de seu Plano Decenal de Desenvolvimento Institucional (PDI), aprofundar a privatização ou, como se queira, pela modernização da universidade; nisto, em nada diverge do histórico brasileiro, onde o arbítrio e a violência sempre garantiram a “modernização”. Assim, para o reitorado é mais importante garantir a internacionalização da universidade do que sua brasileirização por meio do ingresso de pretos, pardos e indígenas; e as reivindicações por medidas que garantam a permanência de estudantes de baixa renda são preteridas em beneficio de convênios com grandes empresas e universidades estrangeiras. Mais vale subir nos rankings internacionais, objetivando aporte de capitais, do que democratizar a universidade: é o velho mote da ordem e progresso transubstanciado nas instituições de ensino.

Entretanto, assim como Junho forçou ao recuo dos poderes constituídos, a mobilização unespiana fez o mesmo, e o reitorado viu-se forçado a ceder. Paralisações estudantis de um ou mais dias em 25 de 34 unidades, greves em 13 de 25 campi, dezenas de ocupações de salas de aulas, prédios administrativos ou dos próprios campi, vários atos de rua, além de duas ocupações de reitoria — em nada simbólicas, posto que alijaram, mesmo que temporariamente, o reitorado do poder — resultaram no atendimento de toda a demanda de bolsas socioeconômicas, em compromissos da construção de moradias e restaurantes universitários, na institucionalização dos programas de permanência estudantil e, o mais importante, na adoção de cotas étnico-sociais, progressivas, até que se alcance a meta de 50% em 2018. Além disso, em todas as unidades iniciou-se o debate acerca da democratização da estrutura de poder da universidade, com o debate sobre a paridade que, se bem que não é sequer ainda republicano, ao menos põe abaixo o mandarinato, já ostensivamente denunciado em seus abusos e vínculos com o grande capital e com o latifúndio.

Meses depois, tendo a poeira baixado, eis que a Reitoria da UNESP põe as garras de fora, destruindo com suas práticas o que afirma nas belas palavras: uma comissão sindicante foi criada e 12 estudantes foram citados, que a Reitoria enxerga como “líderes” do movimento. O próprio reitor Durigan, agrônomo especialista em tiriricas, bastante vinculado ao agronegócio, ameaça estudantes de expulsão, e a comissão, tal qual como composta, nada mais é senão correia de transmissão da vontade do reitorado. As acusações da reitoria baseiam-se no regimento da ditadura militar, que veta “propaganda político-partidária” e “atos atentatórios à moral e aos bons costumes”. Ao mesmo tempo, no campus de Marília da UNESP, arma-se uma sindicância contra os estudantes que impediram que certo professor, estudioso da via chinesa, surpreendido pela turba de vermelhos do movimento, furasse a greve.

Dá para pensar o porquê do Reitorado buscar reprimir exatamente neste momento, e não podemos concluir outra coisa senão que, ao que tudo indica, fazem cálculos políticos tal como gerem a universidade. Primeiramente, como há de ser, a situação da UNESP tornou-se gritante e redundou em movimento com tal força, pela própria inépcia de seus gestores; se bem queriam aplicar o projeto neoliberal, como o fazem, faltou-lhes a maestria de um Rodas, reitor da USP, que privatiza e reprime, mas manteve o movimento calado graças ao caixa acumulado no último ciclo de crescimento proporcionado pelo lulo-petismo, disponibilizando amplos aumentos salariais e de bolsas, matando, por assim dizer, o movimento pela barriga e ganhando margem para sindicar, punir e demitir. Na UNESP, a superlotação de moradias, a ausência de bolsas, a falta de pessoal e o arrocho chegaram ao nível do absurdo, gerando revolta em todos os segmentos. De outro lado, tendo em conta o ano pré-eleitoral e o quadro aberto com Junho, não parece lá muito perspicaz sindicar e buscar punir estudantes envoltos em lutas pela democratização desta ilha de marajás que é a universidade pública brasileira, dando, assim, amplos argumentos à oposição estadual, com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) já débil a nível nacional. Por fim, já perspectivando os mais de mil cotistas, estudantes de escola pública, que adentrarão ano que vem a UNESP, e a ausência crônica de políticas de permanência estudantil, teríamos, em 2014, uma situação de per si explosiva; agora, com estas sindicâncias, o Reitorado, em um átimo de superior inteligência doutoral, livre-docente e titular, sindica os mesmos estudantes que eles apontam como líderes no processo que redundou na entrada destes mesmos cotistas em todos os cursos da universidade. Assim, a Reitoria apaga o fogo com gasolina, ainda que o reitor perigue queimar seus bigodes.

Em suma, para a Reitoria, as greves, paralisações e ocupações foram gratuitas, desprovidas de sentido; meia dúzia de móveis quebrados, pela própria Tropa de Choque chamada pelo reitorado, são o cúmulo do despreparo democrático dos estudantes. Já o afastamento da universidade da maior parte da sociedade, a ausência de suporte institucional aos poucos estudantes de baixa renda, a voz sempre calada pela força da meritocracia e as negativas acumuladas, estas sim são a expressão mais bem acabada da cultura democrática dos gestores da universidade. Em sua sanha punitiva, de caráter claramente disciplinador, passam por cima, inclusive, das próprias regras de seus estatutos e regimentos; para impor sua vontade, nada, nem mesmo as regras que eles mesmos criaram, podem ficar no caminho.

Não é de espantar, pois, que os poderes estabelecidos busquem punir quem luta pela ampliação dos direitos sociais e por efetivas mudanças no quadro posto. O papel destes é defender o status quo e as menores reivindicações aparecem-lhes como injúrias imperdoáveis. Como somente entendem a linguagem da força institucional ou policial, os movimentos somente podem responder-lhes na mesma linguagem, ampliando a mobilização e forçando-os ao recuo. É isto, ao menos, que trataremos de fazer enquanto movimento estudantil comprometido com as causas populares.

1 COMENTÁRIO

  1. não recuaremos
    ngm vai ser sindicado, no atual momento de luta do país a Unesp se posiciona junto ao fascista do Rodas!
    NÃO PERMITIREMOS
    PELA DEMOCRATIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS
    PELO FIM DE ESTATUTOS FASCISTAS E DITATORIAIS

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