Um atraso de ônibus de uma hora e meia no Terminal da Bíblia gerou uma paralisação espontânea, que se estendeu por mais de quatro horas, e ainda resultou em uma manifestação que atravessou a cidade. Por Um Participante

A momentânea classe-para-si

Hoje, dia 22 de janeiro, em Goiânia, no Setor Leste Universitário, Terminal da Bíblia, às 7h de uma manhã nublada, já fazia uma hora e meia que não passava a linha 019. Outros ônibus atrasavam mais de uma hora. O 019 finalmente chegou. Vários ficaram para trás e o ônibus saiu lotado. Uma mulher chorando, desesperada, se jogou na frente dos ônibus e impediu a passagem. Vários aderiram e, nas palavras de outro participante, “formou-se uma coletividade” que paralisou o terminal e as ruas em volta. Alguns milhares de pessoas decretaram que, uma vez tendo perdido seu dia de trabalho pelo atraso, o transporte não funcionaria “normalmente”. Os empresários iriam sofrer uma parte do prejuízo que era sofrido todo dia pelos usuários. O clima era festivo e em poucos momentos aquelas pessoas estavam conversando, dando gritos e improvisando palavras de ordem naquele lugar que momentos antes só era fonte da sua anulação coletiva.

Essas pessoas, cujo único laço naquele momento era utilizarem o mesmo terminal no mesmo horário, improvisaram grupos informais que se encarregaram de controlar as ruas e trazer informações de uns grupos para outros. Começaram a se concentrar policiais. Esses policiais tentaram impôr a passagem de um ônibus. Os manifestantes não permitiram. A polícia forçou mais a mão. Passou, depois dois. Os manifestantes chutaram os ônibus, depois sentaram no chão na rua. Imediatamente, policiais tentaram tirar essas pessoas do caminho usando de truculência. Nesse momento, as pessoas que estavam indecisas ficaram indignadas com os policiais, agredindo pessoas que estavam resistindo pacificamente. O conjunto de pessoas presentes se unificou contra o que foi percebido como injustiça flagrante e expulsaram os policiais de lá, além dos ônibus que estavam tentando passar. O controle do terminal ficou, assim, assegurado pela população em luta.

“Não somos bandidos não” – gritava uma senhora.
“A gente não é cachorro não!” – gritava outra.
“Respeito! Respeito! Respeito” – gritavam várias

Por outro lado, várias pessoas ficavam nas plataformas, apenas observando, meio apáticas. Outras pessoas saíram do terminal e foram pegar ônibus em outros lugares. O número de pessoas diminuiu, embora não muito. Improvisou-se uma assembleia: A questão: vamos continuar aqui ou vamos sair? A segunda questão: qual a nossa reinvidicação? Como poderíamos manobrar para nos mantermos lá e agregarmos as pessoas que só estavam observando? No desenrolar da discussão, aumentava o número de policiais e os ônibus começaram a passar nas laterais do Terminal. Com isso, já eram duas horas de paralisação.

Decidiu-se por uma reinvidicação: a presença de um representante da Prefeitura para ouvir as reclamações dos manifestantes. Até lá, não sairíamos do Terminal. Circulavam rumores de paralisações em outros terminais da cidade e relatos de que havia polícia em todo lugar também. Comunicamos à polícia a nossa reinvidicação e o capitão riu da nossa cara: “A gente vai até ligar, mas não garantimos nada não… vocês podem ficar aí o quanto quiserem”. Tentamos pressionar a imprensa. Nos prometeram um ao vivo em duas horas. A situação estava ficando desesperada, quando um grupo resolveu criar instrumentos de percussão para tentar dinamizar a manifestação. Conseguiram levar latas de tinta e paus, mas não sem ter que lidar com um policial à paisana que tentou arrastar um dos percussionistas. Para sua sorte, a pessoa estava perto do terminal e gritou por socorro, ao que os outros usuários de transporte responderam com solidariedade rapidamente. A pessoa não foi presa. O batuque agregou e animou mais as pessoas. Com isso, já estavámos na terceira hora de paralisação. Ao mesmo tempo em que cada momento de conflito tornava mais coeso e solidário o grupo em luta, assustava outras pessoas e também afastava os mais “ordeiros”. Uma força-tarefa tentou explicar para os demais presentes no terminal os motivos da paralisação e algumas pessoas iam aderindo, aos poucos. Mas o número diminuía cada vez mais e fez-se outra assembleia, cujo resultado foi a saída do terminal em manifestação. Interrompíamos a paralisação na quarta hora de ocupação do terminal, às 11:30h. Pela primeira vez em muito tempo, uma paralisação espontânea de terminal se estendeu para além disso, saindo em passeata pela Avenida Anhanguera, uma das maiores da cidade.

Totalmente sem roteiro

Cerca de cem manifestantes saíram em passeata bloqueando o Eixo Anhanguera, que ficou desviando da sua rota normal, e iam aproveitando as plataformas de embarque para fazer jogral, explicando os motivos da manifestação, o processo até então da luta e pedindo a adesão de novas pessoas. A cada jogral, algumas pessoas iam aderindo e uma nova pessoa assumia a fala, exprimindo com essa mudança a grande heterogeneidade dos lutadores que estavam lá. Enquanto alguns enfatizavam pautas do transporte, outros tinham uma indignação mais difusa e contra corrupção, enquanto outros ainda viam aquilo como uma ponte para transformar “algo maior”. O caminho ia sendo discutido no caminho e deliberado mais ou menos confusamente.

Atravessamos uma distância de 2,5km sob um sol escaldante até o centro, no cruzamento da Avenida Goiás com a Anhanguera. Lá, tivemos que fazer outra assembleia para decidir se ficávamos paralisando o cruzamento ou não. Cerca de 8 viaturas iam se aproximando e nos cercando. Conseguimos improvisar uma vaquinha para comprar água e, refrescados, decidimos seguir em frente, rumo ao Terminal Praça A, em Campinas, agitando nas plataformas. A polícia ia nos acompanhando bem próximo, tirando sarro das palavras de ordem da manifestação e, curiosamente, prestou-se a analista política da luta, “aconselhando” constantemente, por meio do seu aparelho de som, o fim da manifestação por conta do número reduzido presente. Respondíamos com batuques, vaias e mais palavras de ordem. A polícia também assediava sexualmente as mulheres participando da luta, ao que respondíamos com mais vaia.

Evidentemente, a polícia não quis permitir às dezenas que restavam da longa caminhada de 6 kilometros a entrada no Terminal Praça A, que estava lotado. Temiam uma renovação da manifestação e “ânimos exaltados”. Os manifestantes tentaram negociar, mas a polícia era irredutível. Como última cartada, tentamos dar um olê circulando o terminal e dando meias-voltas, cantando “ciranda cirandinha”, procurando uma brecha com menos policiais para entrar no terminal e ver o que acontecia: ir embora ou renovar a luta. Tentamos isso algumas vezes, foi aumentando o número de policiais nos cercando. Daí resolvemos, afinal, negociar uma dispersão menos arriscada para os lutadores. Uma major prometeu que poderíamos entrar em alguma plataforma, mas não no terminal lotado. Com pouca força, tivemos que aceitar. Ao chegar na plataforma, tivemos que aguentar outra humilhação: só iam deixar sair 2 manifestantes de cada vez e só iam entrar os próximo depois do embarque de cada par. Evidente que isso era uma grande risco para os últimos que ficariam e também para os que saíam. Era a tentativa da polícia de quebrar a nossa solidariedade interna, que até então foi irredutível, apesar do cansaço e do medo de muitos. No final, tivemos que aceitar o acordo e arriscar a sorte.

A maioria, ao que parece, escapou ilesa. Mas a polícia não deixou de aproveitar o que pôde: uma adolescente foi agredida verbalmente, levou um soco e um empurrão… tudo isso por um oficial da Polícia Militar, em um momento em que ela acabou ficando sozinha com os policiais. Decidimos denunciar as agressões e continuar lutando para melhorar o transporte não só nessa paralisação e nessa manifestação. No que pode dar? Não sabemos. Pode dar em nada. Também pode dar em tudo.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

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