Por Passa Palavra
A morte do cinegrafista Santiago Idílio Andrade no Rio de Janeiro, na última semana, desencadeou um processo repressivo que indica algumas tendências mais profundas de uma estratégia montada pelas classes dominantes no Brasil para tentar controlar o fenômeno que vem sendo a grande preocupação desde junho de 2013: as manifestações de rua que enfrentam a disciplina capitalista normalizada e enfrentam também o controle exercido pelas instituições capitalistas sobre o comportamento dos lutadores na rua. O que se pretende discutir aqui é que, assim como os trabalhadores, os capitalistas também são capazes de fugir do roteiro e criar ativamente um novo terreno mais favorável aos seus interesses.
No ano passado, vimos como um movimento inicialmente puxado por frações de extrema-esquerda com uma pauta concreta e uma estratégia mais ou menos clara de luta conseguiu quebrar o enquadramento organizado pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e também o exercido pela oposição de caráter partidário. Ficou claro nessas manifestações o repúdio não apenas a um governo tal ou qual, mas a uma lógica de atuação característica desses grupos: a utilização da base para negociações com os gestores e, com esse objetivo, a estruturação dos movimentos de forma hierárquica em representantes e representados, dirigentes e dirigidos. O rompimento com essa lógica liberou uma energia que muitos de nós não suspeitávamos existir e grandes frações de trabalhadores foram às ruas sem estar inibidos pelo medo de apanhar ou de ser utilizados em algum acordo político. Vimos como, depois de conquistada a vitória da derrubada das tarifas do transporte coletivo, se conseguiu impor uma inversão do sentido do movimento por dentro. Essa inversão causou uma internalização da repressão por parte dos manifestantes, que se expressou na dicotomia manifestantes vs mascarados e no slogan “sem violência”. Também vimos como esses coxinhas acabaram saindo das manifestações, restando nos movimentos de rua, já menores, aquelas frações de extrema-esquerda originais e outras mais afins com os métodos de atuação e objetivos desses grupos.
Diante do verdadeiro terremoto causado em junho, vimos que a resposta do governo federal, no ano passado, foi propor uma série de medidas com fins de cooptação dos setores sob a ala esquerda, como descrito aqui, explorando os medos, a hesitação e a perplexidade diante do “povo que acordava”. Essa situação gerou uma disputa em que o significado da violência passou a ter um valor decisivo, e nessa disputa os setores partidários estavam incapazes de formular qualquer solução eficaz. E quem restou?
Entre o confronto com o Estado e a construção de novas relações sociais
Com a anulação súbita dos partidos políticos tradicionais e o esvaziamento dos coxinhas, a atuação dessas pequenas frações organizadas de extrema-esquerda presentes na fase inicial assumiu uma importância ideológica desproporcional ao seu número de participantes e mesmo à sua base social. Grosso modo, podemos delimitar duas tendências gerais no que não foi alvo de ruptura em junho:
1. Movimentos orientados por pautas concretas como uma maneira de construir novas relações sociais horizontais e solidárias no próprio processo de luta, o exemplo mais famoso sendo o Movimento Passe Livre, mas também a constituição de frentes comuns de luta entre vários grupos, que adquiriram uma dinâmica própria. Essas frentes comuns acabaram se focando na questão da democracia interna, no processo de luta autogerido, na negação explícita da lógica da representação e da apropriação política.
2. Movimentos orientados pelo confronto político com o Estado, em que as pautas serviriam como pretexto para esse confronto, para a angariação de militantes e o reforço político desses movimentos. Entrariam aqui tanto pequenos grupos leninistas ou maoistas, que ainda não tiveram força para se consolidar enquanto burocracia, como algumas tendências anarquistas. Nesses grupos, a ênfase fica na combatividade demonstrada diante das forças policiais e dos símbolos do capitalismo e do Estado, como os bancos e os prédios públicos.
Foi com esses grupos que a presidenta Dilma estava a dialogar quando afirmou que a resposta “a essas manifestações minoritárias” seria, basicamente, o aumento da repressão e da vigilância [1]. Estamos agora vendo os frutos dessa vigilância quando ela penetra no interior desses movimentos, na busca de explorar suas fragilidades, destruí-los ou enquadrá-los. Não é preciso ser nenhum gênio da espionagem para perceber que os movimentos indicados na tendência “combativa” já têm propensão a se considerar como um corpo político separado do resto da população, com interesses diversos e outra maneira de encarar as coisas. Também não é segredo para ninguém que muitos grupos encaram a repressão como um “momento pedagógico” de aprendizado do “real caráter do Estado”, como uma maneira de fazer com que a democracia “derrube a máscara” e se revele como o fascismo que todo sistema capitalista supostamente já é, o que significa que o sentido que eles dão à repressão é também diferente do restante da população, ele já vem pré-fabricado antes de qualquer situação concreta. Essa mentalidade favorece desde já um isolamento social e uma dificuldade maior na construção de uma identidade comum entre os vários tipos de lutadores. Essa tendência tende a reunir em torno de si uma boa parte da juventude precarizada das quebradas, que vê nas manifestações uma oportunidade para dar o troco à violência sofrida cotidianamente, mais do que realmente um momento de conquista de suas reivindicações. A tendência 1, por sua vez, acaba exigindo uma disposição maior dos lutadores participantes, uma vez que não tem nenhuma fórmula para repassar aos trabalhadores que não estão envolvidos ativamente em alguma luta. Essa tendência implica, inicialmente, em uma dificuldade da multiplicação da base social da luta, uma vez que não há um modelo pré-definido ou células organizativas nas quais os trabalhadores possam simplesmente se inserir.
Um cenário possível
A estratégia já estava indicada em junho de 2013: reforçar a contradição mascarado/vândalo vs manifestante como forma de isolar e anular os primeiros de uma maneira que reforce as tendências conservadoras e disciplinares dos últimos. Dessa maneira, os movimentos e fenômenos que despontam como alternativas práticas ao enquadramento capitalista poderiam sofrer essa inversão de significado e se tornarem reforçadores modernos de regras mais sofisticadas de controle.
É possível vislumbrar o seguinte cenário: a aprovação de algumas leis que facilitariam um estado de exceção dirigido contra os atos de sabotagem ativa difusa e contra os grupos que tendem ao confronto direto e violento com o Estado. Alguns exemplos seriam a Lei Antiterrorismo e a emenda proposta por José Mariano Beltrame de agravamento do crime de “desordem pública”. Além do aspecto legal, já existe uma estrutura de vigilância e violência policial e empresarial que pode ser dirigida mesmo ilegalmente contra esses lutadores, agora já demonizados pela mídia capitalista como vândalos e assassinos. Esse estado de exceção dirigido poderia, então, empurrar esses grupos para um isolamento ainda maior na clandestinidade, onde com maior facilidade eles poderiam ser presos ou até exterminados, caso necessário.
O modelo aqui seguido foi posto a primeira vez em prática pelo governo britânico na luta contra o IRA (Irish Republican Army, Exército Republicano Irlandês) no Ulster, a Irlanda do Norte. O governo britânico recorreu ao SAS (Special Air Service, Serviço Aéreo Especial, uma designação anódina) para usar na luta contra o IRA as mesmas armas que o IRA usava: estrutura clandestina, divisão em células, violência extralegal. Enquanto as instituições da democracia representativa continuavam a funcionar com toda a normalidade para a esmagadora maioria da população, o SAS conseguia confinar o IRA aos confrontos subterrâneos e, portanto, isolá-lo politicamente. A mesma estratégia foi empreendida na Alemanha na perseguição à Rote Armee Fraction (Fração do Exército Vermelho), mais conhecida como grupo Baader-Meinhof [2]: a legitimação de medidas repressivas dirigidas a partir de um perigo amplamente legitimado por meio da imprensa e do isolamento social e político consolidado do grupo. O “Estado fascista” que a RAF, por exemplo, buscava combater e que acreditava estar escondido sob uma fachada democrática, finalmente se revelou, mas apenas para os guerrilheiros já isolados, sem que houvesse a necessidade de uma alteração fundamental na legalidade estabelecida, na liberdade de imprensa ou de voto. Os mecanismos de participação e cooptação da democracia representativa continuaram funcionando regularmente e, na verdade, é justamente aí que eles entraram como suporte da estratégia de isolamento dos chamados “extremistas”.
Para executar uma estratégia daquele tipo o governo brasileiro encontra-se hoje numa situação muitíssimo melhor do que aquela em que se encontrava o governo britânico quando recorreu ao SAS ou o governo alemão durante a campanha contra o grupo Baader-Meinhof, ou do que se encontrava o governo francês durante a repressão subsequente a Maio-Junho de 1968 ou o governo italiano na luta contra o ativismo de extrema-esquerda na década de 1970. O leque de apoio do governo de Brasília vai desde os dirigentes das principais companhias transnacionais de sede brasileira e dos donos dos principais bancos, incluindo o maior banco da América Latina, até às burocracias dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), passando pelas duas principais centrais sindicais, que têm assento no governo. Não existe em todo o mundo um governo com uma tão ampla base de sustentação. Enganam-se muito — e enganam-se tragicamente — aqueles que pensam que o governo de Brasília é débil ou está isolado. Esse governo dispõe de condições ótimas para desencadear contra os militantes anticapitalistas a estratégia subterrânea de cerco, isolamento e liquidação política.
Pois além de empurrar para o isolamento e a clandestinidade os grupos que buscam o confronto direto com o Estado, essa estratégia de repressão com certeza afetaria os grupos que buscam construir novas relações sociais a partir da luta e das pautas concretas. Em primeiro lugar, atingiria diretamente os militantes que ficam navegando entre as duas tendências. Em segundo lugar, teria como objetivo criar uma situação de medo e paranóia que poderia impôr uma participação mais restrita no grupo, uma diminuição na circulação de informações, uma redução da democracia interna, a desconfiança relativamente aos novos militantes, o que facilitaria um desencadeamento de um processo de burocratização. Em terceiro lugar, reforçaria as tendências já existentes dentro dos movimentos autônomos que se pautam por acentuar o comportamento ordeiro e disciplinar, o que só poderia gerar efeitos funestos: ou a criação de gestores qualificados da luta de rua, capazes de controlar essa nova multidão que se constituiu nos últimos anos, ou a ruptura entre esses movimentos e a multidão, deixando a segunda sem referência e a primeira sem base social ativa… o que significa que o binômio repressão-cooptação se aplicaria da maneira mais eficaz possível.
Lembremos que a repressão cumpre seu objetivo não necessariamente ao exterminar a “Força Oponente”, mas, em última instância, ao conseguir que a lógica do controle seja internalizada, isto é, ao garantir de volta a sujeição que foi perdida.
Mas calma, que ainda é cedo!
Ora, não é porque se desenha um possível cenário fruto da repressão que ele necessariamente vai se concretizar. Mas não nos enganemos: o momento que estamos vivendo é crucial para a definição desse cenário futuro. As respostas e principalmente as omissões vão custar muito mais caro do que se imagina. Uma possível contra-estratégia a ser construída poderia seguir dois eixos:
1. Quebrar o isolamento social e político dos que estão mais empenhados na sabotagem ativa e gerar um questionamento mais profundo das táticas utilizadas sistematicamente pelos grupos para atrair militantes. Será possível canalizar a energia destrutiva, que já revelou ser bastante grande, na criação de relações sociais de luta e solidariedade mais sólidas nos lugares de trabalho, estudo e convivência? Para que isso ocorra, será necessário um grande esforço na superação dos sectarismos organizativos e também a ruptura com o hábito do isolamento entre os “que pensam como nós”, isto é, uma ruptura com a cultura capitalista de isolamento mútuo entre os trabalhadores rumo a uma cultura de classe. Isso quer dizer, evidentemente, que é necessário debater mais e mais profundamente com os camaradas que não necessariamente aderem às táticas de enfrentamento toda vez. Esta é, possivelmente, uma das maiores possibilidades de enfrentamento da repressão, apesar de não ser muito espetacular.
2. O fortalecimento da autonomia e da solidariedade prática com os que estão sofrendo mais imediatamente a repressão como um fator importante de fortalecimento da cultura de classe. O maior problema aqui é a possibilidade de construir uma estratégia de luta que não esteja imbricada na repressão interna mas na discussão pela base, democrática. O rechaço sistemático de qualquer colaboração com a polícia, com os sistemas de vigilância e, fundamentalmente, a recusa da colaboração com os governos. Esse é um momento em que, antes de tudo, não se deve recuar no que possibilitou a vitória do ano passado: a quebra das inibições internas da classe trabalhadora e o rechaço da lógica da negociação e da conciliação.
Além desses dois eixos, ainda se torna clara a necessidade dos grupos discutirem procedimentos de segurança e de autopreservação que não coloquem em risco a participação coletiva ativa, nem a difusão de informações internas, nem a participação mais ampliada nas lutas.
As imagens que ilustram o artigo são de Otto Dix (1891-1969).
Notas
[1] http://blogs.estadao.com.br/link/brasil-espiona-manifestantes-para-tentar-evitar-danos-a-copa/
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Fra%C3%A7%C3%A3o_do_Ex%C3%A9rcito_Vermelho
Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal
dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.
Obrigado pelo artigo, camaradas. Ele chega em uma hora decisiva e será de grande valia na busca de soluções para a sinuca em que nos encontramos.
Acompanhando as movimentações das forças políticas que estão nas ruas desde junho, ao menos aqui no Rio de Janeiro, acredito ser possível que o segundo cenário se concretize (mesmo que em parte) e que consigamos romper o isolamento social e político e fortalecer a cultura de classe.
Excelente balanço. O PassaPalavra tem produzido as análises mais lúcidas.
Não tenho o otimismo do Eduardo Tomazine, embora seja inegável que a luta esteja ainda em bons patamares por aqui no RJ. O último ato tinha uma moçada das quebradas, gente pobre de short e havaianas, mas pelo q conversei e vi suspeito que a intenção dessa moçada era apenas a chance de “descontar” na PM algum ódio acumulado. Nada de mais profundo e politizado. A maioria das pessoas do Ato era gente de Partido ou alguma outra organização (a maioria estudantes, professores), e ainda diria que uns 20% era de trabalhadores animados com a luta ou que passavam e se somaram à passeata. O problema mais sério, talvez, esteja aí: foi uma passeata, escoltada repressivamente por cordões policiais. No contexto de criminalização, foi uma puta vitória pra gente, mas tem sido “passeata” já tem um tempo (embora passeata com confronto ao fim). Não houve na concentração qualquer tipo de conversa que tentasse aglutinar minimamente os grupos, discutir as questões. Tudo era feito em duplas ou no máximo roda de 6 pessoas. Mesmo entre partidos que caminharam lado a lado havia nítida cisão, como se a união de toda aquela gente fosse por um “inimigo em comum, que torna meu inimigo, amigo”, e não pelo que é: “mesma classe com mesmos interesses históricos e políticos de classe”. Claro que não esperava todos de mãos dadas, mas me parece que o patamar de união mínimo está num nível muito baixo, tudo muito no “implícito”. Chegam e encontram-se grupos de amigos, que fazem uma roda e não conversam com mais ninguém. As exceções só confirmam a regra. Segue-se o Ato assim, uma soma de micronúcleos não-comunicantes, que só se tornam um nos gritos de guerra. Antes do Ato as organizações conversam dentro de si, mas já passou da hora dessa conversa se expandir pra Assembléias maiores e unificadas, como chegamos a fazer ano passado. Os BBs tem uma importância fundamental nos Atos, não só pela tática que nos defende, mas pela composição social deles – gente da quebrada que interessa-nos que estejam cada vez mais politizados – e nessa onda de criminalização as demais organizações estão todas tirando o corpo fora, como medo da ilegalidade. A preocupação com eleições tbm é outra face da tragédia da forma-partido. Chegou a hora de confiarem mais na força das ruas, poxa. Não é recuando e compondo apenas entre si que as organizações da classe vão se defender melhor. Pelo contrário. Enfim, queria muito ter o otimismo do Eduardo Tomazine, e até acho que o último ato já mostra que junho deixou um legado de cultura de luta, pois o contexto é regressivo e mesmo assim um ótimo número de gente animada e sem medo saiu às ruas. Entretanto, pra avançarmos pra além dessa coragem falta organização e meios de fazer avançar a organização. Senão daqui a pouco as passeatas não terão ninguém de preto e clamando contra o capital e sim bandeiras com algum número estampado, como se não bastasse os ensinamentos da social-democracia alemã, do eurocomunismo, do petismo… (sobre “chegar ao poder” pela “via eleitoral”).
Pablo,
Sua proposta se parece muito com o que vem sendo defendido no Rio pelo Fórum de Lutas e um problema concreto que se coloca aqui é o autismo político deste espaço. O Fórum se pretende um espaço de articulação de toda e qualquer luta, seguindo o centralismos democrático e por isso reiteradamente atacando toda e qualquer iniciativa que não esteja gravitando em sua órbita. No ano passado o fórum chegou a ter 3.000 pessoas em uma de suas plenárias, mas por conta do burocratismo inconsequente das organizações que o hegemonizam (plenárias absurdas, com disputas sobre coordenação de pautas e mesa típicas do movimento estudantil) a iniciativa rachou e deixou uma impressão muito negativa nos setores não afinados com estas práticas. Como consequência deste processo é que se formaram as várias assembleias populares, como a Assembleia do Largo (e suas congêneres), a FIP e pode-se dizer mesmo que o próprio MPL do Rio. Por isso me parece seguro afirmar que estas e outras organizações, que de certa forma se estruturaram em oposição ao fórum, é que deram esse gás todo que podemos ver de junho até aqui. O Fórum gosta disto, levar bandeirinhas e fazer algo similar a um desfile cívico. No entanto mesmo considerando isto é de se destacar, como você já fez, a importância deste ato na semana passada.
Mas por exemplo, se o MPL tivesse se fundido ao fórum desde o começo desta jornada de lutas contra o aumento é muito provável que nem mesmo tivesse acontecido o catracasso do dia 28 de fevereiro (ato que rebocou o fórum ao catracasso do dia 30) que colaboraram decisivamente para o congelamento das tarifas de metrô, trens e barcas.
Concordo que é indispensável uma ação coordenada das várias organizações para barrarem os ataques vindos à direita, no entanto esta colaboração dificilmente se dará em termos de criação de órgãos comuns, ainda mais quando o fórum e outras organizações insistem em se diluírem em uma miríade de pautas, enquanto parece que a estratégia mais adequada deveria ser a de manter o foco em barrar o aumento (para conquistar ainda mais setores populares para a causa) ao mesmo tempo em que vão se defendendo dos ataques vindos do poder. O amplo apelo popular e a urgência da pauta teriam a capacidade de fazer com que as diferenças fossem superadas em prol de uma unidade prática contra um contexto que ataca, mesmo que de forma desigual, a todos os que estão nas ruas. No entanto o Império contra ataca e as perspectivas para o próximo ato já não são tão lisonjeiras: http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/brasil/2014/02/17/governo-do-rio-autoriza-reajuste-de-passagem-das-barcas-para-r-480.htm
Caro Pablo, desde o último ato aconteceu uma série de coisas, como plenárias abertas convocadas por alguns dos principais grupos políticos que estão nas ruas, principalmente aqueles que foram descritos aqui como as “frentes comuns de luta entre vários grupos, que adquiriram uma dinâmica própria”, mas também entre um dos partidos diretamente atacados pela mídia corporativa. Essas plenárias abertas e bem divulgadas pelas redes sociais estavam bastante cheias, com novos integrantes e com uma militância mais mobilizada do que nunca e realizando um trabalho de base intenso, influenciando, inclusive, os rumos de diversas lutas classistas, como greves e paralisações, resistências a remoções, criação de novos coletivos em espaços da classe trabalhadora e por aí vai. Percebi que o discurso em ambos os espaços é de fortalecimento da solidariedade entre os setores e indivíduos perseguidos, de intensificação do trabalho de mobilização e propaganda e de desenvolvimento de táticas e expedientes de autopreservação.
O que me deixou relativamente esperançoso é que estas movimentações estão de acordo com várias das propostas descritas no “segundo cenário” deste artigo. Cabe compreender, ademais, o significado da pesquisa de opinião divulgada recentemente pelo Datafolha (feita nos dias 13 e 14 de fevereiro – isto é, no calor da morte de Santiago), que mostra que 54% da população no Rio ainda apoia as manifestações, contra 40% que se opõe. Ora, se há um bom tempo as manifestações são compostas basicamente pelos grupos descritos aqui e os partidos de esquerda de oposição ao governo (que não foram completamente anulados), isso significa que, apesar de TUDO o que o Estado e a mídia corporativa têm feito para nos isolar, tal isolamento ainda não se deu e é perfeitamente possível ampliar o apoio popular a partir de agora, com alguns dos passos que vejo que estão sendo dados. Amanhã há atos contra o aumento das passagens em Niterói e São Gonçalo (importantes cidades da metrópole, somando quase 2 milhões de habitantes), e na quinta há uma nova manifestação no Rio. Não creio que serão muito grandes, mas acho que poderão abrir o caminho para outros mais massificados.
O carnaval já vem aí – e carnaval é povo na rua satirizando a ordem. No desse ano podemos esperar intensa propaganda em favor dos protestos. Logo em seguida, já começam os primeiros atos contra a Copa, que se somarão aos do aumento da passagem. Enfim, é verdade que dos capitalistas podemos esperar muitas manobras, mas a atual conjuntura tem suas brechas importantes que os deixam em uma situação desconfortável: a visibilidade global da Copa e as eleições.
Se a história estivesse condenada a repetir-se, não havia história e o mundo ficaria sempre na mesma. Por outro lado, todavia, as experiências passadas valem de alguma coisa, e ao ler a frase final do último comentário do Eduardo Tomazine — «a atual conjuntura tem suas brechas importantes que os deixam em uma situação desconfortável: a visibilidade global da Copa e as eleições» — de imediato me ocorreram à memória as Olimpíadas de 1968 no México e aquela repressão que ficou conhecida como massacre de Tlatelolco. Quem não saiba do que se trata pode buscar no Google com esse nome. Meio milhão de pessoas na rua, «No queremos olimpiadas, queremos revolución!», vários milhares de presos e algumas centenas de mortos. Isto quando o mundo tinha os olhos postos no país onde dez dias depois iriam começar os Jogos Olímpicos. O Brasil de 2014 não é o México de 1968, o mundo também não, mas à cautela não se fiem muito na «visibilidade global».
Caro Rodrigo, concordo com teu comentário, mas mantenho (titubeante) a ressalva sobre a importância de um espaço unificado…
De fato acho que a “criação de órgãos comuns” ainda é um horizonte distante, mas ainda vejo uma Plenária como aquela dos 3 mil como um espaço importantíssimo que faz muita falta. Com todos os problemas que teve, aquele talvez tenha sido um dos momentos mais altos das lutas de junho. Melhor um espaço daquele, com seus problemas e contradições internas inevitáveis (que ao menos tinham, em tese, um lugar pra se expandir e serem enfrentadas conscientemente), do que essa manutenção de múltiplos espaços que na maioria dos casos não dialogam pra fora de si e, por isso, sequer formulam os problemas adequadamente, de um ponto de vista mais amplo. O fato de que às vezes tal forma pluricentral resultar em atos mais radicais não me parece ser um argumento incriticável, pq ao menos em tese tais atos poderiam ter ocorrido e ainda com mais força e articulação. A ordem impõe pautas regressivas pra gente: em vez do passe livre, mais uma vez a luta contra um aumento. Ficamos centrados na tarifa, concordo que seja o mais sensato, porém a radicalização da pauta, as formas do enfrentamento, tudo isso tem que ter um espaço unificado de debate onde possam ao menos ser formuladas algumas questões em disputa. Até porque essa articulação significa mais material humano e, por isso, mais força. O que parece é que os diversos grupos tem medo da disputa por hegemonia e preferem ficar cada um no seu canto seguro, de perguntas e respostas pré-formuladas e pré-respondidas. Isso às vezes têm seus prós, mas minha opinião é de que tem mais debilidades do que força. O espaço unificado onde seja possível o embate direto de diferentes organizações da esquerda me parece ser positivo tbm por conta da nova militância… não dá pra subestimar a força política (tbm simbólica) que um espaço como aquela plenária têm pra esse pessoal desorganizado e sem pretensões de se organizar nos órgãos disponíveis. O ponto negativo é que um espaço assim facilita o trabalho dos agentes da ordem, como de fato ocorreu na sequência daquela Plenária, quando a PM superprotegeu o trajeto tirado na Plenária e não seguido até o fim pelos Partidos (salvo MEPR e coletivo Vamos à luta, do Psol), Sindicatos e MS.
Em todo caso não disse nada de novo e nem eu mesmo estou seguro das minhas opiniões. Estou mais conversando com vocês, que debatendo. Esperemos pra ver as respostas que a classe vai formular nos próximos meses… Abraços camaradas.
Caro Pablo,
Acho que todos nós não temos certeza absoluta do que falamos, no entanto temos algumas convicções que precisam ser debatidas. Me parece que os atos mais importantes não podem ser classificados superficialmente como radicais (porque radical aqui pode significar uma ampla gama de coisas e isto impede a compreensão do processo real). Penso que devem sim ser entendidos como atos que tinham a intenção clara e bem definida de ao mesmo tempo dialogar com os sofrimentos cotidianos das pessoas comuns, mobilizá-las para a prática da ação direta e desobediência civil por meio do não pagamento da tarifa (portanto, subversão da ordem e disciplina desta sociedade), com isso pressionando o governo a ceder. Isto assusta os governantes, pois quando as mobilizações extrapolam os limites dos espaço de discussão dos militantes e se torna generalizado pela sociedade há a possibilidade real de construção de uma nova sociabilidade com uma potência difícil de controlar. Tanto é verdade que deu certo logo no início. (embora agora frente a desmobilização causada pelo ataque que foi o caso do cinegrafista morto o Estado tenha recuperado o seu espaço e já tenha autorizado novo aumento nas barcas e trens, mesmo depois de anteriormente ter anunciado o congelamento destas tarifas para este ano).
Para fazer polêmica ainda com um certo sentido da radicalização, lembro ainda que nestes atos não houve um único embate físico com quem quer que seja, o que obviamente não fez destes atos menos radicais (no sentido de ir à raiz do problema). Obviamente não estou aqui defendendo que isto não deva acontecer (porque são outras situações que impõem a necessidade do embate), mas quero somente dizer que objetivos políticos diferentes colocam necessidades organizativas diferentes. O fórum é definitivamente é um espaço bastante satisfeito com o que faz e só se moveu para outro campo porque foi empurrado pelo contexto (o ineditismo e a ousadia de alguns). Eu entendo suas colocações, tanto sobre a potência que seria um número muito maior de pessoas envolvidas na organização destas ações, bem como o papel pedagógico que isto teria na cabeça de vários novos militantes. No entanto percebo que uma das vias de conseguir este objetivo passa pela crítica das formas de organização dos espaços (feita muitas vezes de forma prática pela eficiência mostrada por outras formas de se organizar) e o consequente o embate com forças bastante consolidadas (inclusive dentro do aparelho estatal), tornando a estratégia de embate direto bastante mais complicada, mas concordo que não menos necessário. O que fico pensando é se na situação atual a melhor forma de realizar isso seria a de se diluir no interior do fórum ou continuar tentando empurrá-lo por fora, cobrando deles compromisso com a luta.
Caro Rodrigo,
outra vez concordo com sua formulação dos problemas.
Sobre o sentido de “radical”, usei no sentido comparativo, de vários níveis (o catracaço seria mais radical que a passeata, a greve mais radical que o catracaço, etc.); de fato o uso do termo se torna tão mais adequado quanto mais as ações vão à raiz do problema, ou seja, o controle da produção pela classe burguesa.
Sobre o tema do Forum tal como vc formulou (que lembra o embate entre Mandel e Moreno sobre entrismo), veja, eu argumentei a favor da existência de um espaço tal como aquela plenária, o que não significa que defendi a entrada (e muito menos diluição) no Forum. Se o Forum atrapalha uma Plenária mais democrática e de base e desburocratizada, façamos-la por fora, sendo o Forum apenas mais um convidado. A Plenária é importante pra politizar os iniciantes e nivelar pra cima os debates centrais e questões ideológicas organizacionais etc em disputa, tal como a panfletagem e a experiência prática nas ruas. Toda essa conversa trate de uma contradição viva, por isso é forte seu argumento sobre o embate entre os grupos estar se formulando e resolvendo na própria experiência prática das formas organizativas, e tbm acho que a pressão por fora do Forum via multiplas organizações seja por hora a melhor opção, no sentido de que nos defende das tendências burocratizantes.
creio que a crítica definitiva ao texto se encontra no próprio texto: “Com a anulação súbita dos partidos políticos tradicionais e o esvaziamento dos coxinhas, a atuação dessas pequenas frações organizadas de extrema-esquerda presentes na fase inicial assumiu uma importância ideológica desproporcional ao seu número de participantes e mesmo à sua base social”.