O “hiperprecariado” existe há muito tempo, mas seria absurdo pretender ver o conjunto dos pobres em qualquer momento da história e em qualquer área geográfica brasileira como “trabalhadores hiperprecários”. Por Marcelo Lopes de Souza.
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Do “lumpemproletariado” ao “hiperprecariado”
Retome-se um ponto básico, para ilustrá-lo um pouco melhor e facilitar a construção do argumento: o que seria, no fim das contas, o “lumpemproletariado”, para Marx e Engels? Ele corresponderia, no frigir dos ovos, a um grupo limitado ou “residual” de “mendigos, vagabundos, criminosos e prostitutas”, que é como Marx resumiu sua composição em O 18 brumário de Luís Bonaparte (MARX, 1978:119), e como ele também o sintetizaria no contexto da famosa discussão sobre a “lei geral da acumulação capitalista” em O capital: “vagabundos, criminosos, prostitutas” (no original alemão, “Vagabunden, Verbrecher[n], Prostituierten”). [6] Ao examinar o Lumpenproletariat, Marx considerou-o como pertencendo à chamada “superpopulação relativa”, mas teve o cuidado, ao levar em conta o que chamou de “o mais profundo sedimento da superpopulação relativa”, aquele que “vegeta no inferno da indigência, do pauperismo”, de incluir no “exército industrial de reserva” somente alguns de seus integrantes (os órfãos, os aptos para o trabalho), deixando de lado o “rebotalho do proletariado” (MARX, 1980:746-7). Esse “rebotalho do proletariado” ou, como também se exprimiram Marx e Engels com escancarado desprezo no Manifesto Comunista (e, dois anos antes, en passant, já n’A ideologia alemã), seria como que uma “putrefação passiva das camadas inferiores da velha sociedade”, isto é, do campesinato desenraizado (MARX e ENGELS, 1982:116).
N’O 18 Brumário, Marx chega ao ponto de oferecer quase que uma lista exaustiva dos tipos humanos que comporiam o “lumpemproletariado”:
Sob o pretexto de criar uma sociedade de beneficência, organizou-se o lumpemproletariado de Paris em seções secretas, cada uma delas dirigida por um agente bonapartista, ficando um general bonapartista na chefia de todas elas. Junto a roués arruinados, com duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos — em uma palavra, toda essa massa informe, difusa e errante que os franceses chamam la bohème: com esses elementos, tão afins a ele, formou Bonaparte a soleira da Sociedade 10 de dezembro. (MARX, 1978:70-71)
O que tornaria o “lumpemproletariado” desprezível, no entanto, não seria, em Marx, evidentemente, um mero julgamento de teor moralista, mas sim uma condenação política. Para ele, o “lumpemproletariado”, caso desempenhasse algum papel (socio)político, como foi o caso durante a guerra civil na França, seria unicamente um papel reacionário, como base de apoio e marionete nas mãos das classes dominantes. Completava-se, assim, o quadro que faria do “lumpemprolatreriado” uma “classe perigosa”, porque não confiável, embebida em valores de decadência moral, indisciplinada e potencialmente vendida e traiçoeira. Um tremendo contraste, ao menos em potencial, com o Proletariat em sentido estrito.
Tenho sustentado, há vários anos (SOUZA, 2008 e 2009), que essa visão merece, especialmente com os olhos de hoje, e considerando a realidade sociopolítica de um país como o Brasil e outros países “(semi)periféricos”, ser bastante relativizada. Não digo apenas superada em seu sabor moralista, mas efetivamente ultrapassada no que se refere ao determinismo e às simplificações políticas ali embutidos. Para começar, todavia, sugiro que, por inadequado (tanto o sentido pejorativo quanto a impropriedade da ideia de um “proletariado em farrapos”, pois em geral não é de modo algum com farrapos que se cobrem os agentes sociais de que aqui trato), se abandone o termo “lumpemproletariado”. Tenho proposto, para substituí-lo, na falta de um termo melhor e mais elegante, a expressão “hiperprecariado”. Cabe, então, justificá-la, dando prosseguimento ao esboço conceitual já encetado em outros trabalhos (sobretudo em SOUZA, 2008:131, nota 38; 2009:28, 46).
O debate em torno dos conceitos de “precarização”, “precariedade” e “precariado” vem se desenvolvendo na Europa desde os anos 1980, sendo tais conceitos intensamente discutidos na França (précarisation, précarité, précariat) e na Alemanha (Prekarisierung, Prekarität, Prekariat). Há mesmo autores europeus que, em típica manifestação de ignorância eurocêntrica, chegaram a sugerir que tal debate diria respeito somente à Europa e à América do Norte (p. ex. BRESSON, 2007:73). Sem pretender entrar nas filigranas e controvérsias teórico-conceituais específicas, salienta-se, de toda sorte, que essa discussão de alguma maneira diz respeito, sim, pelo menos aos países de tipo “semiperiférico” (aos quais corresponderia, na imperfeita mas expressiva terminologia que Bresser Pereira lançou na década de 1970, um “subdesenvolvimento industrializado”), ainda mais em uma era de globalização em que transformações no mundo do trabalho e no papel do Estado possuem um alcance mundial (sobre isso já havia discorrido ANTUNES, 1995:147). É óbvio que, nos termos da discussão europeia, que se refere aos efeitos no mercado de trabalho (e, secundariamente, nas condições de moradia) da erosão do welfare state, tais conceitos muito pouco se aplicam a uma realidade como a brasileira, em que jamais existiu um Estado de bem-estar. Por isso, em meio a um esforço para redefinir os termos do debate em função das condições particulares da “semiperiferia”, propus as expressões mutuamente complementares “hiperprecarização” e “hiperprecariado”, decorrentes da constatação de que as condições de trabalho e vida da maioria dos trabalhadores em um país “semiperiférico” sempre foram precárias. Ao mesmo tempo, essas expressões permitem um distanciamento relativamente à expressão “lumpemproletariado”, típica do vocabulário marxista, devido à sua evidente conotação pejorativa e, além disso, ao seu anacronismo, pois na esmagadora maioria dos casos falar em “farrapos” ou “andrajos” não é apenas ofensivo, mas sim rematada tolice.
Os conceitos de “hiperprecarização” e “hiperprecariado” designam, portanto, coisas diferentes daquelas cobertas pelo debate europeu. A “hiperprecarização” se refere a um processo que, na esteira de fenômenos como “ajustes estruturais”, desindustrialização e transformações no modo de regulação e no regime de acumulação (reestruturação produtiva, “acumulação flexível”, terceirização, desregulamentação parcial do Direito do Trabalho), tudo isso nos marcos da globalização e da hegemonia das políticas econômicas neoliberais (elementos que conectam o “centro” e a “[semi]periferia”, ainda que as formas e intensidades evidentemente difiram), atira maciçamente trabalhadores pobres do setor formal no mundo geralmente muito pior da informalidade. Aquilo que já era e sempre foi precário, em decorrência das menos que sofríveis condições de remuneração e segurança no trabalho e conforto, torna-se, assim, precaríssimo, em razão do parcialmente maior desamparo trabalhista e previdenciário, da maior instabilidade laboral e da maior imprevisibilidade do mercado de trabalho. O fato de o modesto padrão de consumo nem sempre se deteriorar, graças às facilidades (de políticas públicas compensatórias à expansão do crédito) para a aquisição de bens de consumo, como vem ocorrendo no Brasil de Lula e Dilma Rousseff, complica mas não nega o quadro geral. Na verdade, o consumo de utensílios e bugigangas eletro-eletrônicos e alguma melhoria em matéria de infraestrutura técnica (abastecimento de água, de energia elétrica…) e de saneamento básico têm convivido grotescamente com uma degradação e uma mercantilização da infraestrutura social e dos serviços em áreas essenciais como saúde e educação, assim como com elevados patamares de endividamento e inadimplência de indivíduos e famílias, insegurança pública e outras mazelas. Admirável mundo novo…
O “hiperprecariado” constitui um fenômeno histórica e espacialmente localizável: abrange, fundamentalmente, o heterogêneo universo dos trabalhadores informais urbanos e todos aqueles que sobrevivem em circunstâncias de grande vulnerabilidade e mesmo perigo, morando em espaços (extremamente) desconfortáveis e muitas vezes insalubres ou improvisados e exercendo ocupações estigmatizadas. O “hiperprecariado” existe há muito tempo, mas seria absurdo pretender ver o conjunto dos pobres, urbanos ou rurais, em qualquer momento da história e em qualquer área geográfica brasileira (tomando o Brasil como exemplo, mais uma vez), como “trabalhadores hiperprecários”. Usar uma tal expressão para referir-nos à pequena produção agropastoril de subsistência, a quilombolas, a faxinalenses, a caiçaras, aos moradores das “vilas operárias” do começo do século XX (que foram os primeiros operários industriais, quase sem direitos trabalhistas e superexplorados), para citar somente alguns, equivaleria a construir uma inútil categoria-valise, na qual tudo cabe. O “hiperprecariado” das últimas décadas é heterogêneo, sim, mas há uma coerência histórica por trás disso. Nas décadas de 1980 e 1990, ele expandiu-se e, principalmente, tornou-se sociopoliticamente mais visível, especialmente no que concerne à sua parcela ligada a atividades ilegais e fortemente criminalizadas, como o tráfico de drogas de varejo. Recentemente, as políticas públicas compensatórias, a conjuntural expansão do emprego formal e alguns outros fatores, que juntos fazem a alegria dos ideólogos eufóricos com o que apelidaram de “nova classe média”, podem ter atenuado um pouco e temporariamente o aumento ainda maior da ancestral precariedade no mundo do trabalho urbano brasileiro, mas não reverteu fenômenos como o enraizamento e o vigor do “subsistema varejo” do capitalismo criminal-informal, que utiliza como “bucha de canhão” preferencial as populações dos espaços segregados das grandes cidades e metrópoles — as que menos ganham e as que mais se expõem, em um contexto em que lucro e risco são inversamente proporcionais. [7]
As imagens que ilustram o artigo são, respectivamente, de cima para baixo, de Gustave Doré, Toulouse-Lautrec e Cândido Portinari.
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Notas
[6] Para a edição brasileira, consulte-se MARX (1980). Para a edição alemã, recorri a http://www.mlwerke.de/me/me23/me23_640.htm#Kap_23_1 (on-line em 02/04/2014).
[7] Ver, sobre isso, SOUZA (2008).
Referências
ANTUNES, Ricardo (1995): Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2ª ed.
BRESSON, Maryse (2007): Sociologie de la précarité. Paris: Armand Colin.
CARVALHO, José Murilo de (2001): Cidadania no Brasil – O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MARX, Karl (1978 [1852]): O 18 brumário de Luís Bonaparte. In: O 18 brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 4ª ed.
________ (1980 [1867]): O capital [Livro 1, Volume 2]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (1982a [1848]): Manifesto do Partido Comunista. In: Obras escolhidas. Moscou e Lisboa: Edições Progresso e edições “Avante!”.
SOUZA, Marcelo Lopes de (2008): Fobópole. O medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
________ (2009): “Social movements in the face of criminal power: The socio-political fragmentation of space and ‘micro-level warlords’ as challenges for emancipative urban struggles”. City 13(1), p. 26-52.
Caros leitores que postaram comentários à primeira parte do artigo: estive sem acessar a Internet por alguns dias, por isso não respondi nenhum comentário postado depois do dia 16 de abril. Contudo, acabei de oferecer algumas respostas; para facilitar a comparação entre questões e respostas, respondi junto à primeira parte.
Abraços e obrigado!