Ao lado do desemprego aberto em geral elevado, a “hiperprecariedade” representou o engrossamento do número da massa de trabalhadores informais e subempregados dos países “semiperiféricos”. Por Marcelo Lopes de Souza.
Leia aqui a 2ª parte desse artigo.
Do controle com “integração” ao controle com “exclusão seletiva”: Sobre os distintos graus de (des)ilusão no “centro” e na “(semi)periferia”
“Integrar” e “incluir”: eis duas palavras-chave do tradicional discurso ideológico capitalista relativamente aos pobres, enquanto trabalhadores, moradores e consumidores.
Na qualidade de trabalhadores, vendem sua força de trabalho por um preço comumente aviltado, especialmente em países “periféricos” e “semiperiféricos”, isso quando não se acham em meio à precariedade ainda maior do setor informal (enorme parcela deles) ou, simplesmente, vegetam no desemprego crônico e até na mendicância. A promessa de “integrar” e “incluir”, aqui, significa, historicamente: integrar ao setor formal e à rede de garantias trabalhistas e previdenciárias.
Na qualidade de moradores, amiúde residem em áreas segregadas e sem infraestrutura adequada ou suficiente, em habitações inadequadas ou insalubres e expostos a riscos ambientais. “Integrar” e “incluir”, nesse caso, quer dizer: reduzir as disparidades infraestruturais intraurbanas e as estigmatizações derivadas da pobreza e da ilegalidade fundiária associadas a certos espaços.
Por fim, na qualidade de consumidores, consomem via de regra mal, e muitas vezes só conseguem fazê-lo servindo-se do setor informal (ou do “circuito inferior” da economia urbana, recordando a terminologia de SANTOS [1979]), de modo que integrar” e “incluir” significariam, portanto, acesso a uma plena satisfação das necessidades básicas (materiais ou não) passíveis de serem satisfeitas mediante o mercado e por meio de uma elevação progressiva da renda real.
O que nos mostra a realidade deste começo de século XXI? Longe de querer ou, principalmente, poder “incluir” e “integrar”, o sistema, na esteira da globalização e do processo eufemisticamente denominado de “reestruturação produtiva”, expele uma grande parcela da população do mercado de trabalho formal, encurta e enfraquece a rede de garantias previdenciárias e direitos trabalhistas, faz aumentar o poder de sedução do consumismo (sem fazer, todavia, que a demanda real se torne amplamente solvável, e com isso fabricando e renovando frustrações) e, para lidar com as “disfuncionalidades” reais ou aparentes que daí decorrem, adensa as malhas de repressão e controle social (a brutalidade policial, o complexo carcerário que serve de desumano depósito basicamente para gente pobre julgada e condenada por um Judiciário elitista). Não defendo, de modo algum, a tese de que se está diante de uma “exclusão” generalizada, termo sintomaticamente popularizado no Brasil dos anos 1990 (em grande medida como substituto de outro igualmente inapropriado, “marginalidade”); afinal, os trabalhadores, mesmo os informais, nunca deixaram de estar, de algum modo, “incluídos” no sistema, ainda que, obviamente, de modo subalterno (e mesmo quando no seu domínio criminal-informal, que sempre se acha conectado de várias maneiras ao seu lado formal). Pode-se dizer, contudo, que, ao verem a vulnerabilidade e a insegurança aumentar em diversos setores de sua vida, é como se tivessem ocorrido e viessem ocorrendo fenômenos de exclusão seletiva ou parcial, aqui e ali mitigados pelas migalhas do fisiologismo neopopulista.
No “Primeiro Mundo”, nos países chamados de “desenvolvidos”, berço do moderníssimo “capitalismo flexível”, assiste-se a um desemprego em massa, à precarização das relações de trabalho e à erosão do welfare state – e, no plano (social-)psicológico, ao que SENNETT (1999) denominou uma “corrosão do caráter”. O diagnóstico de MARCUSE (1982) acerca da serventia da tecnologia e da prosperidade para a “integração” dos indivíduos e, por tabela, para o controle a dominação (uma “dominação com conforto”, produtora de indivíduos dóceis e conformistas) não se tornou “obsoleto” na esteira da precarização – mas o seu alcance vem sendo restringido. E estamos diante de um processo que atinge, acima de tudo, os jovens, como mostrou BERNARDO (2000:78 e segs.).
Nos países da “(semi)periferia”, desde sempre familiarizados com altas taxas de subemprego, com frequência cresceu igualmente, nas últimas décadas, o desemprego aberto. O desde sempre precário “mundo do trabalho” precarizou-se ainda mais, e as caricaturas de welfare state tornam-se ainda mais grotescas, como que caricaturas de si mesmas. Nesses países, processos vinculados à globalização e à “reestruturação produtiva”, notadamente o desemprego estrutural (decorrente da desindustrialização) e o desemprego tecnológico (resultado costumeiro da modernização tecnológica sob o capitalismo), foram frequentemente agravados pela imposição de “ajustes estruturais” pelo Fundo Monetário Internacional na esteira da crise da dívida externa. Em alguns desses países tem sido possível constatar, também, uma desindustrialização, que acomete a Argentina já nos anos 1970 e que alcança o Brasil nos anos 1990. Em países como esses, a precarização adquire, previsivelmente, contornos mais dramáticos que nos países centrais. Com efeito, muitas vezes a precarização configura, na “semiperiferia”, aquilo que venho denominando “hiperprecarização”. Se a precarização em geral, iniciada nos países centrais e que atinge a “semiperiferia” nos anos 1990, caracteriza-se pela substituição de trabalhadores assalariados full time por mão-de-obra autônoma “terceirizada” ou contratada em tempo parcial (o que, para assalariados de classe média, significa diversas perdas: diminuição da estabilidade e da segurança, muitas vezes também perda de rendimento e aumento da carga de trabalho e do estresse), a “hiperprecarização” atinge, especificamente, trabalhadores pobres (que quase sempre laboraram em condições relativamente ou bastante precárias em matéria de remuneração, de segurança do trabalho etc.), os quais perdem o emprego no setor formal e são rebaixados à condição de trabalhadores sem carteira profissional, trabalhando como “autônomos” na informalidade, vivendo de biscates etc. Se antes esses trabalhadores pobres já pouco ou nada usufruíam de certos direitos civis e sociais, [8] com a informalidade laboral sua qualidade de vida se deteriora ainda mais – e, em casos extremos, eles resvalam para a indigência. Ao lado do desemprego aberto em geral elevado, a “hiperprecariedade” representou, para os que nela caíram, o engrossamento do número desde sempre elevado da massa de trabalhadores informais e subempregados dos países “semiperiféricos”.
Na Europa, a discussão em torno dos conceitos de “precarização”, “precariedade” e “precariado” vem-se desenvolvendo, como já apontei, desde a década de 80 do século passado. O debate tem se revelado intenso sobretudo na França e na Alemanha, países em que os termos (em francês, respectivamente, précarisation, précarité e précariat, e em alemão Prekarisierung, Prekarität e Prekariat) se popularizaram dentro e fora da academia. Há, como eu também já mencionei, autores europeus que, como Bresson, dando vazão a uma ignorância que lamentavelmente é tão comum, chegaram a sugerir que o debate em torno da “precariedade” e da “precarização” diria respeito somente ao seu próprio continente e à América do Norte. Mas, façamos de toda maneira a pergunta: não correriam os conceitos de “hiperprecarização” e “hiperprecariado” (este último designando o conjunto de pessoas vivendo na informalidade, exercendo ocupações muito precárias e subsistindo graças a subempregos e em condições de moradia ruins ou péssimas, e o primeiro referindo-se ao processo de perda do emprego formal, queda do poder aquisitivo etc.) realmente o risco de serem considerados excessivamente tributários de um debate surgido em uma realidade econômico-social muito diferente daquela de um país “semiperiférico”? Quais as razões para não tê-los na conta de “ideias fora do lugar”?
Uma tal objeção seria um pouco superficial e açodada até mesmo em relação a expressões como “precarização do mundo do trabalho” e “precarização das relações de trabalho”, que já encontraram acolhida no debate acadêmico brasileiro desde os anos 1990. Note-se que até mesmo simples dicionários de língua já refletem a disseminação do vocabulário da precarização econômica. Entre as acepções do adjetivo “precário”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontra-se a seguinte: “que tem pouca ou nenhuma estabilidade; incerto, contingente, inconsistente”; e o referido dicionário exemplifica esta acepção com a expressão “emprego precário”. É claro que um termo como “precarização” tem de ser utilizado com cuidado, uma vez que o contexto de seu emprego original é o da erosão de um welfare state – coisa que nunca existiu no Brasil, e nem mesmo, a rigor, na Argentina, país historicamente bem menos desigual do ângulo socioeconômico. Contudo, também para os próprios europeus, “precarização” e “precariedade” são termos envoltos em controvérsias e conceitos repletos de aspectos nebulosos, como mostra a própria BRESSON (2007:9-10, entre outras páginas).
Deveria ser evidente que essa discussão em torno da precarização, ainda mais em uma era de globalização, na qual as transformações das relações de trabalho e do papel do Estado na economia possuem um alcance mundial, importa também àqueles países que estão longe de serem economias agrárias “pré-modernas” e pré-industriais: os países “semiperiféricos”. É preciso, todavia, enfatizar certas coisas, a fim de evitar mal-entendidos. Os termos “hiperprecarização” e “hiperprecariado” decorrem da constatação de que as condições de trabalho e vida da maior parte dos trabalhadores em um país “semiperiférico” não se tornaram precárias apenas na esteira da crise do fordismo, tendo sido, isso sim, sempre precárias, em comparação com a situação da classe trabalhadora europeia relativamente bem remunerada e amparada da segunda metade do século XX (relativamente bem remunerada e amparada, não custa recordar, levando-se em conta, comparativamente, a própria situação desta classe no século XIX). “Hiperprecarização”, “hiperprecariedade” e “hiperprecariado” constituem uma tentativa de redefinir os termos do debate em função das condições específicas da “semiperiferia”, ao mesmo tempo em que permitem um distanciamento terminológico relativamente à pejorativa expressão “lumpemproletariado”, herdada do vocabulário clássico de Marx e Engels.
Como mostra RAMOS (2012:111), as taxas de pobreza diminuíram ligeiramente no Brasil entre 1995 e 2009, e especialmente a partir de 2004 (na realidade, tinham chegado a aumentar um pouco em fins da década de 1990), e também decresceram um pouco as taxas de desemprego e informalidade, ao longo do mesmo período (mas as taxas de desemprego tinham conhecido expressivo aumento entre 1996 e 2001). As taxas, porém eram e continuaram a ser elevadas: o desemprego oficial, que bateu em quase 20% entre 1999 e 2001, terminou o período perto de 10%, e a informalidade oscilou aproximadamente entre 50% e 60%. Se tomarmos apenas as áreas metropolitanas, a informalidade era, em 1992, de cerca de 40%, atingiu 46% ou mais entre fins dos anos 1990 e o início da década passada, e caiu para perto de 42% em 2009 (RAMOS, 2012:101). Números, evidentemente, típicos de uma economia “(semi)periférica”, e bem diferentes dos de uma economia “central”, a despeito dos fenômenos de deterioração no mercado de trabalho que, também na Europa e nos EUA, pode ser observada). Além disso, no Brasil a taxa de rotatividade no emprego passou, na década passada, de 45% para cerca de 54%, fenômeno que, como lembra Tatiana Tramontani Ramos, contribui para reduzir as indenizações trabalhistas e os depósitos do FGTS, pressionando para baixo os salários (RAMOS, 2012:111).
De qualquer modo, de maneira ainda muito mais clara no Brasil (e em países semelhantes) que na Europa ou mesmo nos EUA, “(hiper)precariedade” está longe de ser um problema restrito ao mundo do trabalho. As condições de moradia, quando comparamos tanto a qualidade da habitação e, sobretudo, o habitat, o entorno da moradia, entre as cidades brasileiras e as europeias (ou estadunidenses), mostram um brutal contraste. Por mais que as moradias em uma banlieue, as Sozialwohnungen (em alemão, “habitação social”), os guetos etc. possam ser ou parecer problemáticos, em geral, e com todos os fenômenos de piora decorrentes das transformações das últimas décadas, continuam a ser substancialmente menos insalubres e inadequados que os “slums” de meados do século XIX retratados por Friedrich Engels em seu livro de juventude Die Lage der arbeitenden Klasse in England (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), ou aqueles da virada do século XIX para o século XX, descritos pelo geógrafo e anarquista Elisée Reclus em sua obra-prima L’Homme et la Terre (O Homem e a Terra). Ainda que as condições gerais em matéria de saneamento básico tenham, muitas vezes, melhorado um pouco nas favelas e loteamentos irregulares das periferias, o quadro geral continua deplorável e vexatório para um país cujos governos sucessivos têm acalentado sonhos de grandeza e disseminado bravatas desenvolvimentistas. A “hiperprecariedade”, assim, não é apenas laboral ou na esfera da produção. Seria um equívoco, no entanto, postular alguma coisa como um paralelismo perfeito entre a evolução da grande precariedade no mundo do trabalho e seu equivalente na chamada “esfera da reprodução da força de trabalho”, como as condições de habitação. Até certo ponto, há não só paralelismo, mas também evidentes convergências e articulações, como um efeito de reforço mútuo (morar na favela dificulta a obtenção do emprego formal, e a informalidade, a baixa remuneração, a baixa escolaridade, a baixa “qualificação” dificultam que se possa morar em um espaço outro que não um espaço segregado, estigmatizado e com infraestrutura técnica e social deficiente ou parcialmente inexistente). Porém, os diversos âmbitos possuem dinâmicas próprias. Por um lado, a passagem à informalidade, o desemprego, a queda do poder aquisitivo etc. podem levar e levaram muitos trabalhadores (e uma parcela da classe média) a passar também à informalidade (loteamentos irregulares, favelas) no que concerne à moradia; por outro lado, cair na informalidade (para aqueles, obviamente, que chegaram a sair dela um dia), muitas vezes, não implica sair da favela ou do loteamento periférico, pela simples razão de que, mesmo como trabalhadores com carteira assinada e uma certa estabilidade, era ali que já moravam e onde nasceram, e onde já moravam seus pais. A informalidade e, para manter a expressão, a “hiperprecariedade” habitacional, componente decisivo do déficit habitacional brasileiro (domicílios localizados em áreas de risco e em contextos insalubres, materiais inadequados, baixíssimo conforto térmico, superadensamento e “coabitação”, situação urbanística irregular, posse sem segurança jurídica etc.), tem sido um fato tão constante do cenário sócio-espacial brasileiro quanto a “hiperprecariedade” no mundo do trabalho urbano; e, longe de diminuir, se torna cada vez mais complexa, agravada pelos problemas ligados à mobilidade urbana extremamente deficiente (transporte público ruim e caro), por exemplo.
Vale a pena registrar que alguma coisa parecida com uma “precarização de classe média” ocorre também na “semiperiferia”. Não esqueçamos que o contexto e as dinâmicas econômicas globais (globalização financeira, hegemonia de políticas econômicas neoliberais ou influenciadas pelo neoliberalismo, reconversão econômica orientada pela “acumulação flexível”) “costuram” o “centro” e a “(semi)periferia”. Seus efeitos não são privilégio exclusivo dos “países centrais”. Todavia, mais importante e mais dramático do que isso é o desemprego e o crescimento da informalidade e das estratégias ilegais de sobrevivência entre os pobres, como se pôde constatar nos anos 1980 e 1990 no Brasil. Nesse caso, apesar dos pontos de contato com processos que também ocorrem nos “países centrais”, o resultado tem sido, como venho sublinhando, muito mais que uma mera “precariedade” no sentido europeu. Na Europa, erosão do welfare state não significa o desaparecimento puro e simples do welfare state, coisa politicamente impossível de se fazer de uma hora para outra; mesmo os trabalhadores precarizados usualmente continuam desfrutando de uma situação bem melhor que a da maioria dos pobres da “semiperiferia”. Apesar da chamada “nova pobreza” (expressão já dos anos 1980 e 1990), do aumento da população de rua nas grandes cidades e coisas que tais, há ainda um fosso a separar a típica pobreza europeia da pobreza muito mais desamparada dos países “semiperiféricos”.
Apesar de, no Brasil (e também no México, e um pouco em contraste com a Argentina), favelização, trabalho informal, extrema vulnerabilidade etc. serem fenômenos nada recentes, os conceitos de “hiperprecarização” e “hiperprecariado” são úteis, por conseguinte, para chamar a atenção para as diferenças de magnitude entre “centro” e “periferia”, e também para ressaltar a deterioração das condições no mercado de trabalho na esteira da desindustrialização e da reconversão econômica (acompanhada de uma deterioração em outros aspectos da vida em geral, devido à retração ou omissão do Estado no que tange ao provimento de moradias e serviços sociais adequados), ao mesmo tempo em que se evita o termo “lumpemproletariado”. Portanto, longe de representar uma “ideia fora do lugar”, a “hiperprecarização” ajuda a estabelecer de modo adequado um diálogo com debates internacionais, preservando-se as especificidades de cada formação sócio-espacial. Cabe, aliás, lembrar que a maioria dos termos técnicos utilizados pelos cientistas sociais latino-americanos são oriundos de debates europeus, inclusive na esquerda (“movimentos sociais”, “classe trabalhadora”, “lumpemproletariado”, “consciência de classe”…), sem que muitas vezes se tenha tido uma preocupação em verificar possíveis inadequações dos termos empregados (nem mesmo daqueles controvertidos na própria Europa, como é o caso de “proletariado”). Ao contrário, “hiperprecarização” e “hiperprecariado”, mesmo representando um diálogo com outros ambientes de debate, constitui um esforço de pensar as especificidades da “(semi)periferia”. O fundamental é deixar claro que o “hiperprecariado” da “(semi)periferia” se insere em uma dinâmica econômica e em um contexto sócio-espacial bastante diferentes daqueles do “precariado” europeu, ainda que existam aspectos de ligação no âmbito da “lógica” do sistema mundial capitalista.
Interessantemente, já houve quem considerasse, até mesmo no interior do próprio debate europeu, a expressão “precarização” pouco rigorosa, pelo fato de que, sob o capitalismo, a posição do trabalhador é sempre “insegura”, “sem garantias” absolutas, em última análise (vide DIECKMANN, 2007:198-9). Isso não deixa de ser verdade. Mas seria tolice esquecer o papel de “integração”, estabilização e cooptação do Estado de bem-estar. Em comparação, portanto, pode-se, sim, falar de “precariedade” e “precarização” como processos historicamente um tanto particulares. Quanto à “hiperprecarização”, ela se refere a um processo específico da “(semi)periferia”, em que fenômenos como “ajustes estruturais”, transformações no modo de regulação e no regime de acumulação (reestruturação produtiva e “acumulação flexível”, terceirização, desregulamentação parcial da legislação trabalhista), desindustrialização e colapso do “Estado desenvolvimentista” trazem como corolário um aumento do desemprego tecnológico e da informalidade e uma deterioração ou estagnação de diversos aspectos das condições gerais de vida (o que não exclui, ressalve-se uma vez mais, uma evolução positiva no que concerne a certos “indicadores de bem-estar”, como o consumo de determinados bens de consumo duráveis e a difusão de algumas melhorias infra-estruturais). Formado pelo heterogêneo universo dos trabalhadores informais e todos aqueles que sobrevivem em circunstâncias de grande vulnerabilidade e mesmo perigo, morando em espaços extremamente desconfortáveis e muitas vezes insalubres ou improvisados e exercendo ocupações estigmatizadas, [9] uma parte do “hiperprecariado” brasileiro constitui-se de trabalhadores pobres expelidos do setor formal e lançados na informalidade, e uma grande parcela refere-se a jovens que já ingressaram no mercado de trabalho pela via da informalidade, sendo, aliás, frequentemente filhos e netos de trabalhadores informais. [10]
De toda maneira, pode-se ainda observar que, na globalização, um pouco daquela insegurança e daquela vulnerabilidade que em um país “semiperiférico” sempre foram comuns (e que em certos aspectos cresceram nos anos 1980 e especialmente 1990), passou a atingir também a Europa. Pode ser impreciso e apelativo, mas não é puro exagero retórico ou mera pirotecnia verbal quando um autor como o sociólogo alemão Ulrich Beck fala como falou, no apagar das luzes do século passado, em uma presença do “Terceiro Mundo” no “Primeiro” e nos riscos de uma “brasilianização do Ocidente” (BECK, 2000:1-9) e de uma “brasilianização da Europa” (BECK, 2000:92-109). Trata-se de uma deterioração das condições de vida e trabalho para bem aquém do nível dos chamados “Trinta Gloriosos” do segundo pós-guerra. A reflexão teórico-conceitual sobre a “(hiper)precarização”, assim, longe de representar qualquer importação intelectual indevida, ajuda a lidar analiticamente com os elos e as conexões em um mundo interconectado e em meio a ilusões que se esboroam, lá como cá.
As fotografias que ilustram o artigo são da série Trabalhadores de Sebastião Salgado.
Leia aqui a 4ª parte desse artigo
Notas
[8] Uma leitura recomendável sobre o assunto da fruição ou não de certos direitos, no âmbito de uma discussão sobre a “cidadania” (em sentido amplo) no Brasil, é o livro Cidadania no Brasil – O longo caminho, de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2001).
[9] Os principais parâmetros com base nos quais a “(hiper)precariedade” pode ser analisada são o nível de remuneração, as condições de trabalho (incluídas, aí, variáveis como a segurança do trabalho, a carga horária e o conforto), a saúde (física e mental) do trabalhador e o contrato de trabalho (ou a relação empregatícia), no caso de relações de assalariamento. A “hiperprecarização”, especificamente, poderia ser examinada por meio dos seguintes indicadores: deterioração do nível de remuneração, implicando uma passagem de uma situação de remuneração ruim para outra em que a remuneração é péssima (ou, em outras palavras, a passagem de um estado de pobreza apenas relativa para um estado de pobreza absoluta ou bem próximo a ela, e em alguns casos até mesmo de miséria); deterioração das condições de trabalho, no âmbito da qual uma segurança do trabalho já sofrível torna-se, eventualmente, ainda pior, um conforto medíocre cede lugar ao grande desconforto e até mesmo à insalubridade, e a carga de trabalho aumenta); deterioração da saúde física e mental do trabalhador, com o aparecimento de doenças por contaminação, psicossomáticas etc., além de psicopatologias diversas; por fim, deterioração do contrato de trabalho, com o aumento da insegurança por conta da condição de “autônomo” com baixo rendimento, de terceirização e outras formas de “flexibilização” da relação capital/trabalho. Obviamente, esses fatores negativos não precisam comparecer todos simultaneamente.
[10] Não necessariamente esses trabalhadores do setor informal – que foram excluídos do formal ou nunca estiveram dentro dele – ganham pior que os trabalhadores pobres do setor formal. Um bom exemplo são certos trabalhadores ilegais a serviço do tráfico de drogas de varejo – “soldados” e, principalmente, “gerentes”. No entanto, as condições de trabalho (risco de morte, esperança de vida média muito baixa etc.) mostram que, a despeito de certas compensações subjetivas (“prestígio” e poder em escala [micro]local), também aqui o trabalho na informalidade não deixa de ser precário – ou mesmo “hiperprecário”. Certos efeitos e características da “hiperprecariedade” é que dificultam acompanhar SINGER (2003:13-4, 29, 50) quando ele insiste em considerar o conjunto dos trabalhadores desempregados e subempregados como fazendo parte do “exército industrial de reserva”. Objetivamente, muitos dos trabalhadores “hiperprecarizados” e “hiperprecários” (seguramente não todos) se acham educacional, física e mentalmente (sem mencionar as situações de trabalho ilegal e criminoso que implicam grandes riscos e elevadíssima estigmatização) tão prejudicados e em desvantagem que não têm grandes chances reais de disputar um posto de trabalho no setor formal.
Referências
BECK, Ulrich (2000 [1999]): The Brave New World of Work. Cambridge: Polity Press).
BERNARDO, João (2000): Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores: ainda há lugar para os sindicatos? São Paulo: Boitempo.
BRESSON, Maryse (2007): Sociologie de la précarité. Paris: Armand Colin.
CARVALHO, José Murilo de (2001): Cidadania no Brasil – O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
DIECKMANN, Martin (2007): Die Widerruflichkeit der Normalität: Über Prekarität und Prekarisierungen. In: BOLOGNA, Sergio et al. (orgs.): Selbstorganisation… Transformationsprozesse von Arbeit und sozialem Widerstand im neoliberalen Kapitalismus. Berlim: Die Buchmacherei.
MARCUSE, Herbert 1982 [1964]): A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar.
RAMOS, Tatiana Tramontani (2012): As barricadas do hiperprecariado urbano: Das transformações no mundo do trabalho à dinâmica sócio-espacial do movimento dos sem-teto no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Geografia defendida e aprovada na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
SANTOS, Milton (1979 [1973]): O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
SENNETT, Richard (1999 [1998]): A corrosão do caráter. Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record.
SINGER, Paul (2003 [1998]): Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo: Contexto, 4ª ed.
Fantástico, fantástico o(s) artigo(s).Passei 32 anos como professor da UFRJ querendo dizer o que foi dito e, infelizmente, não tive competência para tal. Um trabalho de reflexão brilhante e uma escrita da qual fiquei com inveja.