Por Tarifa Zero Goiânia

O transporte coletivo tem ocupado um lugar central nas lutas sociais que vêm se desenvolvendo na Região Metropolitana de Goiânia (RMG) e nas atenções tanto da mídia quanto dos lutadores sociais, desde que se iniciaram as mobilizações do mês de Maio de 2013. Porém, do final de Janeiro até meados de Abril deste ano, uma situação completamente nova vem se estabelecendo: em diversos pontos da cidade, sobretudo em terminais de bairros da periferia; uma série de manifestações e paralisações espontâneas tem ocorrido. A novidade não é a ocorrência desses protestos espontâneos, que existem desde que há um sistema de transporte em Goiânia, mas a frequência da sua ocorrência e a sua continuidade em vários lugares. Essas experiências têm possibilitado um acúmulo de experiência de luta e suscitado debates entre os usuários, de tal maneira que vêm colocando os capitalistas públicos e privados de Goiânia na defensiva.

A primeira manifestação data do dia 16 de Janeiro e a última de que se tem conhecimento — até à finalização da redação deste texto — foi a que ocorreu no dia 15 de Abril, sendo que durante estes três meses foram mais de 30 manifestações espontâneas. Mas, quais são as reivindicações apresentadas nessas manifestações? Por quê essas reivindicações surgiram neste momento? Qual é a força que carregam tais manifestações?

A primeira pergunta é fácil de ser respondida, precisamente por ser difícil não reivindicar algo referente ao transporte coletivo na RMG, dadas as condições do transporte coletivo por estas bandas. A péssima qualidade é a regra geral tanto nos ônibus quanto nos terminais. A superlotação sufoca, de maneira insuportável, aqueles que precisam utilizar o serviço diariamente. Os enormes atrasos testam a paciência dos usuários, que precisam chegar ao trabalho, à escola, voltar para casa, ou que simplesmente não estão dispostos a perder algumas horas do seu dia esperando pelos ônibus. E se resolvermos tratar do preço da tarifa, então… Nesse sentido, não é de se admirar que a principal reivindicação seja a melhoria da qualidade do transporte coletivo, com um maior número de viagens e de ônibus, para que seja diminuído o tempo de espera em pontos e terminais e para que seja diminuída a superlotação.

Por isso, quando nos deparamos com notícias quase que diárias de manifestações espontâneas que tocam a questão do transporte coletivo, não vemos razão para qualquer surpresa. Os motivos para se protestar são inúmeros e legítimos. O que nos leva à segunda questão acima apresentada: por quê agora?

Para responder a essa pergunta é preciso primeiro refletir sobre uma questão: em que consiste a mercadoria transporte coletivo? Ao mesmo tempo em que é a utilização de um produto — o ônibus e o serviço prestado pelo motorista —, ela é também uma atividade: o deslocamento pela cidade. Ao se deslocarem pela cidade, os usuários do transporte coletivo se produzem enquanto usuários do transporte coletivo. O uso do transporte coletivo não se dá no abstrato, na mera relação monetária da tarifa, mas também na relação com a cidade e nas relações entre os seus usuários. O ônibus e os terminais não são apenas utilizados, eles tem que ser utilizados de uma determinada maneira. Existe uma disciplina que é necessária ao funcionamento do sistema: é necessário passar pela catraca pagando, é necessário se amontoar no ônibus, é necessário se amontoar no terminal, é proibido “vandalizar”, quebrando ônibus e terminais. Dentro de um ônibus lotado, por exemplo, se os seus usuários não se apertam cada vez mais para acomodar aqueles que entram no ônibus já lotado, eles acabam entravando a crescente acumulação monetária resultante do pagamento das tarifas, por “apenas ficarem parados”. É necessário que os usuários mobilizem a si mesmos para que o sistema funcione e gere os lucros esperados, para assegurar o seu “funcionamento normal” — a sua normalidade operacional. É por essa necessidade de disciplina, e não pela “prevenção contra roubos e atos de violência”, que se explicam os incontáveis instrumentos repressivos: os seguranças truculentos, as operações “Boa Viagem” da Polícia Militar (PM), os estímulos à delação entre os usuários e os sistemas de vigilância instalados em terminais e ônibus. Essa imposição de uma determinada maneira de uso não se aplica apenas à lotação mas também à política tarifária, à política de integração entre outras.

Ora, não é de hoje nem desde maio de 2013 que o transporte coletivo de Goiânia é insustentável. É insustentável não no sentido utilizado pelos empresários, alegando prejuízos nunca comprovados. É insustentável para os seus próprios usuários. Quem utiliza o transporte coletivo atualmente não sente tanta diferença na qualidade, quando comparada à de anos atrás (por mais que as empresas de transporte coletivo tentem sempre passar a impressão de que a qualidade melhorou). Utilizar o transporte coletivo na Rede Metropolitana de Goiânia é, no geral, algo extremamente desgastante. Utilizar uma linha que seja mais vazia, cujos ônibus passem logo quando você chega ao ponto, é uma questão de sorte. Ou quanto a linha vazia é uma questão de renda, caso você possa pagar R$3,50 para andar nos City Bus (micro-ônibus mais confortáveis, com poltronas acochoadas, ar condicionado etc.), os quais atendem poucas regiões da cidade.

Uma das razões para a explosão das manifestações espontâneas está relacionada à piora na qualidade do serviço, desde o congelamento do preço da tarifa no valor de R$2,70 em junho de 2013, depois de várias manifestações convocadas por movimentos populares em Porto Alegre, Goiânia, Natal e Aracaju, as quais assumiram uma dimensão nacional ao chegarem no eixo Rio-São Paulo. Com os seus lucros ameaçados, as empresas de transporte coletivo deram início a uma série de cortes de gastos: pagamentos de motoristas foram atrasados (Cf., por exemplo, aqui); manutenções de veículos foram suspensas; a quantidade de viagens foi diminuída em várias linhas. Até lock-outs (greves patronais) foram realizadas, sem que as empresas fossem penalizadas.

Um elemento desse processo foram as manifestações que tomaram as ruas de Goiânia em 2013, nas quais os lutadores convocados pela Frente de Luta Go conseguiram paralisar o centro de Goiânia, em alguns dias, por várias horas. Ao levantar a bandeira contra o aumento da tarifa e pela melhoria da qualidade do transporte coletivo na RMG, a Frente de Luta Go fez com que estas pautas não deixassem mais de ser discutidas nos meios de comunicação. A ruptura com a disciplina tradicional das manifestações de rua acabou deflagrando o processo mais abrangente de revoltas violentas nos terminais, além de disseminar inúmeros debates sobre o assunto entre os usuários e por toda população.

O debate não se limitou aos jornais e aos gabinetes governamentais ou empresariais. Ele tomou as ruas e os terminais. E se converteu num exercício de crítica prática à situação vigente. Com a conquista do congelamento da tarifa em 2013, do programa Ganha Tempo (programa de integração que permitia a utilização de até 3 viagens pagando uma única tarifa num período de até duas horas e trinta minutos, implementado em Junho de 2013 e suspendido em Janeiro de 2014) e da promessa do Passe Livre Estudantil (até agora não implementado), todas estas conquistas resultantes da pressão popular, os usuários passaram a concebê-la e a experimentá-la — a pressão popular — como algo viável e que dá resultados, e começaram eles próprios a fazer uso do mesmo tipo de pressão, exigindo melhorias para o serviço — a quebra da disciplina em um dos campos do sistema “infectou” os demais. Trata-se de uma disputa, de certa maneira, “pedagógica”: valeu a pena ou não lutar contra o aumento? As empresas, ao precarizarem o transporte, estão tentando ensinar aos usuários que não, que não vale a pena, que o melhor seria ficarem quietos e deixarem a resolução dos problemas do transporte coletivo nas mãos dos gestores. Os usuários, por outro lado, tentam repetir a experiência da lição já aprendida na luta para confirmar, de certa forma, a sua verdade. Percebemos aqui então como que a viabilidade da solução popular para o transporte coletivo é não uma questão técnica ou acadêmica mas uma questão relacionada às luta sociais e à correlação de forças entre as classes sociais em luta. As contas dos usuários e as dos empresários, de quantos ônibus estão disponíveis para circularem pela cidade, não batem: vejamos então que soluções para esse tipo de divergência estão sendo colocadas nas lutas concretas pela cidade.

É interessante perceber uma evolução da luta dos usuários nos terminais, tanto no que se refere às suas demandas quanto no que se refere ao modo como eles estão se organizando. O que nos leva a tentar responder à terceira pergunta que foi apresentada no início do texto: qual é a força que carregam tais manifestações?

A primeira manifestação espontânea com a paralisação de um terminal de que temos notícia ocorreu no dia 16 de Janeiro de 2014 no Terminal Novo Mundo. O motivo foi o atraso de mais duas horas de uma determinada linha. Segundo um serralheiro que participou da manifestação, “tem dia que se chega [ao terminal] cinco horas e só vai sair sete horas, oito horas da noite” (Cf. aqui). A resposta dada aos usuários do terminal foi o envio da cavalaria da Policia Militar, que dispersou a manifestação com a sua costumeira violência. O relato de uma auxiliar de serviços gerais expressou bem a situação: “A gente estava fazendo uma manifestação pacífica, um policial apontou a arma para a gente, mas a gente não é bandido. Pegaram uns cavalos e foram para cima da gente, bateram, judiaram da população”. A legitimidade da manifestação foi dada por um motorista que trabalha no terminal: “A gente fica com medo, às vezes, de ser agredido e a gente sofre também e sabe que a população está sofrendo. Realmente, os ônibus estão poucos”.

Outras manifestações se seguiram: 20 de Janeiro, 16 ônibus depredados; 22 de Janeiro, paralisação do terminal Praça da Bíblia seguida de manifestação; 27 de Janeiro, revoltas no Terminal Padre Pelágio e Terminal Bandeiras; 6 de Fevereiro, primeiro protesto da Frente de Luta Go; 7 de Fevereiro, paralisação por duas horas no Jardim dos Ipês; 10 de Fevereiro, protesto na Vila Itatiaia; 18 de Fevereiro, novo protesto no Terminal da Bíblia; 20 Fevereiro, manifestação em Forteville; 22 de Fevereiro, manifestação no Terminal Cruzeiro do Sul, em Aparecida de Goiânia; 23 de Fevereiro, no Residencial Buena Vista 4, uma paralisação de 8 horas; 24 de Fevereiro, mais um protesto no Terminal Novo Mundo; 27 de Fevereiro, nova paralisação do Terminal Novo Mundo à noite, que acabou após um corte da luz pela administração do terminal; 9 de Março, paralisação no Terminal Garavelo por conta do atraso da linha 020; 10 de Março, manifestação no Terminal Bandeiras às 20:00 e relato de paralisação no Terminal Garavelo; 12 de Março; Manifestação no Cruzeiro do Sul, com 4 ônibus quebrados; 17 de Março, mais uma paralisação no Terminal Praça da Bíblia; 14 de Abril, após o atraso de algumas linhas no Terminal Padre Pelágio os usuários se revoltaram e três ônibus foram depredrados e houve a tentativa de incendiar um deles.

Na manifestação do terminal da Praça da Bíblia, em 22 de Janeiro, os manifestantes fecharam o terminal por cerca de quatro horas. Foram também recebidos pela polícia, mas desta vez a PM entrou em contato com os gestores do sistema (a RMTC, Rede Metropolitana de Transporte Coletivo, e a CMTC, Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo), que dialogaram com os manifestantes e prometeram melhorias paliativas. Como esse tipo de medida não chega nunca à raiz do problema, as manifestações continuaram. As manifestações espontâneas no Padre Pelágio, não raras, costumam ter um caráter de maior combatividade do que nos demais locais. Por ser em uma região que concentra grande quantidade de ônibus e ainda uma região bem periférica, os atrasos costumam ser extremos, chegando a 2 ou 3 horas, o que leva a população, já massacrada pelo cotidiano do trabalho e estudo, ao limite, fazendo com que devolva tal violência da qual é vítima cotidianamente pelas empresas e ao mesmo tempo estabeleça uma fiscalização direta: já que a CMTC, que é atrelada às empresas, não cumpre seu trabalho,a população está cumprindo, ônibus que atrasa será multado.

Como o problema não se restringe aos usuários, os motoristas também lutam contra a exploração e a pressão que sofrem. Alguns chegam a tomar medidas individuais, como o abandono dos ônibus no meio do trajeto. A lotação do ônibus corresponde a uma intensificação do trabalho dos motoristas (em Goiânia não há cobradores), que se traduz em stress crescente e no exacerbamento da sua função de garantia da disciplina, para além do mecanismo econômico mais simples: quanto mais usuários por viagem, mais lucro. Em diversas ocasiões os motoristas simpatizam com as manifestações, param os ônibus, permitem que os usuários entrem sem pagar ou então cobram uma tarifa mais barata e a embolsam eles próprios. Por outro lado, outras vezes os motoristas avançam com os ônibus para cima dos manifestantes para tentar assegurar a continuidade do trajeto e, assim, o cumprimento da jornada de trabalho. Ao mesmo tempo em que há momentos em que os motoristas exercem esse papel repressivo, há momentos também em que o desgaste físico e psicológico torna-se impossível de suportar, o que gera situações mais ambíguas. Um exemplo é o de quando um motorista abandonou a direção de um ônibus e um dos usuários assumiu a sua direção, terminando o trajeto e levando os demais usuários a seus destinos. Sem esperar por uma solução institucional, os usuários se apropriaram momentaneamente de um dos veículos de uma das empresas da RMTC e autogeriram, mesmo que por alguns minutos, uma das linhas do sistema de transporte da RMG.

Demonstrando uma possível evolução da luta, os manifestantes que fecharam o terminal da Praça da Bíblia no dia 17 de Março apresentaram uma demanda mais concreta do que a de melhoria no transporte coletivo. Fazendo o cálculo de quantas pessoas estavam ali à espera da linha 582 — que liga o terminal à cidade de Bela Vista, na RMG —, eles exigiram o envio de 3 ônibus como contrapartida ao fim da manifestação. Como geralmente cabe à Polícia Militar o “diálogo” com manifestantes, foi a ela que coube repassar a reivindicação à RMTC, que encaminhou, por sua vez, 3 ônibus para o terminal. Pediram 3 ônibus e foram atendidos… Mas, e se tivessem pedido muitos mais?

A polícia, que antes apenas batia e “judiava”, agora continua batendo, mas serve também de correia de transmissão da reivindicação dos usuários. Estes, que antes pediam qualidade no transporte, passaram a pedir medidas mais concretas, o que demonstra um conhecimento do problema que os aflige cotidianamente e uma capacidade de apresentar soluções, além de formular estratégias para conseguir torná-las viáveis.

Seriam tais experiências um possível embrião de controle popular do transporte coletivo?

Os usuários deixam explícitas — em sua luta — algumas das fragilidades notáveis do sistema de transporte em Goiânia, fragilidades estas que sempre foram apresentadas como razões para investimentos públicos nas empresas de transporte. Trata-se, em primeiro lugar, de um sistema que integra toda a RMG e que é altamente centralizado, tanto do ponto de vista das decisões executivas quanto do ponto de vista do controle operacional. Em segundo lugar, trata-se de um sistema altamente dependente da super-exploração de um número reduzido de trabalhadores, especialmente dos motoristas, os quais vêm sendo obrigados, muitas vezes, a realizar várias viagens seguidas com um número muito reduzido de veículos. Finalmente, é um sistema altamente dependente da integração por meio dos terminais, que: facilita o controle do fluxo de veículos e de pessoas; concentra os usuários em um só lugar para depois redistribuí-los; e força também um certo tempo de espera — por vezes, muito grande. Além de poderem exercer um controle muito maior sobre o tempo de espera dos passageiros, por meio dos terminais, as empresas de transporte contam ainda com a vantagem de sempre poderem embolsar antecipadamente o valor da tarifa pago pelos usuários quando estes entram no terminal.

Daí, manifestações nos bairros, que são relativamente reduzidas em número de participantes, ao impedirem a passagem de dois ou três ônibus, acabam afetando um perímetro bem mais amplo. Entravam uma série de outras linhas, o que gera uma reação em cadeia tão vasta que a presença da polícia e/ou dos gestores do sistema de transporte para “dialogar” com os manifestantes se faz quase imediata. Levantando as reivindicações específicas de cada bairro, os manifestantes multiplicam a sua força devido à centralização do próprio sistema de transporte, apesar de não poderem estender as melhorias conquistadas para as demais regiões. É outro o caso das revoltas nos terminais — estas já afetam quase que a totalidade do sistema, utilizando em seu favor a concentração de pessoas, de ônibus e motoristas. Mais uma vez, um número relativamente reduzido de usuários, insatisfeitos com uma linha específica, pode desencadear um processo no qual usuários de várias regiões começam a lutar diretamente contra o poder empresarial. A reunião forçada de muitas pessoas num mesmo lugar acaba forçando-as também a desenvolver laços de solidariedade, e por aí vemos a quebra, na luta, das tradicionais barreiras existentes entre os bairros, as profissões e as diferentes gerações. Finalmente, nos terminais, os usuários adquirem uma melhor noção de conjunto do sistema e das suas fragilidades, trocando experiências, comparando-as e questionando, assim, todo o funcionamento do sistema de maneira mais efetiva.

Por outro lado, a evolução da luta se deu não apenas no conteúdo das reivindicações — e no conhecimento do sistema de transporte — mas também nas formas como os manifestantes passaram a se organizar para apresentá-las.

O caso da Praça da Bíblia pode servir de exemplo, pois ali se apresentaram elementos novos para as lutas nos terminais e nos bairros. Talvez pelo fato das manifestações ocorrerem com maior frequência, de ter um caráter mais politizado de manifestação e de haver a influência da aliança entre setores organizados de luta (como militantes da Frente de Luta GO) e setores de trabalhadores, cuja única organização comum é o transporte (os “espontâneos” de terminal) e as solidariedades aí formadas, houve uma evolução bastante significativa na forma de condução da luta.

A primeira manifestação, de 22 de Janeiro, e a segunda manifestação do terminal da bíblia, de 17 de Fevereiro, tiveram esse caráter de conjunção de tendências. No primeiro caso, houve a transformação de uma paralisação do terminal em passeata pelas ruas da cidade. O controle do terminal passou a ser exercido também em algumas das ruas da cidade, pelo fato dos manifestantes decidirem por fechá-las. Além disso, puderam apresentar a quem não estava no terminal os motivos da paralisação do terminal e da manifestação de rua, ampliando a divulgação da luta e indicando que percebiam que a extensão do problema ia além do seu terminal naquele horário. Predominou a informalidade das comissões e a manifestação foi realizada tendo em vista o fato do fracasso em impedir os ônibus de passarem em volta do terminal, o que enfraqueceria o prejuízo causado.

No segundo caso, 17 de Fevereiro, a experiência de assembleias e formação de comissões feitas na primeira paralisação intensificou a organização e permitiu momentos bastante interessantes para a luta. Houve a construção mais clara de comissões, uma distribuição de funções e uma experiência mais amadurecida de negociação para manutenção da paralisação. Essa experiência chegou ao ponto da revogação do “mandato” de figuras que assumiram a frente da negociação com a polícia nos momentos em que elas atuavam sem consultar o coletivo, apontando ainda tentativas mais avançadas de votar futuras propostas que viessem a aparecer, havendo também a indicação de outras figuras com um “mandato imperativo”. No caso, uma “liderança” estabelecida no processo foi desautorizada ao se reunir de modo isolado com a polícia e outro usuário presente foi “eleito” com a tarefa de fazer com que os gestores só se comunicassem com toda a coletividade. Essa prática de controle da delegação, mesmo informal, entrou dentro de uma estratégia consciente de recusa a qualquer negociação de que não fosse uma concessão imediata às demandas de toda a coletividade e de quaisquer reuniões com representantes da CMTC ou das empresas, porque “não resolvia nada”. Apesar dos “líderes” insistirem em se reunirem, já não havia qualquer força por trás deles. Quem se dispunha a negociar alguma reunião era imediatamente desautorizado pelos demais manifestantes. Isso se ilustra em um momento em que um gestor falou um pouco mais baixo se direcionando a um dos usuários — essa restrição de informação gerou uma revolta imediata e forçou esse usuário a reivindicar que o gestor só se comunicasse por meio do jogral e com todo mundo ao mesmo tempo, sob pena de também ter seu “mandato” revogado.

Essas experiências indicam que existe um aprofundamento qualitativo da disposição de luta dos usuários de transporte e um aprendizado da futilidade das instâncias “participativas” e “representativas”. Existe uma demanda por participação direta e por transparência radical das informações relativas à luta que dá esperanças da possibilidade de uma radicalização efetiva, para além da quebra dos ônibus como instrumento de pressão, mas também na constituição de mecanismos de fiscalização, controle e pressão popular. Por outro lado, ainda há uma dificuldade na formulação de demandas específicas, e as demandas mais amplas – ou genéricas – acabam fazendo com que as manifestações se desgastem e sejam derrotadas pela repressão, após a desmobilização pelo cansaço. Então, se por um lado as manifestações de terminais têm um alcance radical e uma forma de organização também radical, as manifestações de bairro — que parece serem articuladas por associações de bairro e mesmo informalmente por figuras do bairro — indicam uma maior capacidade de conquista de melhorias imediatas ao terem clareza na formulação das reivindicações. O desafio é ver como seria possível conjugar essas tendências e formular reivindicações que conseguissem vitórias concretas no terminal, tendo em vista a participação heterogênea e alta radicalidade de ação necessária para a manutenção desse tipo de ação, o que muitas vezes inviabiliza uma deliberação formal feita na hora em algum tipo de assembleia.

Esse aprendizado vai ser fundamental nesse novo momento da luta, em que a articulação com o recém criado Conselho Municipal de Transportes em conjunto com a repressão organizada parecem ser os caminhos a ser trilhados pelos empresários para imporem o aumento da tarifa, sua demanda por subsídio e a continuidade da normalidade operacional — a mesma que massacra os usuários diariamente.

De fato, não são apenas os usuários que estão se mobilizando. As autoridades que deveriam gerir o sistema passaram a apresentar algumas propostas. A diferença é que estas se mobilizam em seus gabinetes. Uma das propostas foi decidida pela reunião da Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo (CDTC), de 24 de Fevereiro de 2014, de criar um Terminal de Controle Operacional a ser administrado pela Secretaria de Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos (Sicam) e pela CMTC. O objetivo do terminal a ser implantado em 90 dias é realizar um controle “em tempo real” do cumprimento das planilhas de horários das viagens no sistema de transporte coletivo.

Uma medida mais de que necessária, e fácil de se implementar, já que todo o sistema é informatizado. Segundo as próprias empresas, existe em Goiânia “a primeira central de controle de transporte coletivo no Brasil, a CCO da RMTC, [que] visualiza, controla e orienta a operação em tempo real, desde 2009”. Se é uma central que existe desde 2009, por que somente em 2014 a CMTC se dispõe a fiscalizar algo que existe em “tempo real” desde 2009?

Uma fala do vice-presidente do sindicato das empresas (Setransp), Décio Caetano, pode nos esclarecer sobre isso. Quando foi apresentado o possível “desequilíbrio econômico-financeiro” das empresas em Agosto de 2013, e os empresários apontaram a necessidade de um subsídio, Décio Caetano afirmou que as empresas estavam dispostas a passar por fiscalizações mais rigorosas, caso o governo decidisse pelo subsídio. Na reunião da CDTC acima referida, de 24 de Janeiro, também foi debatida a criação de um Fundo de Transporte para subsidiar as gratuidades (idosos, deficientes e estudantes), o que mostra a sintonia entre autoridades estatais e empresários. Os empresários aceitam perder o controle que eles têm sobre o sistema sem fiscalização, em troca de subsídios, com fiscalização mais rigorosa. Para além da desfaçatez do empresário Décio Caetano, o que se tem como proposta de fiscalização não é garantia de nada, já que uma fiscalização mais rigorosa em relação a uma fiscalização inexistente é de pouca valia para a melhoria do transporte coletivo na capital goiana. A tentativa de legitimar a criação de um subsídio que mantenha o lucro empresarial passa também pela cooptação de órgãos e entidades que compõem o Conselho Municipal de Transporte e Mobilidade.

Se a crise é nossa — se somos nós – a solução também deve ser nossa!

A tradição oral dos oprimidos pelo sistema do transporte tem uma noção muito clara de que a exceção, a suposta crise da superlotação e dos atrasos, é na verdade a regra geral do sistema. É a normalidade que finalmente está começando a ser quebrada pela indisciplina generalizada que toma a força da ação coletiva de manifestação e paralisação. É na ação direta imposta pelos usuários do transporte que novas relações entre os mesmos estão sendo construídas, que a fiscalização direta e a multa estão sendo implementadas. Nessas ações vemos, ainda que de forma bem incipiente, a possibilidade de autogestão do transporte pelos próprios usuários. Fica para nós o aprendizado e o desafio de levarmos tais relações baseadas na coletividade, solidariedade e radicalidade para outros espaços da luta, para que, juntos, avancemos na construção de uma outra realidade do transporte, em que ele seja gerido pelas pessoas que o usam e trabalham nele e para que não seja mais reduzido a uma mercadoria.

“Chegou no limite? Sim, chegou no limite” – João Balestra, secretário estadual de Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos, presidente da Câmara Deliberativa de Transporte Coletivo (CDTC), pouco antes da reunião da câmara, comentando uma manifestação que acontecia ao vivo no Jd. Itaipu, dia 24 de Fevereiro

“Agora, onde houver atraso e superlotação, haverá paralisação” – gritou o jogral da coletividade que se formou para parar o Terminal da Bíblia, uma semana antes, pouco antes da polícia intervir e retornar a normalidade.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

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