Por que assusta tanto um povo que decide pegar em armas? A problemática das autodefesas comunitárias no México e suas ressonâncias no Brasil. Por S.

“La policía te está extorsionando pero ellos viven de lo que tu estas pagando
y si te tratan como un delincuente, no es tu culpa dale gracias al regente
Hay que arrancar el problema de raíz y cambiar el gobierno denuestro país.
A la gente que está en la burocracia, a esa gente que le gustanlas migajas.
Yo por eso me quejo y me quejo porque aquí es donde vivo y yo ya no soy pendejo,
que no watchas los puestos del gobierno hay personas que se están enriqueciendo.
Gente que vive en la pobreza y nadie hace nada porque a nadie le interesa
La gente de arriba te detesta y hay más gente que quiere que caigan sus cabezas.”
Dame el poder – Molotov

“La policía no será la maldición de quienes no puedan comprarla.”
Eduardo Galeano

membros-de-grupos-de-autodefesaDo entendimento de que a sociedade é tanto mais “pacificada” por seu aparato repressor quanto mais desigual for parte a hipótese desse texto, para analisar a problemática das defesas comunitárias, partindo da situação em curso atualmente no México, mas não se limitando à mesma.

As ideias de policiamento comunitário, autodefesa cidadã e proteção das comunidades indígenas são antigas e existem em alguns locais do mundo, em maior ou menor grau, em experiências distintas nos últimos anos. A investida mexicana de autodefesas e policiamento comunitário ganhou visibilidade externa, sobretudo a partir do ano de 2013, a despeito de sua existência remontar a um período muito anterior, no começo do século XX, com seus primeiros relatos a partir de 1912, referentes à formação de milícias cidadãs e grupos de autodefesa para protegerem a si mesmos e à cidade, as guardias municipales, chegando ao número de 2.000 [1].

As autodefesas partem de uma percepção coletiva: a segurança é um negócio (assim como a insegurança gera medo e é também facilmente mercantilizável), dentro de um modelo neoliberal que, cada vez mais, privatiza os serviços públicos em favor de interesses corporativos, abarcando quase todas as possibilidades de segurança e autoproteção de cidadãos comuns. Se antes os sujeitos entregavam ao Estado sua segurança, agora é crescente a sensação de que a entregam a companhias, que nem sabem como funcionam, quiçá, a que princípios respondem. Dessa forma, o crescente de insegurança só aumenta. Afinal, se nem consegue fingir que protege, o que faz o Estado, em seu aparato de (in)segurança? Reprime fortemente e, às vezes, mata, é a resposta para uma parte significativa da população.

Não somente a urbe se encontra cada vez mais militarizada e privatizada como espaço, mas seus cidadãos são cada vez mais considerados como alvos de ameaças cotidianas, manifestos no uso indiscriminado da metáfora da guerra. Da guerra às drogas à guerra ao terror, passando pela guerra ao crime, as analogias de preparação militar cotidianas são ubíquas [2]. Nesse sentido, coexiste com a militarização a privatização dos serviços que giram em torno da venda do medo e da insegurança, no bojo do neoliberalismo, que reorganiza as sociedades através de relações mercantis, incluindo a saúde, a educação e a segurança. Não causa espanto, portanto, que esse novo modelo de governança nas cidades esteja combinado com o aumento de estratégias de policiamento punitivas, exacerbando as desigualdades urbanas, que têm nos pobres, moradores de periferias e favelas seus maiores alvos, pois estão submetidos a serviços públicos de péssima qualidade – quando ainda não privatizados – e enfrentam uma mirada desenfreadamente criminalizante de outro.

É importante, portanto, não separar a gestão estatal da res publica, crescentemente entregue ao capital estrangeiro, do aumento da repressão de seus cidadãos mais pobres, sobretudo os que insistem em permanecer em áreas potencialmente lucrativas [3], vide Belo Monte no Brasil, entre outras experiências mundo afora, como as hidroelétricas de El Caracol y La Parota, em Guerrero, no México.

As autodefesas mexicanas

Mexico_autodefense-307_203As experiências de milícia cidadã, no México, são polissêmicas, mas grosso modo dividem-se em autodefesas e polícias comunitárias. Se as primeiras datam do início do século, as segundas surgiram em 1995, com cerca de 800 unidades, em 73 comunidades, em um modo de funcionamento que ainda passava pelo Estado, através da detenção dos suspeitos e entrega subsequente às autoridades, até chegarem à conclusão de que a corrupção endêmica do aparelho estatal tornava obsoleto todo o sistema prévio de análise das queixas [4]. Ao retirar o componente estatal da equação, cabia à comunidade a investigação das denúncias, expedição de ordens de apreensão e apresentação dos suspeitos às assembleias comunitárias, onde o povo determina a punição.

Ambas, as polícias e as autodefesas, são análogas em sua percepção crescente da ilegitimidade estatal no que tange à segurança, flagrante no caso mexicano, vide os protestos que se alargaram por muito tempo após a eleição de Enrique Peña Nieto, em 2012, mas que remontam a uma história muito anterior, apontando também para a percepção da população de solidão e necessidade de defesa, dado que sofrem – regularmente – com ataques de grupos armados. Se desde 1992 uma emenda constitucional declarou o país como “uma nação que tem uma composição pluricultural sustentada originalmente em seus povos indígenas”, o teor progressista resistiu somente na letra da lei, nunca tendo sido respeitado, vide os sistemáticos ataques às distintas formas de comunidade indígena no país. Por que então tornar tal artigo constitucional? No âmbito das reformas do presidente Carlos Salinas de Gortari (1988-1994), seu objetivo era fortalecer os laços do desenvolvimento capitalista no âmbito da globalização, sem se preocupar com as aspirações dos agora reconhecidos “povos indígenas”.

Assim, a ilegitimidade estatal pode ser observada, de uma forma geral, nas promessas não cumpridas de 1992, mas também muito antes, já na revolução mexicana do começo do século e no cotidiano institucional de um país racista e opressor. A resistência à opressão do Estado mexicano começou a aparecer justamente nos estados de maior composição indígena, onde a maioria da população rural tinha perdido ou abandonado sua identidade de outrora, mas uma minoria importante ainda se identificava como indígena, reiterando demandas agrárias e camponesas como reivindicações étnicas em Guerrero e Michoacán, não à toa, os principais pontos de surgimento das autodefesas do século XXI.

É extenso o histórico do conflito na região, mas cite-se, a título de exemplo, o confronto em 2006 entre diversos movimentos sociais reunidos na Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) e o governador do PRI (Partido Revolucionário Institucional), Ulises Ruiz, que ilustrara simbolicamente o desgaste. Através do uso de estratégias de repressão até então inéditas, Ruiz sufocou os movimentos, com o apoio do governo federal, mas também se aproveitando de divisões que existiam entre as comunidades indígenas e dentro delas. Neste contexto, os grupos paramilitares atuantes na região agiam com impunidade, coagindo e desassosegando a vida dessas comunidades, que tentavam expressar a sua autonomia em lutas para controlar mais plenamente seus recursos. A organização para combater tais grupos também está na gênese dos grupos de autodefesa, dado que o narcotráfico, a despeito de sua longa histórica no país, só atingiu a dimensão de problema para as comunidades indígenas durante o governo Salinas, na substituição dos cartéis colombianos pelos mexicanos no tráfico de cocaína para os Estados Unidos [5].

Quando o Estado é largamente encarado a partir de sua suposta ilegitimidade, cabe dimensionar o papel do fortalecimento do narcotráfico no país nos últimos 20 anos, criando um paralelismo da fragmentação estatal à fragmentação dos cartéis, com a impunidade oferecida pela proteção de políticos e membros das forças de segurança, como pelas lutas para controlar as áreas geográficas da produção de entorpecentes. Dessa maneira, ganhou proeminência um grupo conhecido como Los Caballeros Templarios, sobretudo em Michoacán, que além do terror causado à população, cobra cotas para a “proteção” dos comerciantes locais. A partir daí, as autodefesas comunitárias ganharam força e projeção nacional, em um contexto de crescente autonomia das comunidades, como no município de Cherán, onde já propunham, nos últimos anos, a expulsão dos partidos políticos da vida comunal, em uma conjuntura de novas expressões autonomistas, que reivindicam a autodefesa armada como a única forma de segurança e defesa de seus recursos no enquadramento mexicano contemporâneo.

Passado e futuro das autodefesas e seu questionamento principal do monopólio da violência estatal

michoaconTais experiências de organização comunitária devem ser entendidas a partir de seu momento histórico, como mencionado anteriormente, mas há uma inflexão importante no final da década de 80 e no começo da de 90, sobretudo com o levante zapatista em Chiapas, com suas demandas de autonomia comunitária e direito à autodeterminação. Foi nesse período que ganhou corpo o debate nacional sobre a situação dos povos indígenas mexicanos e seus projetos de autonomia, mobilizados por setores do movimento democrático nacional [6].

Em termos de presente e futuro das autodefesas, parece evidente o quão potencialmente disruptivo para o Estado-Nação é um projeto de armamento e segurança comunitárias e, não à toa, a principal liderança – e figura pública das autodefesas – no Estado de Michoacán, conhecido como Dr. Mireles, foi preso, após uma emboscada anunciada pelo governo federal. Contando com a solidariedade de ampla maioria da população em território nacional [7], manifestações já foram organizadas desde junho passado e os movimentos coextensivos às temáticas da autonomia e etnias indígenas se organizam não só por sua liberação, mas pelo direito de protegerem-se da violência advinda da guerra às drogas.

A questão de autonomia, sobretudo das populações indígenas no México, tem como um de seus principais efeitos colocar em xeque o suposto monopólio legítimo do uso da força estatal, tendo em vista que não somente este parece não existir. Ademais, os grupos armados, tal como o Estado em seu braço repressor, intimidam, ameaçam e oprimem as populações mais marginalizadas. Se a violência não é um problema para o Estado, justamente pela detenção “legítima” desse privilégio, fato é que seu uso indiscriminado, tanto em governos considerados democráticos quanto ditatoriais, serve como um lembrete da fundação do Estado moderno, com revoluções violentas e sua reificação sistemática, para manutenção do status quo. Como colocado pelo chamado à guerra nômade – Baklava: “Uma violência que ataca o sistema estabelecido é a única violência que o Estado não tolera. Uma violência revolucionária, uma autodefesa que funda uma visão de mundo não estatal ou anti-estatal”.

Ao questionar e enfrentar o monopólio legítimo da força estatal, demonstrando a fragilidade de sua legitimidade, evidencia-se uma das lógicas mais perversas do Estado moderno: sua discricionariedade com as populações mais à margem. Dessa forma, a situação mexicana, por óbvio, é extensiva ao vivenciado no Brasil, pelos efeitos sentidos da guerra às drogas e pela constatação de que o Estado é parte do braço armado em ambos os lados, o lado que fomenta e o que reprime. Quem morre são os mais vulneráveis, moradores de zonas periféricas das grandes cidades brasileiras, tal como os indígenas dos estados de maior concentração de autodefesas, Guerrero e Michoacán, figurando entre as províncias mais pobres do México.

A autodefesa como risco e os ensejos brasileiros

É patente que uma situação de organização comunitária não acontece sem riscos, tal qual outras conjunturas análogas no que tange à segurança, sendo o linchamento popular um deles. O contra-argumento mais frequente às autodefesas é de que entregar à população o arbítrio sobre os sujeitos é facilitar o seu (mau) juízo. Aos criminados pelas autodefesas cabe um julgamento popular, ao contrário dos linchamentos com contornos fascistas realizados nos últimos anos no Brasil, mas não exclusivamente, com julgamentos súbitos, e acusadores escondidos no anonimato, sem a possibilidade de prova de inocência para os acusados. Nos linchamentos há, amiúde, motivações conservadoras, como um castigo exemplar para terceiros, que tenham, intencionalmente ou não, agido contra normas que sustentam o modo como as relações sociais estabelecidas [8].

Dessa forma, os linchamentos, em sua maneira conservadora, também carregam consigo, implicitamente, a omissão, ou mesmo conivência, da polícia. No entanto, o linchamento popular não deve ser confundido, dado o seu caráter espontâneo e difuso, com atos de vigilantismo, que têm como objetivo declarado reprimir o crime. Ambos, no entanto, só podem ser compreendidos como violências em resposta (à violência urbana), carregando uma crítica prática às instituições e à lei, eliminando o intermediário – estatal -, dado que na justiça popular “não há três elementos; há as massas e os seus inimigos” [9].

Afastado o amálgama comum de linchamento das autodefesas, é importante buscar considerar as discussões recentes, de grupos periféricos no Brasil, por exemplo, de usufruir do seu direito de autodefesa, frente às investidas estatais. Ao Estado que, sob a alegação de segurança, na figura de uma anacrônica Polícia Militar, descumpre sistematicamente as leis e escolhe seus alvos, forjando provas e justificativas para a grande mídia, quão disruptivo é pensar em organizações comunitárias de defesa cidadã? A mirada ao México talvez proporcione indícios de como podem funcionar experiências nesse sentido, proporcionando autonomia aos povos e colocando em questão prerrogativas tão caras ao Estado, como o monopólio legítimo da força.

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Notas

[1] DAVIS, Diane (2012). Policing and regime transition. Em: Violence, Coercion, and State-Making in Twentieth-Century Mexico, *2012* | ISBN: 9780804781589.
[2] GRAHAM, Stephen (2011). Cities under siege – The new military Urbanism, Verso Books, New York.
[3] Baklava – Um chamado à guerra nômade.
[4] Fonte: http://radiozapatista.org/?p=330
[5] GLEDHILL, John. Limites da Autonomia e da Autodefesa Indigena. Experiencias Mexicanas. Mana 18(3): 449-470, 2012.
[6] Fonte: Rodriguez, 2000.
[7] Ver: http://zoonpolitikonmx.com/2014/02/12/encuesta-que-opinion-tienes-sobre-los-grupos-de-autodefensa-en-mexico/
[8] MARTINSJosé de Souza. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(2): 11-26, outubro de 1996.
[9] Fonte: FOUCAULT, Michel. (1982) Microfísica do poder.3ª edição. Rio de Janeiro,Edições Graal Ltda.

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