Por Ronan Gonçalves [1]
A educação tem sido um dos temas mais postos em debate na sociedade brasileira nos últimos tempos. Quem acompanha o noticiário e as mudanças operadas pelo Estado, assim como a pressão efetuada por variados grupos, viu o cenário ocupado pela questão das cotas [reservas de lugares para estudantes de ascendência negra], a discussão sobre aborto, a emergência do judiciário como uma espécie de Poder Moderador, poder acima dos demais, e as variadas propostas de reformulação da educação, que, em 2007, chegaram a fazer com que surgisse um movimento de ocupação na maior vitrine universitária do país, a Universidade de São Paulo, trazendo agora o foco para o professorado paulista.
Acompanhar o que se tem passado no campo da educação é uma lição muito instrutiva para compreendermos a forma de funcionamento da democracia contemporânea. Por trás de toda a capa de participação e elegibilidade que a democracia apresenta, o que temos é um completo domínio de bastidores efetuado por conselhos técnicos e grupos de pressão, os lobbies. Não só na educação, mas nas mais variadas áreas, as discussões e as decisões importantes, as que realmente afetam as nossas vidas, são tecidas cada vez mais dentre conselhos técnicos e lobbies de variado tipo.
Um número cada vez menor de decisões é operado no âmbito do legislativo e até mesmo do executivo eleito, ficando cada vez mais sob a alçada dos conselhos técnicos e dos grupos de pressão. Mesmo quando o parlamento bate o martelo a respeito de algo, conselhos de vários tipos e outros lobbies se encarregam de alterar o que foi decidido ou passar por nova análise. Leis consagradas pela Constituição, ou decididas no âmbito das assembléias legislativas estaduais, têm sido sistematicamente desconsideradas ou reinterpretadas ao gosto dos órgãos variados. Tivemos a aprovação de uma lei federal que estipulava um salário mínimo nacional para os professores e que foi sistematicamente desconsiderada pelos conselhos estaduais de educação e pelas secretarias de educação dos estados. Os sindicatos estão agora na curiosa situação de terem que fazer mobilização para que os governos estaduais obedeçam a uma lei federal, aprovada por deputados, senadores e sancionada pelo presidente.
Aliás, é pelo fato de a soberania estar se processando no âmbito de múltiplos órgãos que podemos ter um legislativo claramente preguiçoso e desqualificado e um executivo que muitas vezes se preocupa mais em viajar e, ainda assim, o sistema continuar de pé. Quem se enlaça no pseudo-moralismo televisivo, que não cansa de apontar senadores, deputados e vereadores que não trabalham e prefeitos, governadores e presidentes que mais viajam e se apresentam em inaugurações e eventos em geral, poderia parar para pensar quem está a governar então.
Não são aquelas pessoas especializadas em angariar votos que se ocupam das milhares de decisões que afetam realmente a vida das pessoas. Dentro do legislativo, um poder enorme é dado às variadas comissões que se encarregam de formular e debater os projetos sobre múltiplos temas. São comissões de educação, comissão de direitos humanos, comissão de transporte, comissão de saúde, comissão para a infância e juventude e várias outras. Muito antes de serem trazidos à tona, os variados grupos de interesse podem apresentar à exaustão e debater as suas perspectivas no quadro dessas comissões que se encarregam de apresentar o projeto final de lei que vai à votação. Dessa forma, enquanto o grosso da população assiste à novela e recebe no noticiário a menção de que o governo, por exemplo, decidiu que será proibido o fumo em locais públicos ou tornar obrigatório o air bag em todos os carros, havia, desde muito antes, grupos de saúde e empresas do setor automobilístico que atuavam nos bastidores para que tais projetos fossem aprovados. O público em geral tem somente a possibilidade de uma reação a posteriori, como no caso da ocupação de 2007 na USP, que foi eficaz em reverter as medidas tomadas pela Secretaria de Ensino Superior. Os grupos de pressão atuam desde antes, tanto defendendo que se tornem leis seus interesses próprios, como fazendo por nunca chegarem a ser sequer projetos de lei os que lhes contrariam. É dessa forma, por exemplo, que a Igreja Católica atua para que projetos sobre a legalização do aborto não venham jamais a ser votados, ou mesmo formulados.
As empresas e os grupos de pressão reúnem verdadeiros exércitos de técnicos, intelectuais, advogados e notáveis responsáveis por defender as suas bandeiras e interesses. Some-se o incalculável poder persuasivo das doações prévias para campanha, como no caso evidenciado pela Camargo Correa, que em seis anos doou mais de 30 milhões de reais para os principais partidos, e se pode ter a idéia dos laços econômicos e sociais que se estabelecem entre os candidatos eleitos e esses grupos privados. Na última eleição para a prefeitura de São Paulo, os dois maiores candidatos, Marta Suplicy e Gilberto Kassab, gastaram em torno de 30 milhões cada para suas campanhas, o que requer doação de gente graúda e bem relacionada.
Esse mesmo tipo de simbiose entre interesses privados e comissões legislativas ou políticos ocorre entre os mesmos interesses e os variados órgãos que realmente decidem sobre as coisas. Fortes mudanças no plano educacional têm sido tecidas, desde a perspectiva de abolição do vestibular [exame de acesso ao ensino superior] efetuado pelas universidades autonomamente, criando um modelo único e centralizado, passando pela implantação do ensino religioso, até uma completa criação de um sistema de ensino em estados como Paraná e São Paulo. Mudanças impactantes que atingem a vida de 5 milhões de alunos em São Paulo, ou de 30 milhões no âmbito de todo o país, são todas elas construídas fora do campo legislativo e do debate público.
É que as estruturas administrativas têm se sobressaído ante as estruturas eleitas. O Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Educação, o Conselho Nacional de Segurança, o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Justiça, para não encher a lista com os vários conselhos, é que têm se encarregado das importantes decisões de suas áreas. Dessa forma, uma relação direta e forte da Igreja e/ou de outros grupos de interesse com o Conselho Nacional de Educação ou com o Conselho Estadual de Educação pode acabar determinando mudanças cruciais sobre a forma como a educação vai ser organizada no país e/ou no estado. Da mesma forma, indiferente às leis, o número de pessoas assassinadas, extorquidas, violentadas e/ou torturadas pela polícia pode depender somente de quem está no comando da Secretaria de Segurança.
Leio na Folha de São Paulo deste domingo, de 5 de abril de 2009, que há unidades do metrô onde se tem mais funcionários do que passageiros: unidades fantasma na metrópole paulista que possui sérios problemas e demandas quanto ao transporte público. Os Jogos Pan-Americanos que consumiram 4 bilhões [milhares de milhões] do orçamento público e a Copa [Campeonato do Mundo] de 2014 que se estima irá consumir outros 10 bilhões, ou os 11 bilhões destinados aos usineiros [industriais] nos últimos 5 anos são todos exemplos de decisões vultosas processadas no âmbito de conselhos técnicos. Do livro didático utilizado – que pode ou não ser criacionista -, passando pelos conteúdos ensinados, as disciplinas existentes, as modalidades de contratação, o formato de organização interna, os cursos de requalificação, as prioridades quanto ao investimento e toda a infinidade de aspectos que fazem realmente a educação têm sido decididos no âmbito desses conselhos, como o Conselho Nacional e o Conselho Estadual de Educação e tantos outros conselhos, alguns quase secretos, de dentro das Secretarias. São também conselhos técnicos que se encarregaram de decidir as novas normas de grafia da língua portuguesa, assim como são eles que determinam os horários, as modalidades de ensino e normas as mais vastas como, por exemplo, quando é que começa e termina o horário de verão, quanto de flúor se terá na água, distribuição de remédio e uma infinidade de coisas.
Numa situação como essa, em que pessoas especializadas saídas da universidade decidem na escuridão os parâmetros da vida em geral e da educação, que é enfatizada agora, salta à vista a necessidade de se reorientar o debate nesse campo. Há uma ausência de pressão do professorado e da sociedade em geral sobre esses conselhos que organizam o fazer pedagógico. Lá onde os empresários, as igrejas e os grupos de pressão vários estão há muito atuando não há um posicionamento mínimo dos trabalhadores de base da educação e dos pais. Por um lado, os sindicatos reforçam essa ilusão ao buscarem desviar para as Assembléias Legislativas os atos e o foco, e por nunca estimularem uma reflexão autônoma do professorado, recorrendo aos mesmos tecnocratas da universidade quando pretendem formular críticas. Por outro, uma participação ativa junto a tais órgãos pressupõe uma qualificação dos proletários da educação para que possam entender o que se passa, enfrentar o debate e postar suas propostas. Parece mesmo curioso que movimentos ditos de desqualificados como o MST e o Movimento Sem-Teto possuam projetos com os quais podem responder aos tecnocratas do campo e da cidade e o professorado tenha sido pego [apanhado] desprevenido ante o projeto da tecnocracia no momento atuante. Quanto a isso, desde há muito que o estudantado autônomo deixou de dar ouvidos aos candidatos a ministro dos estudantes, como os membros da UNE [União Nacional de Estudantes] e UEE [União Estadual do Estudante], e tem direcionado suas lutas para os variados conselhos técnicos dentro da universidade que são responsáveis por mudanças importantes como os critérios de expulsão, o formato dos cursos, a concessão de auxílios estudantis, a disciplina intra-universitária, o acesso à estrutura das faculdades, as modalidades de uso, permissão ou proibição de festas, etc. É um exemplo de lucidez.
[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP de Marília.
Meus caros, artigos como esse poderiam ser muito mais extensos e servem mais para chamar a atenção do que tratar de um assunto em toda a sua extensividade. Quero chamar a atenção para a articulação existente entre conselhos do Banco Mundial, do BID e outros conselhos educacionais dentro dos países. A padronização transnacional da administração escolar agora corrente – avaliação sobre professores, metas, bonificações – parte dessa rede transnacional de conselhos que superintende transnacionalmente a educação em vários países.
Neste exato momento, em conjunto com as secretarias estaduais,um conselho técnico, o INEP,(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas), pretende formular uma prova padrão única para seleção/contratação de todos os professores de todos os estados do Brasil, o que permitirá verificar e comparar o nível dos professores entre sí.
Por outro lado, a criação de um concurso único para todos é uma forma velada de,tecnicamente, se conseguir uma padronização do ensino superior, pois as faculdades direcionarão os seus cursos e os conteúdos para a aprovação em tal avaliação.
Pode-se debater, no Brasil, se tal medida é benéfica ou maléfica, mas é um bom exemplo do poder tecnocrático onde, em salas escondidas, uns tantos especialistas decidem o fututo do país.
Quando vc diz “os sindicatos”, deve se destacar que estes sindicatos não são a Cut, eles estão como extensão da Cut, nosso exemplo é a própria Apeoesp. É necessário desenvolver uma atuação libertária e anarco-sindicalista dentro da Apeoesp para mudar essas posições, com ênfase na participação política dos professores dentro das instancias da Apeoesp, que são obscuras para o professorado (de forma proposital).