5.1.2

Vivemos sim num Estado Democrático de Direito, o que é o mesmo que dizer que as coisas poderiam ser priores, mas é também reconhecer que todo preso é um preso político segundo a configuração do regime e prática política que vivemos. Por Acácio Augusto

A manutenção da condenação de Rafael Braga Vieira a 5 anos e 10 meses de prisão – pena máxima prevista no artigo 16, inciso III, da Lei 10.826/03, que versa sobre o Estatuto de Desarmamento – é muito mais do que apenas a primeira, e até agora única, condenação de uma pessoa envolvida com os protestos iniciados em junho de 2013. Ela expõe questões embaraçosas e revoltantes tanto em relação ao sistema criminal (entendido como todo o circuito que vai da apreensão policial à condenação em juízo), quanto em relação à forma como movimentos sociais e organizações de direitos humanos lidam com prisões decorrentes de atos qualificados como políticos ou de protesto.

5.1.2O objetivo aqui é suscitar uma conversa que ultrapasse a posição defensiva e reativa que os movimentos sociais e entidades de direitos humanos tomam diante dessas questões e apresentar o que há de embaraçoso e revoltante nesses casos. Paralelo a isso apresentam-se alguns temas e noções pertinentes ao abolicionismo penal, que, como define um de seus iniciais propositores, Louk Hulsman, se coloca como movimento social, pressionado e agindo para combater o encarceramento de quem quer que seja. Mas é também um movimento de produção intelectual que visa uma transformação da linguagem, a começar pela própria definição de crime, tão naturalizada em nossa sociedade, mas que possui uma construção histórica, social e moral. Para notar isso, nada mais evidente do que a legislação sobre drogas, repletas de substâncias e condutas que ora são criminalizadas ora liberadas, dependendo da época ou lugar em que se encontram.

Não se nega aqui a urgência e a necessidade em se atuar juridicamente para libertação das pessoas ou mesmo o uso político que se possa fazer de casos escandalosamente produzidos por “montagens”, mas, como já dito, é possível e preciso avançar [*] .

A prisão

Primeiro, um breve resumo do caso. De acordo com a reportagem da Folha de S. Paulo publicada no caderno Cotidiano em 5 de dezembro de 2013, Rafael Braga Vieira, 26 anos, fora detido por policiais militares no Bairro da Lapa em 21 de junho de 2013, dia da manifestação que levou milhares de pessoas às ruas. Os agentes não indicaram os motivos que os induziram a abordar Rafael entre tantas pessoas, mas relatam que na investida foram encontradas duas garrafas plásticas contendo líquido explosivo e panos a serem usados como pavio. Segundo o juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte, responsável pelo caso, a denúncia encaminhada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro conclui que Rafael Braga Viera portava duas garrafas de coquetel molotov. Evidência negada no laudo técnico produzido pelo Esquadrão Antibombas da Polícia Civil do Rio de Janeiro que, segundo a mesma reportagem da Folha, concluiu pela “ínfima possibilidade de funcionar como coquetel molotov”.

5.1.2Uma outra reportagem, publicada em 21 de dezembro de 2013 pelo jornal O Estado de S. Paulo, contendo entrevista com Rafael Vieira no Presídio Elizabeth Sá Rego, registra a indignação e a alegação de inocência do acusado, que declara não tomar como justa a sua prisão, negando, inclusive, ter participado da manifestação. Na entrevista ele afirma ser morador de rua e viver de catar latinhas e comercializar materiais usados. Esta reportagem registra, ainda, que ele é reincidente, tendo cumprido 1 ano e 8 meses de prisão em 2006 por condenação de furto. Rafael é negro e abandonou os estudos no sexto ano do Ensino Fundamental I, antiga 5ª série. Na época da reportagem, seu advogado, Felipe Coelho, da ONG Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH), trabalhava em um pedido de apelação da sentença, escorado em novos laudos comprobatórios que atestavam sua inocência em relação ao porte de material explosivo. Coelho declara que Rafael Viera “é vítima de uma visão deturpada sobre moradores de rua no Rio. Se fosse branco, com condição social melhor, pensariam duas vezes antes de prender e condenar”, além de alegar a inexistência de qualquer engajamento político por parte do acusado. O advogado conclui que ele é um preso político. Mas como já indicado, a apelação foi negada no dia 26 de agosto de 2014, o juiz reduziu a pena em alguns meses, mas manteve a condenação nos termos da lei supracitada.

Qual a revolta?

A revolta que suscita o caso é direcionada ao sistema penal. Destarte, seria um truísmo insistir em sua escandalosa seletividade, praticada em todo circuito, da abordagem policial à condenação em juízo. Mas a seletividade penal vai além, uma vez que pretende um efeito intimatório, exemplar, preventivo e de instauração do medo e da paranoia. Na medida em que pessoas são detidas e condenadas por razões, no mínimo, pouco lógicas ou racionais, o receio de ser detido e condenado se instala nos corações e mentes de qualquer cidadão, de maneira que não se trata apenas de insistir no argumento de que Rafael foi detido e condenado por ser negro, pobre, morador de rua e reincidente, mas de projetar nesse caso a falência e a explícita parcialidade do sistema penal brasileiro. E que isto não se confunda com a necessidade de reformas legais, institucionais ou regulamentares. Tomemos a condenação de Rafael Vieira como demonstração de que estamos diante de uma forma de resolução de situações-problema que se mostra não apenas incapaz de cumprir o que se propõe, mas produtora de medo, incoerência, mal-entendidos, sofrimento e que cria barreiras para que soluções que valorizem a liberdade sejam encontradas. A condenação, como tantas outras expedidas diariamente por juízes, reitera preconceitos, assimetrias e desigualdades.

O que se pergunta é como alguém ainda pode ser favorável ao sistema penal diante de tais evidências? Sobretudo após o conhecimento de prisões como a de Rafael e eventos como as execuções de maio de 2006 em São Paulo, que suscitou o movimento das Mães de Maio, os assassinatos de jovens negros por policiais em St. Louis e Nova Iorque, em agosto deste ano, ou mesmo as cenas terrificantes de decapitação no presídio de Cascavel no Paraná ou as análogas protagonizadas pelo grupo ISIS (Islamic State in Iraq and Syria). Isso para ficar em casos por demais frescos na memória recente e para mostrar como a lógica da seletividade penal não se restringe ao Brasil.

5.1.2Diversos estudiosos nas áreas do Direito e das Ciências Sociais, no Brasil e no planeta (falo de intelectuais como Louk Hulsman, Nils Christie, Edson Passetti, Salete Oliveira, Thiago Rodrigues, Nilo Batista, Vera Malagutti, Cecília Coimbra, para citar alguns), produzem pesquisas há décadas – sob as mais diversas perspectivas teóricas e políticas – relacionadas ao abolicionismo penal. Este propõe encarar corajosamente e de maneira inventiva questões como a cultura dos castigos, a sociabilidade autoritária, a seletividade penal, os efeitos de segregação das políticas de segurança, os limites e usos das políticas de direitos humanos, a herança autoritária da ditadura civil-militar, o absurdo da continuidade da prisão para jovens no Brasil, enfim, a constatação revoltante da continuidade de uma lógica de solução de situações problemáticas baseada na punição e na recompensa. Alertam alguns deles, inclusive, para o fato de que muitos de nós solucionamos uma série de situações que poderiam ser classificadas como crime, sem recorrer ao sistema penal. Por isso, penso que se não se encarar a condenação de Rafael Viera partir da perspectiva radical afirmada pelos abolicionistas penais, ele se tornará apenas mais um caso a provocar reações e emoções como alívio e comoção, indignação e satisfação, revolta e conformismo, sem avançar efetivamente em quase nada. Servirá apenas para encher páginas de jornais, ocupar organizações de direitos humanos e animar manifestações pontuais, que logo se voltarão a um novo caso ou uma nova causa.

Tais questões se colocam em um momento propício, já que os candidatos na atual disputa eleitoral, reconhecidamente descolados da possibilidade de mudanças efetivas, só conseguem discutir questões problemáticas da perspectiva da busca por segurança, a partir de uma mentalidade punitiva e de endurecimento penal. Basta notar como cada vez que o tema segurança pública vem à tona, as propostas são invariavelmente relativas a aumento e incremento do aparato policial, políticas sociais compensatórias e construções de prisões. Isso quando não se fala em privatização de prisões, como já ocorre nos EUA. Além da sempre presente proposta da redução da maioridade penal.

Este muro, em nada metafórico e erguido pela lógica das penas, deve ser derrubado pelo que poderíamos chamar de uma revolta antipenal, que pensasse diferentemente e agisse de forma mais afirmativa diante questões relacionadas às prisões e as penas. Mais que isso, fosse menos restritiva em relação às soluções que se encaminham para resolução de situações-problema. A começar pelo reconhecimento da principal função da segurança pública: a defesa da propriedade privada e estatal. Além de seu explícito conteúdo moral, quando fala da defesa da vida do cidadão de bem e uso da violência legítima.

Qual embaraço?

Além da revolta contra o sistema penal, há também um embaraço em relação à forma como os movimentos sociais e as organizações de direitos humanos reagem nesses casos. Por muito do que já foi exposto acima, colocar os problemas e decisões do sistema penal nos termos de justiça ou injustiça, e sob a diferenciação entre o que seria uma prisão política e uma prisão comum, mostra-se, no mínimo, equivocado. Não sou jurista e, portanto, não me aventuro a objetar incongruências processuais ao caso para além das inconsistências lógicas expostas pelo laudo veiculado na mídia. No entanto, é possível sim identificar, no interior da lógica do sistema penal e nos atos da justiça criminal, a produção e a reprodução de tecnologias de governos que caracterizam uma sociedade de práticas autoritárias mesmo sob a égide de um regime liberal-democrático.

São casos como o de Rafael Vieira e de outras detenções perpetradas no decorrer das ondas de manifestação de rua que deixam claras as limitações de se pensar em termos de injustiça ou de prisões políticas. Ou mesmo argumentar, como é comum entre os movimentos sociais, que vivemos a instauração de um estado de exceção. Paradoxalmente, do ponto de vista argumentativo, ao colocar essas prisões como injustas, ilegais ou políticas, reconhece-se todas as outras detenções e/ou prisões como legítimas e/ou legais. Portanto, o que está em jogo aqui não é a legitimidade, mas a forma de funcionamento do sistema penal. Vivemos sim num Estado Democrático de Direito, o que é o mesmo que dizer que as coisas poderiam ser priores, mas é também reconhecer que todo preso é um preso político segundo a configuração do regime e prática política que vivemos. Este é outro muro que precisa ser derrubado. O reconhecimento do monopólio da violência do Estado o autoriza, de antemão, a cometer os chamados excessos, cada vez mais regulares.

Nossa prática democrática, entendida como forma de expressão da liberdade política, encontra-se cambaleante. E não porque vivemos uma crise da representação, porque os partidos perderam a conexão com as ruas e/ou porque os governos não são mais capazes de traduzir os anseios da população. Algo de muito sério, e extremamente autoritário, se passa entre o governo de si e dos outros hoje, e seu ponto decisivo se expressa no sistema penal, seja como tradutor dos desejos mais mesquinhos disseminados nas relações sociais, seja em seu funcionamento ordinário. Sua ponta mais evidente é a polícia, militar ou civil. Somada aos milhares de expressões de ódio manifestas em redes sociais ou espaços de comentários de portais eletrônicos, até o limite do linchamento público e da decapitação televisionada.

É preciso avançar…

5.1.2Enquanto o muro da mentalidade punitiva e da sociabilidade autoritária não vier abaixo por uma saudável revolta antipenal, a produção de rafaéis, amarildos, claudias, hidekis e uma série de anônimos atingidos cotidianamente pelo sistema penal não cessará, assim como as cabeças de cascavéis continuarão rolando, junto aos infinitos negócios que envolvem empresas do tráfico, Estado, polícia, sicários e mercenários produzidos em meio às variadas relações que compõem os programas de segurança e o regime dos ilegalismos.

É preciso tomar a revoltante condenação de Rafael Braga Viera como expressão de uma política. Esta é composta pelo desejo, irrealizável, de paz das pessoas, pela busca por segurança dos governos e pelas infindáveis assimetrias perpetradas no sistema penal. O circuito de violências até hoje só produziu mais violência, linchamentos públicos, prisões, condenações e decapitações, atinge, preferencialmente, os indesejáveis, os negros, os pobres, os moradores de rua, os subversivos, os revoltados, e com isso faz de qualquer pessoa um virtual prisioneiro e de cada cidadão que não se revolta contra essa política de extermínio um potencial carrasco.

Nota

[*] Como se trata de um texto destinado a abrir uma conversa, optei por não registrar notas bibliográficas. Assim, as matérias de jornal citadas encontram no corpo do texto com indicação da data e do caderno em que se encontram nos respectivos jornais. As referências aos termos, temas, conceitos, noções e autores vinculados ao abolicionismo penal e utilizados ao longo do texto podem ser encontrados e consultadas aqui, aqui, aqui e aqui.

Nota sobre o autor

Acácio Augusto é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP). Publicou pela Lamparina, Rio de Janeiro, Política e polícia. Cuidados, controles e penalizações de jovens. E-mail: [email protected]

As fotografias que ilustram o artigo são do ensaio Caldeirão do Diabo, de André Cypriano.

22 COMENTÁRIOS

  1. Gostaria de acrescentar à discussão que entendo que a luta anti-penal não pode vir e nem se realizar tão somente na esfera penal, que é indissociável da esfera cível. Portanto a luta é contra a prisão, mas também contra todos as reintegrações de posse, despejos, buscas e apreensões, demissões com ou sem justa causa, internações compulsórias, etc.. A liberdade não se restringe só com a prisão, mas com as mais variadas leis e sentenças…

  2. Este artigo é contraditório e usa uma argumentação inconsequente.

    1) O artigo é contraditório porque, afirmando que não existe distinção entre presos comuns e presos políticos, conclui que todos os presos comuns são presos políticos. A expressão mais flagrante desta contradição encontra-se quando o autor, depois de indicar que o advogado de Rafael Braga Vieira alega «a inexistência de qualquer engajamento político por parte do causado», prossegue com toda a naturalidade escrevendo que «o advogado conclui que ele é um preso político». Chegamos assim à curiosa constatação de que são políticos os não políticos. Esta mesma contradição serve de eixo a todo o artigo.

    2) O artigo usa uma argumentação inconsequente porque confunde a crítica ao sistema judiciário, penal e carcerário actualmente em vigor com a defesa de que todos os presos são presos políticos. Partindo do princípio de que toda a ordem vigente é capitalista, o autor do artigo conclui que qualquer pessoa que viole essa ordem se opõe ao capitalismo e portanto, se for condenada à prisão, será um preso político. Se isto fosse exacto, todo o trabalho de organização e de mobilização seria inútil e aliás o capitalismo já não existiria há muito tempo. Não basta ser explorado ou ser preso para desenvolver uma acção política anticapitalista. O mesmo se deve dizer daqueles habitantes de bairros populares ocupados pela Polícia Militar e onde vigora realmente um estado de excepção. Numa grande parte dos casos são presos apenas por serem pobres e de pele escura, mas por si só isto não converte essas vítimas da repressão em agentes políticos. Aqueles que defendem que todo o preso é um preso político partem do pressuposto de que qualquer crime se dirige contra o capitalismo e que as instituições estatais, por serem capitalistas, conferem um carácter político à punição. Mas, se assim fosse, teríamos de admitir que todos os criminosos seriam conscientemente opostos ao capitalismo. É necessária uma dose muito grande de ingenuidade para aceitar tamanho absurdo.

    A luta contra o sistema policial, judiciário e penal vigente é indispensável, tal como o é a luta contra a disseminação do punitivismo, incluindo linchagens e escrachos. Não nego que alguns dos defensores das ideias expressas neste artigo se têm oposto corajosamente ao punitivismo, tanto do Estado como popular. Mas a defesa dos presos por motivos políticos deve ser feita em termos distintos da defesa dos presos comuns, recorrendo a uma argumentação diferente e invocando outro tipo de critérios. Ainda mais importante do que isto, deve haver uma completa separação organizacional entre a defesa dos presos políticos e a defesa dos presos comuns. A razão é a seguinte. Embora nas cadeias haja muitos inocentes, elas são dominadas pelos delinquentes comuns, que estão sempre dispostos a trair em benefício próprio; é um universo de Hobbes, a guerra de todos contra todos. Como há alguns dias resumi o que penso sobre o assunto num comentário neste site, remeto para o que lá escrevi. Mas destaco aqui esta passagem: «No Brasil dos nossos dias, a tese de que todo o preso é um preso político implicaria de imediato uma aliança entre os movimentos sociais e o tráfico, que, se fosse efectivada, forneceria à polícia os informadores e provocadores de que ela necessita, além de outras coisas. A curto prazo os movimentos sociais seriam destruídos a partir de dentro. Os defensores desta tese estarão preparados para isso?».

  3. Parece haver uma disputa de nomenclatura.
    Os que defendem a posição do autor do texto querem arrogar para si o termo “preso político” para se referir a todos aqueles que vão parar no sistema carcerário.
    Os “movimentos sociais e etc” que fazem o uso distinto querem usar o termo “preso político” para chantagear o governo de turno, denunciando ao resto da população um uso arbitrário das regras vigentes enquanto o Estado não devolver a liberdade a alguns destes encarcerados.

    reproduzo abaixo também algumas dúvidas minhas com relação a esse debate, que eu havia respondido em outro lugar aqui no site:

    1) Se o sistema penal é político, também o são todos os demais sistemas jurídicos. Todo individuo multado é um multado político? O cidadão que é obrigado pela justiça a pagar pensão à ex-mulher, também ele é vítima de um sistema político disfarçado de jurídico?
    2) A Constituição também é um sistema político. No entanto eu não vejo que se faça críticas aos que defendem o direito à moradia garantida por esta mesma Carta. Apontar medidas de Estado de Exceção, as inconstitucionalidades das ações dos governos de turno, o incumprimento de certas prerrogativas constitucionais… enfim, usar a Constituição como instrumento para conquistar vitórias para os trabalhadores e suas organizações, seria isso uma “crítica parcial” à democracia liberal que apenas reproduz uma lógica capitalista?

    E por fim, um tema que me parece extremamente relacionado mas que não pode ser evitado nesse debate:
    Lei de Anistia no Brasil. Caso haja uma revisão da Lei de Anistia, defenderão os que se alinham com o texto que a Anistia deverá ser ampla a irrestrita a todos os crimes da época? Defender a anistia aos ex-guerrilheiros e demais militantes de esquerda será uma forma de diferenciá-los dos demais presos da época, reproduzindo assim a lógica punitivista? O mera fato de haver uma anistia qualquer aos atores políticos não se encontra dentro daquilo que o presente texto critica?

  4. Quem afirma que todo preso comum é um preso político devia estar no PCC e não fazendo pesquisas em universidades.

    Quem conhece as áreas bravas de São Paulo, sabe como o crime organizado, o PCC, é um poder paralelo ao Estado, que age impondo regras rígidas aos criminosos pé-de-chinelo e à população. Nas áreas bravas, o primeiro poder a se instaurar é o do PCC e é preciso que as áreas se desenvolvam, que o Estado chegue lá, para que a população seja liberta das leis do PCC e estas se restrinjam apenas aos criminosos.

    Vou ser direta: parece que no Brasil de hoje basta que alguém diga uma asneira para que outros comecem a reproduzi-la sem a menor análise racional. A afirmação de que todo preso é um preso político é simplesmente estúpida. Mas os pesquisadores que gostam de difundi-la não são tão estúpidos e preferem morar nos bairros de classe média, com a proteção do Estado e a garantia de direitos constitucionais e não nas áreas bravas, onde o crime impõe outras leis, outra moral e outros tribunais.

  5. Longe de qualquer visão romântica, a deliquência não se restringe somente ao “lumpemproletariado”, muito embora seja ela o sujeito quase que exclusivo das ações penais. Ora, se, como diziam Marx e Engel, as superestruturas são o que dão suporte às infra-estruturas, como consequência desta dinâmica temos que as estruturas jurídico-políticas, o direito e o estado, são reflexos do sistema econômico. Neste sentido o que será considerado ou não como delinquência será determinado pela política que se espelhará na economia.

    Num sentido estrito senso, crimes políticos possuem especificidades e particularidades que os distinguem dos crimes comuns. Mas num senso mais amplo, não compartilhariam de uma gênese comum, ainda que pese seus resultados opostos? Para exemplificar, o devedor de pensão alimentícia não pode ser considerado estrito senso um criminoso político. Mas talvez seu ato, ainda que inconsciente, talvez não seja uma resposta a um sistema que além de espoliá-lo no seu trabalho desde a origem, ainda o espolia no que resta de seu produto de trabalho, o salário, impondo o ônus de cuidar do alimentando a ele, alimentante, ao invés de impor este ônus ao próprio estado ou a sociedade, ambas beneficiários do trabalho espoliado daquele?

    A violência existe não apenas interclasses, mas também intraclasses. Dentro do sistema prisional isso é fato. Como também é fato a violência, não apenas moral, como também física (revista íntima ou bulling, por exemplo) dentro das empresas ou das escolas, às quais funcionam sob verdadeiros regimes prisionais: “O homem lobo do homem”… não é privilégio da “bandidagem”… (as disputas atrozes e as vezes assassínias no interior dos partidos e sindicatos que o digam…)

    Assim, se o lumpemproletariado era aos olhos de Marx “os libertinos arruinados, com duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos, delinquentes, batedores de carteira e pequenos ladrões, jogadores, alcaguetes, donos de bordéis, carregadores, escrevinhadores, tocadores de realejo, trapeiros, afiadores, caldeireiros, mendigos, ou seja, a massa informe, difusa e errante”, ele deve cumprir, de um jeito ou de outro (ou seja, na formalidade ou informalidade, na legalidade ou ilegalidade), com seu papel na produção, como nos lembra Engels: “Onde há divisão do trabalho à escala social, há também autonomização dos trabalhos parcelares uns face aos outros. A produção é o em última instância decisivo” e no tacante ao judiciário o mesmo Engels conclui: “O reflexo das condições econômicas na forma de princípios jurídicos é, forçosamente, um reflexo invertido: opera-se sem que os sujeitos agentes tenham consciência disso: o jurista acredita utilizar normas apriorísticas, sem dar-se conta de que estas normas não são mais do que simples reflexos econômicos; tudo ao contrário. Para mim é evidente que esta inversão, enquanto não for reconhecida, constitui o que chamamos de concepção ideológica, repercute por sua vez sobre a base econômica e pode, dentro de certos limites, modificá-la.” (Carta a Conrad Schmidt (em Berlim) Friedrich Engels – 27 de Outubro de 1890).

    Portanto, se num plano estrito não é possível equiparar-se crimes políticos aos comuns, num sentido lato, em virtude do jurídico se originar no político e, ambos, refletirem o econômico e o lumpemproletariado ser uma consequência desse econômico, creio ser possível ao menos uma aproximação.

    Abraços fraternais,

    Beto

  6. A principal ingenuidade da tese sustentada neste artigo nem sequer é a de afirmar que todo o crime é um crime político. É a de pretender que todo o crime é um crime político de esquerda.

    Se se quiser empregar o silogismo ignaro de que, sendo todas as leis políticas, aqueles que as violam são políticos também, então por que motivo situar os violadores da lei num único sector da política, a esquerda?

    Tudo o que tenho vindo a escrever, no comentário acima e num outro, é que, se podem encontrar-se criminosos comuns de esquerda, com muitíssimo mais frequência se encontram de direita e de extremíssima-direita. Aos exemplos que dei há muitos outros que se poderiam acrescentar e é desses factos e não de declamações que se tece a história real das lutas sociais.

    Os crimes contra o património em nada classificam a atitude política do criminoso. Os trabalhadores de uma empresa que a ocupam, passam a controlar os meios de produção e as matérias-primas e vendem o produto do seu trabalho estão, sem dúvida, a cometer um crime contra o património. O sujeito que rouba carteiras no ponto do ônibus está também a cometer um crime contra o património. Com a diferença de que os trabalhadores que ocupam a empresa estão a edificar as bases do socialismo, enquanto o ladrão de carteiras preserva o quadro da propriedade privada, limitando-se a transferir o dinheiro do bolso do outro para o dele.

    E se há quem sustente que os pequenos traficantes não são pequenos capitalistas mas assalariados e trabalhadores precários, então que as pessoas que defendem esse ponto de vista sejam coerentes e mobilizem os pequenos traficantes para lutarem contra os patrões do tráfico. Disponham-se a agitar a luta de classes dentro do crime organizado. Serão capazes de o fazer? Porque enquanto não o fizerem estarão só a declamar.

    As lutas sociais são um assunto demasiado sério para ser tratado com ingenuidade, e convém não ter vocação de otário.

  7. João Bernardo,

    A respeito da aliança entre movimentos sociais e o tráfico, a qual você sugere que resultaria da afirmação de que todo preso é preso político, convém diferenciar o traficante miúdo, trabalhador do comércio varejista de artigos ilícitos, da associação criminosa para o tráfico, que é outra coisa. A meu ver, os movimentos sociais não devem fazer qualquer tipo de aliança ou concessão a organizações criminosas, mas não podem ser indiferentes àquela juventude que, vulnerável ao assédio de atuar na linha de frente do comércio de drogas, é alvo de opressão e exploração dessas organizações tanto quanto do Estado oficial.

    Poder-se-ia objetar que, na prática, é muito difícil distinguir estas coisas — e de fato o é — já que o indivíduo envolvido com esta atividade, quase invariavelmente, é tomado pela ideologia e pela ética criminal. Bom, mas aí não teríamos de aplicar este critério a todos os outros tipos de potencial aproximação efetuada pelos movimentos sociais? Afinal, a traição de princípios coletivos em nome do benefício próprio não é exclusividade desse meio social, e sim a bíblia de nossos dias.

    Nessa linha de raciocínio, não seria possível criar redes de solidariedade com os funcionários de uma empresa, por exemplo, porque haveria o risco de eles arrastarem consigo toda a estrutura da empresa e seu discurso empreendedor.
    Independentemente da bandeira que se queira levantar, penso que esse é um risco que os movimentos sociais estão condenados a correr. O sucesso ou fracasso das iniciativas, aliás, podem ser medidos pelo quanto da lógica do meio social de que se aproximaram foi absorvida. No entanto, a única forma de prevenir-se a com absoluta segurança é isolando-se, o que a rigor significaria deixar de ser um movimento social.

    Não quero com isso dizer que as lutas devem se desenvolver a revelia do terreno em que pretendem atuar, e nisso estou de acordo com seu comentário (e certamente, fariam bem as organizações que hoje defendem a bandeira de que todo preso é político se jamais perdessem isso de vista). Mas não acho que no tocante ao risco de assimilação, cooptação e amoldamento a organização com presos comuns constitua uma exclusividade. Como já foi mais ou menos lembrado aqui, os delinquentes que hoje arquitetam e dirigem os mecanismos de repressão e controle no Brasil foram, no passado, indiscutíveis presos políticos, de esquerda.

  8. Lembro-me de um certo encontro entre estudantes de ciências sociais há alguns anos atrás em que havia um minicurso para discutir sobre a natureza do PCC ou os levantes do PCC em São Paulo, enfim, algo do tipo. O encontro era aparelhado por uma organização trotskista e na facilitação do curso colocaram um deles. Sabe qual era a análise? O problema do PCC era o desvio da direção pequena burguesa… que traía a classe.

    Para aqueles que defendem que todo preso é um preso político, sugiro escutarem bem essa interceptação: https://www.youtube.com/watch?v=m0XjOWWHalY

  9. Taiguara,
    Você sabe bem que os trabalhadores nas empresas têm relações de solidariedade e de pressões recíprocas que não têm os pequenos delinquentes. Precisamente por isso se tornou possível, ao longo da história, que os trabalhadores actuassem como classe e não como uma mera soma de indivíduos.
    Por outro lado, o confronto dos pequenos delinquentes e traficantes com a polícia é muito diferente do confronto dos trabalhadores com a administração da empresa. Os mecanismos da extorsão de mais-valia são muito diferentes dos mecanismos da repressão policial.
    Quanto aos pequenos traficantes, chamo a atenção para o que escrevi num comentário acima: se há quem sustente que os pequenos traficantes não são pequenos capitalistas mas assalariados e trabalhadores precários, então que as pessoas que defendem esse ponto de vista sejam coerentes e mobilizem os pequenos traficantes para lutarem contra os patrões do tráfico. Disponham-se a agitar a luta de classes dentro do crime organizado.
    De resto, sublinho aquela que para mim é a questão básica. A luta contra o sistema policial, judiciário e penal vigente é indispensável, mas deve ser feita de uma maneira que não confunda crime comum com crime político e, sobretudo, que não pressuponha que todos aqueles que violam a lei são criminosos políticos de esquerda.

  10. Eu sou leigo nesse debate, mas sinceramente não sei que benefícios a homogeneização de presos comuns e presos políticos pode trazer à luta social. Em que ajudaria a defesa do Rafael Braga ou do Amarildo a afirmação de que eles e o Marcola são vítimas do mesmo processo de repressão estatal?

  11. Caro João Bernardo,

    Se “empiracamente” constata-se que muitas são as críticas que apelam ao ataque pessoal pela carência ou superficialidade de fundamentação (o que de certa forma é compreensível e até mesmo esperado, em razão da diversidade de formação entre os escritores e leitores), a presença desta fundamentação, por mais profunda e eloquente que seja, não autoriza, por sua vez, o ataque pessoal. Da mesma forma se aqui alguns não possuem a capacidade de se fazer compreender por sensos diversos aos seus, isso também não autoriza ataques pessoais, pois, salvo engano, dentre os objetivos do Passa Palavra está “impulsionar novos espaços comunicacionais (culturais, sociais e políticos) de carácter transformador, dando voz, prioritariamente, aos sectores mais esquecidos e explorados por políticas que conduziram a sociedade à situação em que se encontra e combatendo a ideia da inevitabilidade dessa situação” (Estatuto Editorial Passa Palavra, item 3).

    Assim, os muitos frequentadores de espaço virtual comungam da ideia de que “Não basta ler! É preciso acabar com a cultura da passividade semeada pelos meios de comunicação tradicionais; é preciso comentar. Esperamos comentários isentos de ofensa, com conteúdos que estimulem a reflexão e o debate” (Apresentação do Passa Palavra) aqui se manifestam justamente neste sentido. Afirmar que opiniões diversas daquelas que transitam neste espaço é “ter vocação de otário”, parece ir frontalmente contra tudo o que aqui se propõe, especialmente se tal manifestação origina-se de alguém tão respeitável e com conhecimentos tão profundos como você. Lendo uma biografia do Tragtemberg (Maurício Tragtemberg – Uma vida para as Ciências Humanas), o Professor Paulo-Edgar Almeida comenta que “O intelectual público, diferenciado do acadêmico esnobe e descomprometido, é aquele que, segundo Adorno, falando de Proust, evita a deselegância de deixar o leitor imaginar-se menos inteligente do que o autor do texto que ele lê” (pág. 136).

    Sem dúvida alguma que criminosos comuns “com muitíssimo mais frequência se encontram de direita e de extremíssima-direita”, mas, parece ser muito mais condenável quando o criminoso comum é um seu par, é um seu semelhante, como por exemplo aqueles “dirigentes sindicais que levam no bolso o dinheiro da tesouraria”, porque não se trata de pequenos traficantes que até podem ser considerados pequenos capitalistas, mas de trabalhadores (na condição de burocratas ou gestrores sindicais) explorando trabalhadores: o “o homem lobo do homem” onde menos se deveria esperar… Por isso, de minha parte, talvez eu não tenha me expressado claramente, mas não quis afirmar e muito menos reduzir minha opinião a que “todo o crime é um crime político de esquerda”. O que eu objetivava dizer é que a lógica do crime está inserida dentro da lógica do sistema capitalista, fazendo parte, ainda que indiretamente, das superestruturas que irão compor e fazer mover as infraestruturas.

    Mais uma vez obrigado pela atenção,

    Abraços fraternais,

    Beto.

  12. Beto,

    Se você tivesse lido com suficiente atenção o que eu escrevi, teria verificado que não afirmei que defender «opiniões diversas daquelas que transitam neste espaço é “ter vocação de otário”». Afirmei que aqueles que se lançam na luta contra o sistema judiciário, penal e carcerário existente com o argumento de que todo o crime é crime político estão a defender uma estratégia que implicaria a aliança entre os movimentos sociais e o tráfico. E nessa aliança quem ganha é o tráfico. Por isso as pessoas que defendem essa estratégia têm vocação de otários.

    Esta não é uma questão teórica, que se resolva com modelos de superestruturas e infra-estruturas. Nem é uma questão jurídica, que se resolva com critérios de direito. É uma questão prática, cuja abordagem só pode ser facilitada pela análise dos exemplos históricos. E até agora as pessoas que defendem que todo o crime é um crime político não contestaram um único dos exemplos históricos que evoquei, que cobrem um século, e que se referem a casos muito importantes de mobilização dos criminosos comuns contra a classe trabalhadora organizada.

  13. Emerson,
    acredito que a sua pergunta mereceria ser reformulada: Em que medida se atrapalha a luta pela liberdade de José e ao João, que são presos provisórios, sem envolvimento com o crime organizado, por um delito feito sem violência / mão armada, quando dizemos que o caso de Hidekis e Sininhos é de outra natureza? (este de fato é o perfil de muitos que se encontram encarcerados hoje devido a lei de drogas de 2006).

    Ao que eu responderia: nada.
    Nada principalmente porque o grande problema do sistema penal e carcerário no Brasil hoje é que este PRODUZ o crime organizado, recruta e organiza essa força. Ou seja, na linha do que o João Bernardo tem defendido, o sistema penal é um dos principais fatores para a organização desta classe capitalista marginal, que faz a disputa nos bairros periféricos e poda o surgimento de outras manifestações de organização popular à esquerda.

    Oras, não importa se os presos são presos políticos ou não. Sejam eles comuns ou políticos, é urgente uma reforma neste sistema. Tanto para aquele preso por crimes de conduta quanto para aqueles presos por relações com o crime organizado, tanto para o estuprador quanto para o ladrão de galinhas.

    Mas a luta para libertar companheiros que estão presos por lutar, essa tem uma ordem tática imediata, inclusive para aliviar a pressão e a paranoia geral que uma prisão pode ter sobre o resto dos militantes ou simpatizantes que passarão a pensar 2 vezes antes de participar de um ato ou de reuniões com gente “perigosa”. O termo “preso político”, tão polêmico, costuma ser usado para ganhar o apoio de todos os demais setores opositores na sociedade, inclusive daqueles que não necessariamente compartilham a ideia de que “todo preso é um preso político”. Pois a extrema esquerda hoje no Brasil sem um mínimo de apoio destes outros setores não tem o menor poder de reverter quadros de perseguição “seletiva” dentro dos próprios movimentos que levantam as denuncias da perseguição “seletiva”.

  14. Creio ser mais acertado inverter a pergunta, Emerson: que benefício traz à defesa chamar manifestantes presos de presos políticos?

    Tenho uma hipótese: ao se abstrair do gênero preso a categoria “preso político”, faz-se, concretamente, uma crítica parcial ao sistema penal. Nessa defesa, ainda que não se queira, afirma-se que o sistema penal, no geral, funciona com neutralidade, a qual restaria rompida apenas quando manifestantes são criminalizados (e não à toa os mais faniquitos não tardam em alardear a “volta do Estado de Exceção” – expressão prima do tal “preso político”).

    O sistema lida bem com essa crítica parcial e, a depender da conjuntura, cede ao voto de piedade e liberta manifestantes – por sua própria sobrevivência/legitimação.

    O ônus dessa opção, no entanto, é exatamente essa (re)validação do sistema penal e, pior, o distanciamento que gera – na verdade, aprofunda – entre os perseguidos do dia-a-dia e os perseguidos ocasionais; distanciamento de classe e racial, diga-se [Rafael Vieira Braga que o diga – sem consciência de classe e com passagens anteriores pelo sistema, não estaria apto, segundo a concepção aqui defendida, para usufruir das benesses de ser um genuíno “preso político”…].

    Tal ônus é ainda mais grave se se tem em mente que, ao aceitar o jogo, estamos, indiretamente, contribuindo para realimentar a cobra que necessariamente nos picará logo à frente, nas próximas agitações, ocasião em que, novamente, desesperados, suplicaremos pela liberdade de “nossos presos políticos”…

  15. Sobre a necessária “aliança com o tráfico” que a consigna geraria, é a própria realidade que desmancha essa bobagem. A consigna, como já falei, não cria a realidade. Ela é expressão de uma prática de defesa de militantes presos pautada pela crítica total ao sistema penal e não de uma articulação “com o tráfico” (aliás, fala-se como a população prisional fosse o próprio tráfico, o que é bastante risível para que conhece a realidade dos cárceres).
    Assim como é possível se solidarizar e somar vozes e esforços pela liberdade de militantes de organizações políticas das quais se diverge – e isso é recorrente – sem que isso implique aliança política, também é possível se solidarizar com as centenas de milhares de jovens negras e negros que são perseguidos, encarcerados e exterminados sistematicamente sem que isso implique aliança com grupos/comunidades/seitas/organizações/etc aos quais tais pessoas eventualmente pertençam.

  16. João,

    Não se trata de agitar esse jovem na condição de traficante, seja contra a polícia ou contra o patrão do tráfico, tampouco por dentro do crime organizado. Nesse papel social, ele é instrumento de um joguete e distancia-se da atuação enquanto classe, obviamente.

    Agora, se formos adotar a consciência para si ou a existência de solidariedade como critério para o reconhecimento de que um dado agrupamento se constitui como classe (o que é plausível, desde que apliquemos o mesmo para todos os outros segmentos), então, no quadro de fragmentação que caracteriza o tempo que corre, nosso desafio precisa ser formulado num nível muito mais aquém: mobilizar qualquer setor, já nem falo de outros segmentos de classe que trabalham em atividades informais de outro tipo, que seja o dessa empresa hipotética em os mecanismos de mais-valia operam no modelo clássico.

    Frente a esse outro desafio, a luta contra os patrões do tráfico surge como algo mais ao alcance das mãos do que parece: a luta contra o proibicionismo das drogas, por exemplo.

  17. pessoas,
    não gostaria de me alongar muito, mas quero esclarecer alguns pontos que me parecem urgentes e importantes, mesmo pensando que a polêmica é um exercício de defesa de posições um tanto quanto estéril.
    A afirmação (não se trata de palavra de ordem) de que todo preso é um preso político não busca o nivelamento ou homogenização. Ao contrário, busca ressaltar as especificidades de cada situação problema que, esta sim, é generalizada na universalidade da lei dentro da categoria crime. Segundo a lógica do sistema penal, quem comete um denominado crime, o comete contra a sociedade e, em nome da defesa dela é punido. Assim, o artigo 155 do código penal designa furto, seja lá qual for e em que circunstâncias ele ocorra. Além disso, o encaminhamento de um crime ao sistema judiciário sequestra a vontade das pessoas diretamente envolvidas em um evento que poderia ser resolvido sem a necessidade de que uma medida punitiva. De maneira que o abolicionismo penal não é uma utopia, mas uma prática, uma atitude. A revolta contra as punições começa abolindo o castigo a partir de si, em suas relações. A punição é um modo de interação social que começa muito antes da prisão-prédio, o que também indica que há maneiras de desencarcerar já, mesmo dentro do atual sistema em que vivemos. A prisão esmaga um sujeito, e é preciso impedir que se adentre nesse circuíto de reiteração da ordem e formador da moral dos cidadãos.
    Em segundo lugar, muito do que expus no texto dirige-se ao punitivismo vingativo que habita os corações e mentes de muitos integrantes de movimentos sociais e de esquerda que acreditam num platonismo nomeado justiça. Assim, reiteram uma sociabilidade autoritária mesmo combatendo os atos que acreditam ser injustos. Eu não disse que o sistema penal é injusto, disse que ele deve ser abolido. A lógica do tribunal se esparge muito além das salas de justiça, está em quase todas as relações do mundo moderno, e isso é muito mais difícil de combater. Trata-se de uma questão política, muito mais que econômica. A lógica da punição e recompensa inicia-se desde a mais tenra idade, nas educação de crianças por pais e professores, e quando chegamos a idade adulta ela se encontra naturalizada, inscrita em nossos corpos.
    Quanto ao PCC, ele é um produto do sistema penal que reproduz e reitera sua lógica, compõe uma forma de controle das classes populares que foucault nomeou como regime dos ilegalismos. O PCC não é um estado paralelo, ele é uma empresa com métodos organizacionais extremamente autoritários e possui relações diretas e muito amistosas com o Estado, em todas as suas instâncias, e em especial nas capilares. O PCC é um agente de disciplinamento e controle do sistema carcerário que se expandiu para além dele. Quem tiver paciência e curiosidade, escrevi sobre isso no rescaldo das execuções de maio de 2006, segue o link: http://www.nu-sol.org/verve/pdf/Verve10.pdf
    maria, à vc quero me dirigir diretamente: sou contra o Estado e o capitalismo, precisamente por não ser um apologista da miséria, se o fosse teria me tornado franciscano. Como disse certa vez joãzinho trinta, “quem gosta de miséria é intelectual”, como eu não sou… Além disso, não padeço de ressentimentos, não faz bem para o fígado, e o meu já anda meio sobrecarregado por outros motivos.
    Objetivamente, e para finalizar, a liberação das drogas, as garantias negadas aos apenados sob prisões irregulares, o recuo do acossamento policial, a busca por resoluções no âmbito do direito e, sobretudo, a abolição das prisões para jovens, já seriam um belo avanço na derrubada do muro punitivo, e são questões totalmente exequíveis, sem a necessidade de grandes abalos, basta mirar na ampliação da liberdade.

    Bom, o objetivo, quando consultei o taiguara sobre a publicação do texto diante de minha fúria pela condenação de rafael, era abrir uma conversa, e salvo alguns ataques e polêmicas, parece que funcionou. Valeu pelo espaço.

    abraços

    saúde

    acácio

  18. Acácio,
    te parabenizo pelo texto, embora discorde dele, e te diria que ataques e polêmicas são etapas importantes de qualquer debate sério, eles vão pavimentando as opiniões mais bem formadas do futuro; se quisermos “proteger” nossas ideias contra ataques e polêmicas elas provavelmente nunca serão PUBLICADAS e os debates não avançariam nunca ou ficariam restritas às opiniões de facebook.

    tendo a concordar com todas as linhas do seu comentário, menos a que diz que “todo preso é um preso político”, e nos confunde ainda mais o porquê de uma consigna com sujeito e predicativo subjetivo obrigatório quando a intenção é “não buscar a homogenização”.
    Creio haver uma crítica mais dura a uma formulação de palavras (“preso político”) do que a uma estratégia libertária problemática.

  19. Para os comentadores que defendem a tese de que qualquer preso é um preso político, é o Estado que determina, de cima para baixo, unilateralmente, a condição de preso político dos presos. São estes os seus termos e é aí que se encontra o seu erro fundamental: é de uma política pública, querem nos fazer crer, resultante de decisões políticas voltadas para a “criminalização da pobreza”, sobretudo se o pobre é negro, que deriva o caráter político das prisões, mesmo que o Estado não ordene a prisão de um indivíduo por conta das motivações políticas deste indivíduo e mesmo que este indivíduo não tenha qualquer motivação política. Estes comentadores, portanto, tapam os olhos para a política como ela se dá de baixo para cima, o que ajuda a determinar o caráter político de uma prisão, enxergando-a, tão somente, como ela se dá de cima para baixo; parecem incapazes, pela estreiteza dos seus argumentos, de enxergá-la em sua totalidade, em ambas as direções. Trata-se, na verdade, fundamentalmente, de uma deficiência metodológica: não partem das partes para o todo e do todo para as partes, concentram-se numa das partes e sentem-se, aí, muito confortáveis. O máximo que se pode dizer é que as pessoas que têm conduzido o Estado têm decidido, aí sim, politicamente, de cima para baixo, pela resolução dos problemas da pobreza e da criminalidade pela via das operações policiais-militares, que vitimam e levam ao encarceramento de parcela considerável da população marginalizada que vive nas periferias. Mas a coisa tem que ser vista também de baixo para cima, pois esta população marginalizada, vitimada e encarcerada, tanto quem é preso sendo inocente quanto quem é preso sendo culpado (pois não vamos querer também inocentar qualquer um, certo?), não possui motivações tão políticas quanto as das pessoas que conduzem o Estado (e quem é inocente, na verdade, não possui, logicamente, motivação nenhuma, já que nada fez). A prisão política, por razões óbvias, só existe se, tanto de cima quanto de baixo, existem motivações políticas em jogo. Se nada disso é levado em conta, então não se está a levar em conta a totalidade e as forças sociais em conflito. Se deixamos isto de lado, na análise de questões políticas e sociais, que nos resta?

  20. Esta discussão me lembrou de um relato de uns presos políticos, que relataram a existência de um poder paralelo na prisão conduzido pelos próprios presos com mão de ferro. Qualquer falta sendo punida com castigos físicos (apanhar com três cabos de vassoura amarrados) e com a morte. Por exemplo, se um preso, no dia de visitas, olhar (isto mesmo, olhar) para a mulher de outro preso e este reclamar para o “comando”, o que olhou é morto a facadas (cada cela do bloco tem um líder que é obrigado a dar uma facada no preso que descumpriu as regras: com algumas dezenas de celas por bloco, dá para se ter uma ideia do resultado). Além do mais, o preso pode ser morto também se não pagar a “estadia” e, por aí, percebe-se que os criminosos dão o seu jeito para explorar a família do preso recém-chegado, que precisa mandar dinheiro para ele. Para quem considera todo preso como um preso político e, mais ainda, um preso político de esquerda, conhecer a realidade do poder paralelo estabelecido nos presídios pode ser interessante.

  21. lucas,
    obrigado por sua mensagem generosa e delicada. por essas e outras quis que o texto fosse publicado aqui, para suscitar conversas. quando disse que não aprecio a polêmica, não foi por desprezar a discordância ou diferença e mesmo a possível troca de pontos de vista, ao contrário, penso que nada avança pelo comum, mas sim por diferenciar. penso que a polêmica é o contrário disso, ela apenas reitera posições dogmaticamente defendidas, por ela não me interesso mesmo. penso um pouco como o paulo resende, precisamente citado por beto. seguimos e, espero, avancemos.

    todos,
    lutar contra o sistema penal não é mobilizar presos, romantizar o banditismo ou buscar um potencial revolucionário na marginalidade. mesmo porque a revolta me interessa mais que a revolução, mais ou menos como colocara camus, em 1951. essa luta quer sabotar a máquina que produz histórias horríveis como esta relatada por “militante perplexo”, conheço uma dezena delas, inclusive com pessoas queridas, que não eram nada revoltadas, apenas buscavam sobreviver.

    e, por fim, para mim não se trata mesmo de englobar a totalidade, eu gosto das lutas locais, táticas (sem submetê-las à estratégia), pontuais, em uma palavra: anárquicas. nelas há uma urgência que não pode esperar por utopias. no caso específico, me parece que acabar com a fundação casa e a prisão para jovens, desencarcerar o maior número de pessoas (mesmo nos marcos legais do atual regime) e desjudicializar as lutas cada vez mais absorvida pela conquista de direitos inexequíveis, são lutas urgentes e possíveis hoje. mal comparado, quase como foi possível barra o aumento da tarifa (para usar um exemplo da moda). como disse, me interessa abolir o sistema penal, utopia é achar que não se pode viver sem ele.

    mas enfim, posso estar equivocado, nunca rejeito essa possibilidade. mesmo sabendo que não faço papel de otário, não durmo de toca, não beijo mão de madame e tento nadar de costa como o jacaré em rio de piranha.

    é isso. valeu mesmo pelo espaço. a conversa tem sido muito esclarecedora para mim, com ou sem polêmica.

    abraço a todos, que sigam fortes e corajoso com o passa palavra e que outras dessas venham adiante

    acácio

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