Por Mehmet Dogan entrevistado por Pátria Grande

Entrevistamos[*] Mehmet Dogan, jornalista, documentarista e antropólogo curdo, que nos explica a história de luta do povo curdo, a atualidade e a relevância que tem esse povo nos conflitos do Oriente Médio; uma população de 40 milhões de pessoas, as quais os países imperialistas nunca permitiram que escolhessem seu próprio destino. Por isso os curdos vivem divididos entre a Turquia, a Síria, o Irã e o Iraque, num território cujo tamanho se aproxima ao da Espanha, porém situado em uma posição geoestratégica crucial, onde se encontram importantes reservas de petróleo, gás e outros recursos minerais.

Pátria Grande (PG): Qual é sua análise sobre a situação atual do Oriente Médio?

Mehmet Dogan (MD): Há dois conflitos centrais no Oriente Médio: o da Palestina e o do Curdistão. O conflito palestino é bastante conhecido, bem como as causas e forças que estão envolvidas. Porém agora, nos últimos tempos, estando o Hamas à frente do processo de resistência, tendo ganhado a disputa política na OLP [Organização para Libertação da Palestina], atrevo-me a dizer que não há um processo revolucionário na Palestina. Há uma luta por independência, porém independência não é sinônimo de revolução. Obviamente, os palestinos têm seu direito a lutar por sua independência e autodeterminação. Conheço muitos companheiros curdos que morreram ao lado dos palestinos nos anos 1980, porém não podemos mesclar ou cair em uma confusão. O conflito entre Israel e os palestinos não tem de fundo um processo revolucionário que possa mudar completamente a realidade do Oriente Médio. Por isso, o centro da revolução não está na Palestina. O centro da revolução do Oriente Médio está na Síria, está no Iraque e, sobretudo, na Turquia.

kobani_1Nos anos 1960 e 1970 havia uma juventude combativa no mundo inteiro, quando havia lutas de libertação em todos os cantos do planeta. Nessa época existiu uma luta muito interessante na Turquia. A esquerda turca e o povo curdo em geral, em muito pouco tempo, conquistaram muito terreno e inclusive estiveram próximos de libertar o país. Durante os anos 1970 e 1980, nas mesmas décadas que na Argentina, houve regimes ditatoriais. Na Turquia, o imperialismo controlava o Estado através do exército turco, que – vale a pena dizer – é a segunda maior força da OTAN, obviamente depois do exército ianque. O movimento revolucionário, a esquerda revolucionária turca e o povo curdo foram vítimas de uma repressão brutal. Em 1980 se operou um golpe de Estado e em apenas 3 meses houve um pouco menos de 600 mil presos. Há ainda 20.000 desaparecidos à força, e hoje em dia temos 12.000 presos políticos.

Esse movimento que nasceu na Turquia tem um programa a favor dos povos, a favor das classes populares, contra o sistema neoliberal e, inclusive, um programa ecológico também. Podemos dizer que é uma ideologia socialista comunitária. No início da década de 2000, a direção do PKK, que em castelhano [e português] significa Partido dos Trabalhadores do Curdistão, criou uma frente ampla chamada União de Comunidades do Curdistão (KCK). Essa união de comunidades está unindo outros partidos curdos do Iraque e da Síria. Há mais de 400 movimentos sociais que estão participando dessa frente ampla. Movimentos de mulheres, antes de tudo, movimentos de juventude, operários e camponeses fazem parte do PKK.

Essa frente desenvolveu uma nova ideologia que se chama confederalismo democrático. As bases dessa ideologia aparecem durante 1998, momento em que o PKK se transformou de um partido clássico marxista-leninista em um partido socialista mais comunitário, que se transformou de um partido independentista em um partido confederado. Essa transformação implica uma crítica profunda ao Estado nacional capitalista. Para nós, criar um estado nacional, independente, curdo, hoje em dia, não serve ao benefício do povo curdo e de outros povos oprimidos, mas serve aos interesses do Império, que quer dividir esta região em pequenos Estados. De fato, seria continuar com a política que teve o Império para esta região. Os franceses, britânicos e gringos dividiram toda a região com o critério de “uma família, um Estado”, como se pode ver por exemplo nos casos do Qatar e do Yêmen. O objetivo, obviamente, consistia em dividir o Oriente Médio para poder controlá-lo mais facilmente. Não há nenhum argumento antropológico, sociológico ou político que possa legitimar a divisão geopolítica atual do Oriente Médio. Por isso que a União de Comunidades do Curdistão tem uma postura muito crítica a respeito de se criar uma nova divisão, um novo Estado curdo. O Estado-Nação capitalista é um Estado que legitima a dominação em três sentidos: em primeira instância, permite que uma classe explore às classes populares; em segunda instância, através do machismo; e, por último, temos a dominação sobre a natureza. A mãe-natureza é a vítima desse sistema de superprodução e consumismo. Então, analisando esses três pontos, os companheiros da União de Comunidades do Curdistão chegaram a algumas conclusões muito interessantes. O confederalismo democrático prevê não somente a autodeterminação dos povos curdos, turcos, armênios, árabes e persas, como também aposta em construir uma nova maneira de organização comunitária a partir de uma base em que todos possamos viver em harmonia com a natureza, onde homens e mulheres sejam realmente iguais.

Com o confederalismo democrático, a luta ganhou rapidamente a simpatia diante de todo povo curdo, mas também de outros povos. Antes, obviamente, as organizações já tinham muitíssima relevância, porém chegaram a outro nível de massividade através dessa nova ideologia. Em 1984 não havia outra maneira de lutar senão através da luta armada porque havia uma ditadura na Turquia, e no Iraque tínhamos Sadam Husseim. A luta armada ganhava rapidamente simpatia, e em 1988 a guerrilha do PKK tinha 8.000 guerrilheiros. E, paralelamente, os companheiros começaram a participar e impulsionar as lutas democráticas, inicialmente graças à luta das mães dos desaparecidos e dos presos políticos. Como se darão conta, é muito similar ao que se passou na Argentina. Logo surgiram novos movimentos políticos e sociais, que nasceram primeiro na Turquia, porém não se limitaram a ela justamente porque nós, curdos, também vivemos na Síria, Iraque, sob as fronteiras arbitrárias que nos impuseram. Pouco a pouco, as organizações nacionalistas curdas desses diferentes países foram levantando a bandeira do confederalismo democrático. Produziu-se uma transformação ideológica muito importante. Essa transformação foi, por si, uma revolução. Essas mudanças são muito visíveis. Na Turquia, faz umas semanas, houve eleições. Os companheiros participaram das eleições e conquistaram quase 10% dos votos, obtendo 36 deputados na Assembleia Nacional, e mais de 100 prefeituras. Se vocês viajarem por ali, verão o que é uma prefeitura socialista comunitária. A partir de questões bem concretas: por exemplo, todas as organizações que pertencem à União de Comunidades do Curdistão se regem pelo princípio da co-presidência. O que quer dizer co-presidência? Uma co-presidência é uma presidência compartilhada por uma mulher e um homem. Suponhamos que um pequeno povoado onde há 50 habitantes e existe uma associação de cinema, da qual participam 10 pessoas. Para que essa associação possa ser membro da União de Comunidades do Curdistão, a associação de cinema tem que aceitar o princípio de co-alcaídes e designar uma mulher e um homem como co-presidência. Dessa maneira, as mulheres começam a tomar um poder extraordinário. Desde os anos 1980 as mulheres já começaram a se organizar em brigadas especiais de mulheres, não somente para a luta armada, mas atuando em toda sociedade em geral. Porém agora a participação da mulher voltou a ocupar um lugar-chave. Agora nas prefeituras da Turquia não temos um prefeito, e sim dois co-prefeitos, um prefeito e uma prefeita. Isso muda dramaticamente a cabeça feudal e escravista do Oriente Médio. Foi uma revolução poder imaginar e implementar organizações, prefeituras, comunas, assembleias populares onde a mulher é dirigente.

Bs8Bok5CQAAvU0UPor outro lado, em cada prefeitura, ou comuna, ou bairro, controlado por este movimento se organizam assembleias populares comunais. Não esperamos a transformação do Estado. Esta ideologia, este programa não diz “vamos fazer a revolução proletária, vamos tomar o controle do Estado”. Não vamos esperar que isso ocorra, vamos nos organizar onde estivermos para transformar a vida. Nesse sentido, tudo o que ocorreu depois de 2001 na Argentina é para nós muito interessante: assembleias populares, piqueteros, empresas recuperadas por trabalhadores, todas essas para nós foram experiências muito importantes. Aprendemos muito com isso e estamos aplicando onde temos controle do território.

Por isso tudo, creio que esse conflito é mais interessante porque pode transformar-se em uma revolução e pode mudar a sociedade em todos os sentidos. Vou tentar ilustrá-lo com outro exemplo: os curdos que controlam a parte norte da Síria e do Curdistão ocidental com mais de 70.000 guerrilheiros (a maioria são mulheres) estão aplicando este modelo de confederalismo democrático de forma muito concreta. Há uma cidade na Síria que tem 100.000 habitantes, onde há, digamos, 10.000 árabes, 10.000 armênios, 5.000 assírios, não me recordo quantos cristão e muitos membros de outras etnias. Nessa cidade-comuna, que eles agora chamam de cantões, desde 2010, a assembleia popular se forma não somente pela porcentagem da população de etnia curda, mas sim por dois representantes do armênios, dois representantes dos árabes, dois representantes do curdos. Os curdos são a maioria da população da cidade, porém não da prefeitura.

Então, com dois representantes – um homem e uma mulher – de cada etnia, a população decide, através de uma forma organizativa muito direta, a política social, econômica e ecológica da cidade. Essa é uma experiência muito importante. As decisões não se tomam por maioria, devem se dar por unanimidade. “Maioria” quer dizer apenas que 51% decidem sobre 49%, porém isso nem sempre implica que a decisão seja correta. Então esse processo de consenso na tomada de decisões permite que se produza uma discussão muito forte entre as pessoas, entre homens e mulheres, entre organizações, e gera uma dinâmica de formação política extraordinária. Obviamente isso obriga que haja discussões muito profundas. O processo em si vem sendo uma vitória por si próprio. Levando em conta todos esses aspectos, creio que nesse conflito do Oriente Médio haja uma luta muito interessante e que pode transformar toda região. A princípio, no mundo atual não se pode esperar transformações em apenas 5 ou 10 anos, porém insisto que segue sendo muito importante o que já se conseguiu.

PG: Você acha que o governo dos Estados Unidos pode chegar a tirar o PKK da lista de organizações terroristas agora que a guerrilha se voltou centralmente para a luta contra o Estado Islâmico?

MD: Agora há uma campanha dos amigos do PKK na Europa e nos Estados Unidos para demonstrar que a lista de organizações terroristas é ridícula. Nos Estados Unidos, chegamos a várias dezenas de milhares de assinaturas. Com essa campanha temos dois objetivos. Que nos tirem agora da lista porque lutamos contra a Al Qaeda, e a CNN não pode dizer o contrário. O PKK nunca realizou ataques sobre organizações civis, nem econômicas, somente contra guarnições ou estruturas militares. Na Europa, setores relevantes da população sabem que o PKK defende o povo, que não é uma organização terrorista. Agora estamos propagandeando nossas ideias para que o povo dos Estados Unidos as conheça e saiba que não somos terroristas. Seu governo só vai tirar o PKK da lista por pressão do seu próprio povo.

kobane-turkeySabem como o PKK entrou na lista de organizações terroristas? Em 2004, o PKK decidiu realizar um cessar-fogo unilateral. Pouco depois, Felipe González (primeiro-ministro social-democrata da Espanha), em uma reunião da União Europeia propôs incluir o PKK na lista porque o confederalismo democrático que ele propunha os assustava, bem como o cessar-fogo, já que facilitava o crescimento político da organização, e pelo nível de massividade que podia adquirir. Com a pressão dos Estados Unidos, entrou naquela lista.

PG: O Estado Islâmico conseguiu crescer e controlar um grande território em muito pouco tempo. O que pode nos contar sobre essa organização?

MD: A organização do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, que é um desenvolvimento da Al Qaeda, não tem apoio da população desta região, nem sequer os sunitas apoiam essa organização. São mercenários que geram medo, ocupando lugares e matando todos que controlam o território. A população obviamente, e com razão, tem medo e não pode fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta os povos, não somente do império mas de todo o Estado Islâmico. Através dessa luta podemos mostrar ao mundo inteiro que os islamistas da Al Qaeda e o imperialismo estão juntos. O imperialismo apoiou e apoia de maneira direta a Al Qaeda/Estado Islâmico, porque querem desestabilizar a região. Querem poder dizer: “olhem, fizemos uma intevenção em 2003 contra Sadam Husseim para libertar e exportar uma democracia estado-unidense para lá, mas não funcionou”. Eles mesmos provocaram o conflito entra sunitas e xiitas, duas ramficações do Islã, e agora dizem “vejam, os bárbaros não entendem a democracia, se matam entre si, precisam de nós”. Para legitimar, assim, uma intervenção e presença permanente na região, jogam com a Al Qaeda/Estado Islâmico.

Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que têm nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros pobres de Paris, de Marselles, de Londres ou de Berlim. Trouxeram essa força reacionária contra nós, contra todos os povos desta região. Claro que agora estão vendendo armas aos Estados que têm que matar essa organização islamita. Acabam de vender armas ao Estado autônomo curdo do Iraque por 4 milhões de Euros para que lutem contra o Estado Islâmico. Acabam de vender não sei quantas centenas de mísseis a Bagdá. Porém, desta vez, o imperialismo permitiu de forma direta aos islamitas roubarem as armas no Iraque. Inclusive ofereceram mais de 100 tanques de última tecnologia. Os gringos há umas semanas saíram dessa cidade e deixaram absolutamente todo o equipamento militar. Qualquer comandante militar, quando se retira, se deixa uma estrutura militar, destrói-na ou quebra imediatamente para que o inimigo não possa usá-la. Bom, os gringos deixaram tudo servido de bandeja. Esses equipamentos agora estão sendo manejados pelos islamitas do Estado Islâmico.

O Império tem um plano para esta região. Os Estados imperialistas acreditam que podem sair da crise econômica a que estão submetidos não com uma guerra, como dizia Lênin, mas com conflitos regionais: África do Norte, Oriente Médio e, por que não, amanhã poderia ser entre o Paquistão e a Índia. E, claro, logo após a destruição: quem reconstrói tudo? Suas empresas multinacionais. O que ocorreu na Iugoslávia está ocorrendo nas nossas regiões, e por isso digo que querem balcanizar a região. A única força que pode apresentar um obstáculo a esse plano é o PKK, uma verdadeira força democrática e revolucionária.

PG: Em 2013 o PKK se retirou da Turquia. Nos últimos tempos voltou a ter presença em território turco?

MD: Em 2009, havia um processo de negociação entre o PKK e o governo turco. Em 2010, se rompeu essa negociação depois de mais de mil idas e vindas. O governo turco oficialmente queria conseguir a paz, igual o governo da Colômbia busca fazer com as FARC. Em 2012, começa um novo processo de negociação. Em 21 de março de 2013, Abdullah Öcalan, que era presidente do PKK, aceita novas negociações. A ideia do PKK era de não continuar com a luta armada e garantir um mínimo de democracia. Durante as negociações, o estado turco aceita que sim, o PKK se retira da Turquia e começa um processo de paz. Porém, igual na Colômbia, o governo tira e enrola, dá voltas. Na verdade, só 30% das forças saíram da Turquia. O PKK está na Turquia porém não suas atividades não continuam, atividades que consistiam em realizar ataques armados contra centros militares. A Turquia queria jogar com o PKK dizendo “bem, vamos acalmar o PKK” e atacar mais na Síria.

Graças a esse processo, o PKK mostrou sua vontade de paz e ganhou até uns 10% dos votos. Porém, de concreto, não aconteceu nada, e novos pequenos enfrentamentos vão acontecendo. A Turquia tirou seus militares da região do Curdistão porque pensavam que poderiam fazer uma intervenção na Síria, porém não puderam porque ali também está o PKK. Não fazem ações militares esperando o processo de paz: é como na Colômbia, é como o cessar-fogo. Não é o abandono da luta armada, é uma estratégia para mostrar a vontade de fazer a paz.

PG: Há alguma novidade sobre a investigação das três companheiras do PKK que foram assassinadas no início de 2013 em Paris?

140906161453_franca_ei_624x351_afp_nocreditMD: Existem todas as provas de que o assassinato só pode ter sido obra do serviço secreto turco junto com o serviço francês, belga e alemão. Já temos escutas telefônicas que o demonstram. A França vem realizando investimentos de 20 milhões de euros em centros nucleares junto à Turquia. Para a França, a Turquia é uma potência econômica com a qual convém ter uma boa relação. Por isso, negociam coisas com esses assassinatos. Mataram as três companheiras no Centro de Informação do Curdistão de Paris. Eu trabalhei nesse centro e o conheço muito bem. Há câmeras do serviço secreto francês para observar tudo e é impossível que não tenham gravações dos assassinos. Houve uma mobilização muito importante agora para denunciar a colaboração entre os serviços secretos e a relação franco-turca. Que isso tenha sido feito em pleno processo de paz foi uma clara provocação contra o PKK para que este voltasse a combater, para iniciar uma guerra.

PG: Você mencionou, antes, o resultado das eleições que participaram na Turquia. Como avalia o desempenho eleitoral do Partido Democrático do Povo (HDP)?

MD: É uma vitória muito importante porque pode crescer ainda mais rapidamente. O Partido Democrático do Povo é uma aliança progressista de curdos, armênios, turcos e de todas as nacionalidades presentes na Turquia. Há mais de 600 movimentos sociais que participam desse partido. Sua construção conseguiu vencer obstáculos de comunicação. Construiu-se junto aos irmãos turcos e isso nos serviu para chegar aos jovens turcos, ao centro da Turquia, algo que antes era impensado. Esse partido é muito afinado à luta dos curdos porque a maioria dos seus membros são curdos, porém ao mesmo tempo é um partido pela democracia de todos os povos turcos. No partido participam intelectuais, dirigentes sindicais e movimentos estudantis. Todas as organizações que o compõe participaram da ocupação da Praça Taksim. Está claro que nos próximos anos vamos observar um desenvolvimento interessante nesse sentido.

[*]Esta entrevista foi feita pelo site argentino Pátria Grande e traduzida do original espanhol pelo Passa Palavra.

12 COMENTÁRIOS

  1. “A população obviamente, e com razão, tem medo e não pode fazer nada. A única força que poderia liderar a iniciativa contra essa perigosa ameaça é o PKK. O PKK resiste e liberta os povos, não somente do império mas de todo o Estado Islâmico.”

    “Quase 85% dos mercenários da Al Qaeda são jovens que têm nacionalidade francesa, alemã ou britânica. Não vêm de países árabes, não vêm do norte da África. São estrangeiros, são jovens dos bairros pobres de Paris, de Marselles, de Londres ou de Berlim.”

    “A única força que pode apresentar um obstáculo a esse plano é o PKK, uma verdadeira força democrática e revolucionária.”

    Sei não… talvez a aparência do discurso não revele por inteiro sua essência… Como bem nos lembra o João Bernardo: “A arqueologia do saber faz-se olhando para a parte de baixo das páginas, para as notas de rodapé, e também entre as linhas, destacando o que é afirmado no corpo do texto e esquecido nas conclusões” (Labirintos do Fascismo – pag.8)…

  2. Compartilho tua inquietação, Beto.
    A citação de João Bernardo(*) – com revérbero de Foucault – aplicada ao texto, dá o que pensar.
    Pátria Grande? Sem essa, Aranha!
    (*) Nosso caro JB anda meio sumido…

  3. “uma autêntica revolução social se produziu, o que levou a cidades inteiras em autogestão democrática, indústrias sob o controle dos trabalhadores, e o fortalecimento radical das mulheres. —- Os revolucionários espanhóis esperavam criar uma visão de uma sociedade livre que todo o mundo pudesse seguir” (http://www.ainfos.ca/pt/ainfos06600.html).

    Penso eu, e posso estar enganado, mas “mil diferenças entre o que ocorreu na Espanha em 1936 e o que está acontecendo em Rojava” (http://www.ainfos.ca/pt/ainfos06600.html)já deixa claro (nas entrelinhas…) que são processos históricos, políticos e sociais completamente distintos. Ora, a revolução espanhola teve alguns pilares fundamentais, como a abolição da propriedade privada, a autogestão plena e total dos meios de produção, o fim absoluto do estado, e, note-se bem, a expulsão e destruição da igreja! Tudo em nome DO POVO e PELO POVO! Agora, repitamos o que o entrevistado diz na presente reportagem: “A POPULAÇÃO OBVIAMENTE, E COM RAZÃO, TEM MEDO E NÃO PODE FAZER NADA! O povo não pode fazer nada! São palavras do texto, não minhas, e onde isso se assemelha à Revolução Espanhola? Em minha opinião, isso afronta a história e, principalmente, à memória daqueles revolucionários que tombaram lutando pelos ideais anarquistas e socialistas…

    Se no exemplo curdo houver algum verdadeiro exemplo de “autogestão democrática, indústrias sob o controle dos trabalhadores, e o fortalecimento radical das mulheres”(http://www.ainfos.ca/pt/ainfos06600.html) retiro o que eu disse e peço desculpas, mas até o momento não tive conhecimento de tais exemplos, só consigo ver um perigoso nacionalismo de esquerda tão vastamente alertado aqui neste site…

    Abraços fraternais,

    Beto

  4. Beto, mas e se o dia em que a notícia exemplar chegar a você, para tua solidariedade já for tarde demais?
    Como equacionar um critério de verdade revolucionária tomando em conta as demandas de ação, de tempo oportuno?
    Eles não estão em uma assembleia, estão em zona de guerra (bombardeados pelos dois lados! em algo semelhante à guerra espanhola…)

  5. EREWHON X HERE, THERE & EVERYWHERE: NOWHERE

    Pasárgada não é lá ou aqui, nem em qualquer lugar.
    Aqui, lá & qualquer lugar: nenhum lugar = UTOPIA.
    Viva, em vice-dicção, o Anagrama!

  6. Caro Lucas,

    mais uma vez as questões que você levanta são muito pertinentes, e, mais uma vez, não tenho as respostas para lhe dar. Mas minha intervenção foi, desde já, levantar as contradições que existem no próprio discurso de Mehmet Dogan. Ora, se ele mesmo diz que “A POPULAÇÃO OBVIAMENTE, E COM RAZÃO, TEM MEDO E NÃO PODE FAZER NADA e que A ÚNICA FORÇA QUE PODE APRESENTAR UM OBSTÁCULO A ESSE PLANO É O PKK, UMA VERDADEIRA FORÇA DEMOCRÁTICA E REVOLUCIONÁRIA, ele mesmo afirma que o povo é um ator passivo e exterior ao processo revolucionário. Diz ainda que só e tão somente só o partido tem e detém o poder revolucionário e, mesmo o povo como uma figura passiva neste processo, ainda se auto-denomina de democrático…

    Por isso, Lucas, embora eu possa estar enganado, pode estar residindo aí o gérmen de algo mais voltado ao nacionalismo fascista (como bem nos lembram os diversos artigos publicados neste site a esse respeito), do que propriamente uma revolução de caráter popular.

    Agora, estou perfeitamente de acordo com você quando diz “Eles não estão em uma assembleia, estão em zona de guerra (bombardeados pelos dois lados! em algo semelhante à guerra espanhola…)”. Um exemplo, ao meu ver, apesar de todas as ressalvas possíveis e necessárias, foram as chamadas jornadas de junho de 2013. Ali (talvez) houvesse o gérmen revolucionário que tanto buscamos (embora aqui neste mesmo site artigos em contrário tenham sido publicados), mas, relembrando João Bernardo: Os trabalhadores hoje lutam de uma dada maneira contra o perfil actual do capitalismo e, consoante o resultado desta luta, o capitalismo apresentará amanhã um perfil diferente, contra o qual os trabalhadores hão-de lutar de outra forma, e assim sucessivamente. Portanto, o comunismo que pudéssemos construir hoje seria forçosamente diferente daquele que poderíamos construir amanhã, e este do que poderíamos construir no dia seguinte” (http://passapalavra.info/2014/05/93844#comments).

    Abraços fraternais,

    Beto.

  7. EREWHON X HERE, THERE & EVERYWHERE: NOWHERE

    Pasárgada não é lá, aqui ou qualquer lugar.
    Aqui, lá & qualquer lugar: nenhum lugar = UTOPIA.
    Viva, em vice-dicção, o Anagrama!

  8. DIALÉTICA MATERIALISTA
    A luta ocorre num terreno de classe – proletariado versus capital – e a revolução social é possível.
    O conflito é entre nações, etnias etc. – frações do capital – e o proletariado, vencido, sofre a contrarrevolução.
    Concretamente: o proletariado é capaz de transformar a guerra imperialista em guerra civil (como na Rússia, antes de Kronstadt), ou, inversamente, não é capaz de impedir a transformação da guerra civil em guerra imperialista (como na Espanha, após ter sido derrotado, em 1937)?

  9. Caro Ulisses,

    Você, cirurgicamente, alcançou o ponto nevrálgico da questão: a luta de classes. É somente a partir dela que se pode compreender a realidade que nos rodeia. A partir de qualquer outro ponto, ela se torna míope, deficitária, incompleta, quando não, um grande erro. Não importa se os “cantões”, sejam eles curdos ou suíços, por mais democráticos que (aparentemente) sejam, pareçam sinalizar outra coisa. O que vale é a luta e a divisão de classe que estão em jogo.

    É por isso que um partido revolucionário muitas vezes ao invés de fortalecer a emancipação da classe trabalhadora, acaba por distanciá-la deste objetivo, conforme o texto do Sam Moss que você bem indicou: “No desenvolvimento do capitalismo, as organizações revolucionárias, pequenas e impotentes, zumbindo em volta das massas, nada fizeram para alterar o curso da história, para o bem ou mal. Seus ocasionais períodos de atividade se explicam pela temporária ou permanente renúncia aos objetivos revolucionários para se unirem aos operários em torno de exigências imediatas. Então, não foi o papel revolucionário que desempenharam, mas o papel conservador das massas. Quando os operários atingem seus objetivos, os grupos radicais retornam à impotência. Seu papel foi sempre acessório, nunca decisivo” (http://www.reocities.com/autonomiabvr/moss.html)

    No caso do presente artigo, a questão é ainda mais delicada, pois o PKK se coloca acima das massas. Avoca para si a condição heroíca revolucionária à margem da população. O que isso te lembra?

    Abraço fraternais,

    Beto.

    PS: embora o PKK invoque uma luta em nome da população, isto não significa que a população não participe, ao contrário, este partido (ou qualquer outro) só pode ter alguma expressão a partir do momento que há algum envolvimento popular, mas o problema está justamente em tornar no discurso este fundamental apoio popular em algo secundário. As chamadas jornadas de junho de 2013 também são um bom exemplo de lutas onde os partidos ditos revolucionários, embora não tenham tido participado da origem do movimento, ao final dele (tal qual a direita) se avocou como “pai da criança”…

  10. Caminante no hay camino

    Caminante, son tus huellas
    el camino y nada más;
    Caminante, no hay camino,
    se hace camino al andar.
    Al andar se hace el camino,
    y al volver la vista atrás
    se ve la senda que nunca
    se ha de volver a pisar.
    Caminante no hay camino
    sino estelas en la mar.

    Antonio Machado

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