A classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria. Por João Bernardo
IV
18.
A maior parte do que agora se denomina esquerda alheou-se do combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja, como sistema de relações sociais de trabalho. No entanto, seria este o único sentido do anticapitalismo. A esquerda que não pretenda transformar radicalmente as relações sociais de trabalho limita-se a ser uma das correntes políticas do capitalismo.
A maioria da esquerda actual só se preocupa com o trabalho quando ele não existe. Quero dizer que essa esquerda se inquieta justificadamente com o desemprego e o part-time; mas, injustificadamente, parece esquecer que o assalariamento é o motor da acumulação de capital. É a esquerda do conformismo e não da ruptura. O emprego não é a solução para o desemprego. Só a liquidação do capitalismo poderá solucionar tanto o desemprego como este emprego.
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Para a maior parte do que agora se denomina esquerda o combate ao capitalismo foi substituído por uma crítica parcial, que põe apenas em causa o sistema financeiro, considerado improdutivo, no sentido de economicamente inútil e, portanto, gerador de lucros injustificados e necessariamente especulativos. Aliás, a noção de que haveria um «capital produtivo», com raízes nacionais, oposto a um «capital especulativo», de carácter internacional, surgiu originariamente nos meios da extrema-direita europeia nos primeiros anos do século XX e tornou-se um dos elementos constitutivos da ideologia fascista precisamente em virtude do carácter nacionalista que lhe está subjacente. A redução do anticapitalismo ao ataque ao sistema financeiro situa perigosamente a maioria da esquerda actual numa linhagem que atravessa o fascismo.
Este tipo de noções é improcedente porque o capitalismo, desde a sua génese, não funciona sem o crédito, que constitui um factor tão indispensável como qualquer outro para o crescimento da economia. O crédito contribui para articular espaços, fornecendo os capitais acumulados num lugar aos empreendimentos que só assim poderão nascer noutros lugares, e para articular tempos, adiantando capitais acumulados agora tendo em vista a ampliação da actividade económica no futuro ou antecipando lucros futuros para ampliar agora a actividade económica. E como o capitalismo, contrariamente a todos os modos de produção anteriores, é dinâmico e não estático, só através do crédito ele se desenvolve e o faz de maneira integrada. Aqueles ataques têm como alvo um sistema financeiro imaginário, não correspondente ao sistema financeiro real, que tem outras funções e obedece a outros mecanismos. São críticas que mais parecem dever-se a nostálgicos do mercantilismo.
A noção de que o capitalismo poderia funcionar, e funcionar melhor, sem o sistema financeiro é de tal modo incompatível com a análise histórica e com a teoria económica que os motivos para a sua divulgação devem ser procurados noutro plano. Com efeito, apesar de o capitalismo se ter internacionalizado e depois transnacionalizado, um grande número de empresas funciona em âmbitos nacionais, eventualmente como subcontratantes de companhias transnacionais. No sistema financeiro actual, porém, todos os empreendimentos são directamente supranacionais. Assim, a concentração das críticas no sector financeiro é uma das expressões ideológicas do nacionalismo. Ao apresentar como único inimigo as operações mais globalizadas do capital, a maior parte da esquerda está a promover a diluição dos interesses dos trabalhadores de cada país nos anseios dos pequenos e médios patrões desses países. E assim se legitima o fundamento do capitalismo, que consiste nas relações sociais de trabalho vigentes em todas as empresas, qualquer que seja a sua dimensão e sejam elas agrícolas, industriais ou de serviços, incluindo os serviços financeiros. Empresas operantes num quadro nacional podem sentir-se em contradição com o sistema financeiro operante no âmbito supranacional, mas para os trabalhadores, onde quer que laborem, qualquer contradição que não os oponha globalmente a todas as formas de capital só pode ser uma variante da falsa consciência, que neste caso é a inconsciência de uma conciliação entre classes.
20.
A ocorrência de graves perturbações na regulação do sistema financeiro foi interpretada pela esquerda como uma crise do capitalismo, quando o que desde há mais tempo se vem a verificar é uma crise no interior do capitalismo, em que os antigos centros entraram em declínio enquanto surgiu um conjunto de novos centros. A reestruturação pós-fordista das relações de produção, geralmente denominada toyotismo, incluindo a flexibilidade suplementar garantida pela subcontratação de fases da cadeia produtiva e a flexibilização das relações de trabalho, marcou o início de um novo ciclo do processo de extorsão de mais-valia e uma etapa superior na acumulação do capital. Nada disto indica uma crise do capitalismo mas, pelo contrário, uma crise da capacidade de resistência dos trabalhadores.
21.
Na clássica dicotomia socialismo ou barbárie, o socialismo não se confronta só com a barbárie do capitalismo. Confronta-se igualmente com a ameaça de barbárie proveniente daquela esquerda ecologista que, pretendendo ultrapassar o capitalismo ou fundar microcosmos paralelos, se propõe restaurar formas sociais e níveis de produtividade pré-capitalistas. Essa esquerda da barbárie acusa a classe trabalhadora de estar integrada no capitalismo, de aceitar a integração e já não desempenhar nenhum papel histórico revolucionário. O que se passa, no entanto, é que a classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria. As lutas da classe trabalhadora, tal como têm existido até hoje, são o único obstáculo à fusão daquelas duas barbáries, a barbárie constituída pelo capitalismo e a barbárie promovida pela esquerda ecologista.
Enquanto lutarem, os trabalhadores exercerão pressões para trabalhar menos e ganhar mais, com o duplo efeito de, por um lado, estimular a produtividade dos meios técnicos existentes e a criação de novos meios técnicos mais produtivos e, por outro lado, aumentar a abundância e a diversidade do consumo. Será necessária a imposição de uma ditadura económica de mais-valia absoluta, sustentada política e ideologicamente pelos ecologistas, para pôr termo às lutas pela redução do tempo de trabalho e pelo aumento da remuneração. Mas neste caso o capitalismo tenderá a ser substituído por um novo modo de produção, afim daquele escravismo de Estado que os SS implantaram nos territórios eslavos ocupados durante a segunda guerra mundial e que os Khmers Vermelhos instauraram no Cambodja na segunda metade da década de 1970. Seria esta a barbárie de um modo de produção pós-capitalista.
22.
É especialmente perverso o argumento de que, tendo o capitalismo atingido um alto grau de produtividade e conseguindo caminhar rumo à abundância, uma crítica radical implicaria a recusa de qualquer tecnologia que sustente a produtividade e a abundância.
Decerto a tecnologia é uma materialização de relações sociais, pelo que a liquidação do capitalismo implicará obrigatoriamente uma nova tecnologia. A classe trabalhadora é dotada de uma estrutura social e de formas de organização interna que podem ir desde as silenciosas até às explícitas, e estas formas, no seu desenvolvimento, imporão uma nova tecnologia. Não se trata aqui apenas de um futuro distante mas já do presente, porque as lutas práticas contra o capitalismo, além da sua expressão social, têm igualmente uma expressão técnica material. A sabotagem individual, uma das formas mais antigas e disseminadas de luta pela redução dos ritmos de trabalho, implica a tal ponto a criação de novas técnicas que a própria palavra vem do termo francês sabot, o tamanco de madeira que o operário, como que acidentalmente, deixava cair nas engrenagens, também de madeira, para as travar. Até a mera preguiça não se exerce sem técnicas que suspendam ou pelo menos atenuem a pressão dos meios de produção.
Estas são técnicas defensivas, destinadas somente a moderar os efeitos da tecnologia capitalista, mas quando a classe trabalhadora passa à ofensiva e enceta processos duradouros de autogestão — com a condição de se tratar realmente de autogestão — começam então a ser aplicadas pequenas mudanças técnicas relacionadas com o controlo da produção pelo colectivo dos produtores. Uma tecnologia é uma estrutura global que conjuga de maneira sistemática e organizada um grande número de técnicas particulares, e antes que se defina uma nova tecnologia aparecem alterações de detalhe que pouco a pouco vão modificando o carácter das técnicas vigentes.
Assim, quando menciono a necessidade de manter e ampliar a produtividade e a abundância, isto em nada pressupõe a conservação da tecnologia capitalista. O que afirmo é a necessidade de que as novas técnicas originadas pelo desenvolvimento das relações sociais de luta e a nova tecnologia em que futuramente se hão-de articular em conjunto sejam produtivas e gerem abundância mediante formas materiais e sociais distintas das usadas no capitalismo.
23.
Se pretendermos lutar contra o capitalismo sem correr o risco de cair no socialismo da miséria, a grande questão é: como pode instaurar-se uma organização política igualitária e comunitária numa sociedade e numa economia muito complexas, baseadas na divisão do trabalho e que já não permitem a rotatividade em todas as funções? Este tipo de sociedade não dispensa o mercado nem o dinheiro e exige uma coordenação. Como frequentemente se confundem os conceitos com as palavras e se ignora a diversidade intrínseca dos conceitos sob a aparente uniformidade das palavras, é indispensável verificar o significado de cada um destes três termos.
a. Os mercados precederam de milénios o capitalismo e, além disso, não pressupõem necessariamente a existência de relações de exploração, como mostram os estudos históricos e antropológicos. Os mercados também não pressupõem necessariamente a existência de propriedade privada e serviram em vários casos para inter-relacionar colectividades proprietárias. Ao longo do tempo, os mercados têm-se revelado uma instituição plástica, adaptável e sempre em mutação, e é impossível definir num plano trans-histórico leis do mercado.
Mesmo referindo-nos ao capitalismo actual, só o hábito nos faz empregar uma mesma palavra para designar tipos de mercado diferentes e com leis de funcionamento distintas. No mercado de trabalho a livre concorrência funciona apenas entre os trabalhadores, com a condição de os sindicatos não desempenharem um papel relevante, já que a livre concorrência será tanto mais acentuada quanto mais fragmentada estiver a classe trabalhadora. Mas em sentido inverso a livre concorrência não funciona no mercado de trabalho, porque as empresas, enquanto compradoras de tempo de trabalho, encontram-se numa situação oligopsonista, que tenderá tanto mais para monopsonista quanto mais os capitalistas se coordenarem nos confrontos de classe. Na outra modalidade da relação entre as empresas e os trabalhadores, quando estes se apresentam enquanto compradores de bens e serviços, a regra é ainda a assimetria, existindo livre concorrência do lado dos consumidores, mas existindo oligopolismo ou monopolismo do lado dos vendedores. Nas relações entre grandes empresas a livre concorrência já não funciona e foi substituída por formas de acordo, que não precisam sequer de ser convencionados explicitamente. Por sua vez, nas relações entre as grandes empresas e as pequenas e médias firmas subcontratadas vigora de um lado uma relação oligopsonista ou integralmente monopsonista enquanto do outro vigora uma relação tanto mais concorrencial quanto mais fraccionadas estiverem as empresas subcontratadas. Estes vários tipos de mercado obedecem a regras distintas e executam funções diferentes no interior do mesmo modo de produção. Uma das potencialidades do capitalismo é a sua capacidade de articular mercados muito diversos. Nesta situação, usar neoliberalismo como conceito e mencionar o mercado em geral, como é corrente na esquerda, corresponde a participar num mito ideológico.
b. O dinheiro coexistiu com os mais variados modos de produção, incluindo algumas sociedades sem exploração.
Aquelas pessoas que não imaginam a possibilidade de superar o capitalismo sem abolir o dinheiro deveriam meditar sobre as tentativas de supressão do dinheiro levadas a cabo pelos anarquistas na Catalunha e em Aragão durante a guerra civil, que demonstraram, afinal, a plasticidade do dinheiro e o seu ressurgimento nas novas condições sociais. Num artigo publicado há mais de trinta anos mostrei que essas tentativas resultaram, por um lado, na manutenção do dinheiro enquanto unidade contabilística usada em sistema de clearing; por outro lado, na substituição do dinheiro emitido centralmente por senhas e vales de emissão municipal, os quais foram empregues para algumas das funções de dinheiro e constituíram uma forma de para-dinheiro. Aliás, o facto de as tentativas de abolição do dinheiro terem levado a um resultado oposto ao pretendido seria já previsível a partir do que sucedera na Rússia soviética durante o chamado comunismo de guerra. Outros casos extremos confirmam que nas sociedades modernas, sempre que a emissão central de dinheiro se torna insatisfatória, quer pela insuficiência do volume de dinheiro em circulação quer por uma acentuada e rápida perda de valor das unidades monetárias, surgem formas pecuniárias devidas à iniciativa dos particulares.
O dinheiro dá corpo a uma abstracção. Historicamente, nas sociedades em que o dinheiro teve relevância o pensamento abstracto ocupou um lugar importante na actividade intelectual. E numa sociedade evoluída como a de hoje, em que cabe a hegemonia ao raciocínio abstracto, o dinheiro permeia todas as relações. Mas de que modo o faz, esta é a questão, tal como é uma questão também a maneira como as abstracções se articulam e estruturam o pensamento. Assim como existiram e virão a existir diferentes sistemas de pensamento abstracto, também existiram e existirão diferentes formas de dinheiro. Pretender a abolição do dinheiro numa economia evoluída é uma utopia, porque isso implicaria a instauração de uma sociedade em que a abstracção não tivesse a primazia. O primitivismo económico seria acompanhado pelo primitivismo lógico.
Em qualquer das suas modalidades e em todos os sistemas económico-sociais em que vigorou, o dinheiro serviu e serve acima de tudo como transmissor de informação. A relação é muito estreita entre o dinheiro e a linguagem, e do estruturalismo linguístico podem extrair-se lições teóricas proveitosas para o estudo dos fenómenos pecuniários. Pretender que o dinheiro seria, por si só, um factor de reificação é como pretender que a linguagem seria obrigatoriamente um meio de dissimulação ou de distorção. A reificação não é gerada pelo mercado nem pelo dinheiro mas pelas relações sociais estabelecidas nos processos de produção de bens e serviços, materiais e imateriais. Sistemas de trabalho igualitários determinarão a fundação de novos tipos de mercado nas relações entre os colectivos produtores e a criação de novas formas de dinheiro nas relações intercolectivas e interpessoais.
c. Uma sociedade complexa, que requer a divisão do trabalho, exige igualmente instituições coordenadoras. No processo de derrube do capitalismo, a rotatividade não pode incluir a esmagadora maioria das funções nem pode presumir-se a ausência de especialização e de divisão do trabalho. A rotatividade deve conceber-se nas funções de direcção, com a condição de a direcção ser entendida como coordenação.
Essa coordenação não deve caber ao Estado, sob pena de se construir um novo capitalismo de Estado. O Estado não é um espaço neutro que possa puxar-se para um lado ou para o outro, mas uma estrutura que impõe leis e direcções próprias a todos os elementos que a compõem. Um socialismo que herde uma sociedade complexa e queira prossegui-la tem de destruir o Estado e de o substituir por um novo tipo de instituições coordenadoras. Ora, uma sociedade baseada num colectivismo de produtores e recorrendo ao mercado e ao dinheiro como instrumentos de inter-relacionamento pode evitar a centralização, que é um dos factores de existência do Estado, pois o mercado e o dinheiro permitem a conexão descentralizada.
Para isso o novo tipo de democracia revolucionária deve recorrer a uma coordenação sustentada pela informática e em geral pelos meios de comunicação electrónicos. Há uma notável afinidade entre a circulação do dinheiro e as redes electrónicas. Se o dinheiro serve de transmissor de informação e em boa medida deve ser concebido na perspectiva da linguagem, o mesmo sucede com as redes informáticas. Ora, se estas redes veiculam hoje uma recolha de informações que segue da periferia em direcção ao centro e de emanação de decisões que vai do centro para a periferia, elas têm condições técnicas para sustentar percursos inversos, em que instituições coordenadoras recebam as decisões emanadas da periferia, as articulem e as reenviem para a periferia, juntamente com novos fluxos de informação. A possibilidade de os meios de comunicação electrónicos se desenvolverem de uma maneira ou de outra depende das relações de força políticas prevalecentes.
Só assim poderá instaurar-se uma democraticidade que não coloque em risco a produtividade e sustente um socialismo da abundância.
24.
Para que uma sociedade autogerida não leve à barbárie da falta de produtividade e do primitivismo tecnológico é necessário que a complexidade não sirva de pretexto à ignorância e que todos queiram aprender a gerir. Se o interesse e a competência generalizados e uma divisão do trabalho igualitária forem uma utopia irrealizável, então será impossível a autogestão da abundância e teremos de optar entre uma abundância gerida por outros ou a autogestão da miséria. Toda a questão do comunismo é esta.
Ora, o aparecimento do punk-rock constituiu uma colossal ruptura política, afirmando o direito dos que não têm voz a cantar, dos que não têm ouvido a compor, dos que não sabem tocar a tocar. A partir de então não se parou e a ignorância e a inaptidão deixaram de constituir obstáculo às pretensões. A democracia assumiu um novo sentido, não é mais a luta pelo direito a todos aprenderem o que quiserem saber e passou a ser a afirmação de que é desnecessário saber o que quer que seja. A internet é usada como infra-estrutura desta punk-incultura. Tudo o que assim se poderá obter é a autogestão da miséria. Na época da punk-democracia, é desta verdade profunda que deve partir qualquer programa de reforma da esquerda anticapitalista.
Para reconstruir uma esquerda anticapitalista ou, mais exactamente, para reconstruir o anticapitalismo no espaço que hoje se denomina esquerda, temos de partir quase do zero.
Referências
O meu artigo publicado há mais de trinta anos em que abordo as tentativas de supressão do dinheiro na guerra civil de Espanha é «O dinheiro: da reificação das relações sociais até o fetichismo do dinheiro», Revista de Economia Política, vol. III, nº 1, Janeiro-Março de 1983, págs. 53-68. Encontra-se na internet aqui.
Este Manifesto foi publicado em quatro partes. A 1ª parte incide sobretudo na velha esquerda. A 2ª parte diz respeito à esquerda pós-moderna. A 3ª parte versa questões organizacionais. Finalmente, esta 4ª parte trata do horizonte económico do anticapitalismo. Todas as partes foram reunidas aqui.
Na janela de destaques e nos thumbnails reproduzem-se obras de Ellsworth Kelly.
Aí há coisa de uma semana, vi o anúncio de um evento de um agrupamento trotsquista português em torno do tema “O declínio do capitalismo”. Uma das pessoas que vai intervir nesse evento tem defendido a tese de que o capitalismo sobrevive ligado à máquina. Falar em declínio lembra-me sempre as teses do Spengler, dando por isso ênfase a um processo automático de “degeneração” de um sistema sócio-económico. Ora, se o capitalismo for substituído ou por uma sociedade comunista ou por uma sociedade meta-capitalista de tipo nacional-socialista ou pol potiano, isso deve-se à intervenção prática colectiva das classes sociais. E nunca de um processo de declínio automático, onde a intervenção das classes sociais não tivesse influência. Ora, se são as classes sociais que, na sua interacção conflitual, moldam e determinam os caminhos e as direcções das dinâmicas e das instituições sociais, então só me resta colocar a seguinte questão aos que equivalem as crises económicas a crises de dominação global do capitalismo: como é possível falar em crise do capitalismo se não há lutas sociais vigorosas da classe trabalhadora?
Sobre o dinheiro. A maioria dos economistas da esquerda equivalem o dinheiro a valor proveniente da esfera da produção que teria ficado condensado em formas monetárias. Ora, o valor económico decorre das práticas de produção e o dinheiro é uma entidade simbólica que permite, por um lado, a contabilização (que não é o mesmo que valor quantificado) e, por outro, integrar as várias esferas e agentes da economia. Ora, se o dinheiro for considerado como mais-valia transformada em unidade monetária, isso significaria duas coisas. Primeiro, isso é o que abre portas à incompreensão da esquerda relativamente ao sistema financeiro, e que para essa gente o dinheiro surja como uma entidade criada do nada e que estaria a sugar a riqueza da economia produtiva. Ora, se as formas monetárias e financeiras fossem mais-valia (seja na forma clássica, seja enquanto capital fictício), então seria incompreensível porque um sistema assente na produção de mais-valia preferiria torrar o equivalente a seis ou sete vezes o PIB mundial em transacções financeiras, em vez de o investir na dita economia produtiva. Daí que para essa esquerda o problema esteja no sistema financeiro que é visto como um sorvedouro e não como um integrador sistémico do capitalismo. Os capitalistas teriam de ser estúpidos ou cegamente equivocados para trocarem a exploração pela especulação. Curiosamente, quando essa esquerda perora contra a especulação, o que defende é a legitimidade da exploração e o seu reforço contra o que consideram contra-natura: a especulação. A inserção histórica da esquerda na ampliação dos mecanismos da mais-valia relativa ou da mais-valia absoluta encontra justificação ideológica na sua crítica aos especuladores. Em segundo lugar, e na sequência do que expus, se fosse verdade que o dinheiro correspondesse tout court à mais-valia produzida então para que é que os tais activos financeiros derivativos, que correspondem a seis ou sete vezes o PIB mundial, teriam de voltar à economia produtiva? Se isso fosse linear e se isso acontecesse, então a sobreprodução que já existe nos países capitalistas em crise multiplicar-se-ia exponencialmente e agravar-se-ia a crise económica de forma colossal. Na óptica destas teses, e levando o seu raciocínio à sua consequência lógica, defender o retorno dessa suposta mais-valia à economia produtiva seria agravar a sobreprodução, elevar o investimento ocioso a níveis impensáveis e, por conseguinte, baixar a famosa taxa de lucro que, coitada, já de si estaria moribunda.
Enfim, de quantos paradoxos se tece o irracionalismo económico da esquerda…
Putz, que tristeza, depois dessa vou ter que jogar fora meus discos do Ramones :(
Acho estranho supor a possibilidade de dinheiro/mercado numa sociedade de abundância, pós-capitalista. Pois se o tempo de trabalho (valor) ainda for a única medida da riqueza, onde estará a abundância? Além disso, não deveríamos esperar que, mantendo o valor (dinheiro e mercado), todos os esforços da sociedade se voltem (por uma questão de sobrevivência) para a (re)produção da excassez, da privação, portanto da propriedade privada, Estado e classes?
No meu modo de ver, o comunismo é por definição uma sociedade que aboliu o emprego e o desemprego (portanto não haverá mais trabalhadores), porque, ao abolir a proriedade privada, garante o livre acesso às forças produtivas mundiais pelos indivíduos (que se associam livremente através de suas necessidades, desejos… cujas expressões serão a própria produção), tendo por consequência que, sem haver mais nada que constranja ninguém a vender (a si mesmo) para sobreviver, ninguém mais será constrangido a comprar. Talvez, como hobby à toa, o mercado ainda existirá, mas nunca mais como elo social fundamental. Assim penso.
Uma discuti com um amigo sobre a questão do dinheiro e o mesmo me respondeu com “substituir o dinheiro por tíquetes”, aí pensei comigo: “mas não é trocar seis por meia dúzia?”.
Engraçado ter se tornado lugar comum da esquerda falar mal do mercado e se propor alternativas de distribuição da riqueza enquanto que criticar a produção capitalista e propor alternativas de produção seja chamado de “esquerdismo”. Haha, pra certa “esquerda” ser “esquerdista” é ofensa. Maldito “direitismo” de certa esquerda.
Caro João,
penso que nunca será demais sublinhar a importância das conclusões deste teu Manifesto e das perspectivas que elas abrem, ao mesmo tempo que precisam os critérios de uma “separação das águas”, que, como creio que sobejamente mostras, não é possível satisfazer em termos de “esquerda” e “esquerdas”.
Mas não vou repetir aqui o que escrevi tentando justificar brevemente este meu juízo nos três parágrafos que ontem publiquei sobre a quarta parte do teu escrito no Vias de Facto. Aqui deixo o link para os eventuais interessados: http://viasfacto.blogspot.pt/2014/05/quarta-e-ultima-parte-de-sobre-esquerda.html
Abraço
msp
Peço desculpa pelo atraso nas respostas.
Com o João Valente Aguiar e o Miguel Serras Pereira tenho discutido bastante algumas destas questões no Vias de Facto, para lá remeto os leitores interessados.
Humana Esfera, mas você comete precisamente o erro para o qual chamei a atenção no § 23 deste Manifesto, assimilando o mercado e o dinheiro ao capitalismo. Na forma como tenho analisado esta questão desde há muitos anos, a teoria do valor decorre do modelo da mais-valia, e este é exclusivo do capitalismo. O funcionamento dos outros sistemas económicos, com ou sem exploração, obedeceu a regras diferentes e o mercado e o dinheiro estiveram presentes em grande parte deles, em formas diferentes também. No sistema de troca de presentes (dons e contra-dons), por exemplo, havia vastas áreas em que não ocorria a relação de compra e venda e a exploração não pressupunha obrigatoriamente operações de compra e venda. Em vários sistemas económicos coexistiam tipos de dinheiro diferentes, obedecendo a regras de emissão e circulação diferentes também. Mercado e dinheiro são quadros institucionais muitíssimo plásticos. João Valente Aguiar e Ralf chamaram a atenção para isto nos seus comentários. Para mim a questão é a que formulo no começo daquele § 23: como pode instaurar-se uma organização política igualitária e comunitária numa sociedade e numa economia muito complexas, baseadas na divisão do trabalho e que já não permitem a rotatividade em todas as funções? Não me parece que isso possa fazer-se sem um qualquer tipo de mercado e um qualquer tipo de dinheiro.
Pelo pouco que sei, o mercado pré-capitalista (e suas castas de mercadores, usurários, piratas e saqueadores…) era exterior à produção (grosso modo, apenas os excedentes eram trocados ou vendidos, ou senão a produção era simplesmente pilhada por algumas castas especializadas). Quando o mercado adentra a produção e a assume (através da proletarização e o processo que todos já conhecemos), dirige-a diretamente para a valorização incessante e surge o capital (industrial), que transforma todo o resto também em indústria (“derrubando todas as muralhas da china” como diz o manifesto). Sinceramente, não acho um bom argumento defender que a mercado é essencial numa sociedade de abundância só porque antes do capital industrial já havia mercados. O mercado sempre se sustentou na escassez, na falta de acesso aos recursos. E na medida em que o mercado continuar no fundamento da sociedade, que é a produção, não vejo como deixará de ser capital industrial, isto é, não vejo como deixará de recriar uma classe de proletários e outra de capitalistas, mesmo que formalmente haja um dia autogestão absoluta nas empresas.
Sobre o outro argumento, o da complexidade da sociedade de hoje, penso que, como Marx já apontava, o mercado simplesmente faz das relações sociais um processo cego, uma relação entre coisas que impede uma relação racional entre as pessoas, seus fins e os meios de sua produção. A meu ver, esta relação racional é que é fundamental numa sociedade complexa. E é mais factível do que nunca devido aos meios de comunicação atuais, internet, etc. de modo que a simples expressão humana já parece completamente apta a substituir o mercado como o único elo social-produtivo numa escala mundial.
Caro humanaesfera,
Parece-me que o seu primeiro parêntese o traiu e revelou uma contradição na sua argumentação. Nele você afirma que, “grosso modo, apenas os excedentes eram trocados ou vendidos”, para, logo em seguida, dizer que “O mercado sempre se sustentou na escassez”.
Eu diria que o mercado só pode existir porque uma dada unidade produtiva, seja ela uma família, uma clã, uma tribo, uma fábrica ou uma comunidade, não produz todos os valores de uso que lhe são necessários, mas, por outro lado, produz em abundância um certo número deles cuja parcela excedente pode ser trocada.
O que me leva à seguinte pergunta. Numa sociedade hipotética em que haja “autogestão absoluta nas empresas”, você acha que cada uma delas produziria todos os itens ou serviços necessários à mais elementar forma, porém digna, de existência humana?
Derrubar o capitalismo dá muito trabalho. O esquema é arrumar umas brechas dentro dele e ir tocando.
Teu texto leva a uma conclusão direta:
É capitalismo ou barbárie!
Humanaesfera,
Quando Marx escreveu O Capital a antropologia mal dava os primeiros passos e o conhecimento que havia do regime senhorial, a chamada Idade Média, era muito rudimentar e assentava em noções hoje postas de lado. Marx fez o que podia com os dados existentes e abriu algumas perspectivas de interpretação interessantes com a noção de modo de produção asiático. O conhecimento da pluralidade de formas de dinheiro era mais escasso ainda. Tudo o que Marx escreveu a esse respeito tem de ser interpretado e reavaliado à luz dos conhecimentos actuais.
Taiguara,
Além do aspecto que você indicou, há outra questão ainda. A procura, no sentido económico, é determinada historicamente, o que leva à criação de novas necessidades. A abundância não consiste apenas na quantidade necessária de produtos existentes mas ainda na permanente criação de novos produtos, respondendo a novas necessidades. Sendo assim, haverá sempre escassez dos novos produtos até à sua produção estar ampliada, e nessa altura desenvolvem-se novas necessidades. A alternativa é a ditadura económica de mais-valia absoluta, como indico no § 21, que teve no regime dos Khmers Vermelhos a mais cabal ilustração. Ou seja, numa sociedade sem classes que desenvolva a complexidade e a abundância, tornam-se necessárias formas de mercado não só numa perspectiva sincrónica mas também numa perspectiva diacrónica.
Exílio Punk,
É exactamente isso que eu quis dizer no § 24, que de certo modo sintetiza todo este Manifesto. «Derrubar o capitalismo dá muito trabalho». Se organizar uma greve implica um esforço maior do que limitar-se a obedecer às ordens da administração, derrubar o capitalismo implica ainda maior esforço. Podemos imaginar o esforço que representará participar na organização de uma sociedade sem classes, em que todos sejam não só trabalhadores mas gestores do trabalho colectivo. Sem isso, ou entregamos a outros a gestão da abundância ou fazemos a autogestão da miséria.
É justamente enquanto “remediação” da escassez que o mercado encontra seu fundamento por toda a história. Portanto o mercado nunca pôde ultrapassar a escassez durante todos essas dezenas de milênios porque isso teria sido abolir sua própria base (graças à qual ele aparece como “luxo” nas sociedade precapitalistas).
Somente quando o mercado assumiu a forma de capital industrial, uma dinâmica historicamente inédita surge – uma concorrência incessante pela redução do tempo de trabalho ao mínimo em escala mundial (juntamente com criação incessante de “novas necessidades”) – aí sim: esta dinâmica muito certamente permite ultrapassar a escassez, e, portanto ultrapassar aquilo que fundamenta o mercado e o próprio capital – suplantados pela produção e consumo livres, gratuitos, uma verdadeira sociedade de abundância mundial, isto é, comunista.
Taiguara, você me perguntou: “Numa sociedade hipotética em que haja “autogestão absoluta nas empresas”, você acha que cada uma delas produziria todos os itens ou serviços necessários à mais elementar forma, porém digna, de existência humana?”
E respondo: se ainda existirem empresas (é secundário se sob autogestão ou não), a propriedade privada das condições de existência não teria sido de nenhum modo abolida, porque o acesso às forças produtivas (a rede de produção hoje inerentemente planetária) continuaria privado à população, que portanto continuará sendo constrangida a vender a si mesma enquanto força de trabalho no mercado e portanto continuaria constrangida a se submeter ao e produzir trabalho morto, capital (que, mesmo sob autogestão, não vejo como evitaria reconstituir uma personificação do capital, isto é, uma classe de capitalistas, no mínimo sob a forma de diretores democraticamente eleitos para impor disciplina e demitir).
me parece muito difícil prever como seriam os mecanismos econômicos do futuro, especialmente de uma sociedade sem classes. Creio que inerente a este tipo de especulação é saber que não temos uma puta ideia do que estará ocorrendo no mundo daqui a 50 anos, que modalidades de produção, consumo, crédito, etc, estarão operando; se haverá uma regressão às unidades de produção familiar (como querem tanto à esquerda quanto à direita), se o mercado negro virtual e suas inovações cambiárias terão maior impacto no mercado legal, enfim, são infinitas as possibilidades tanto com relação às técnicas que modificam o mercado (como foi a pedra de toque para o estabelecimento do ouro como padrão de moeda), como com relação ao modo de produção e suas lutas de classes.
Apenas creio que o fim do mercado como horizonte pressupõe um tal controle sobre o processo econômico que apenas uma estrutura demasiadamente rígida poderia supor. Que o mercado seja o ente regulador maior da economia é uma coisa, a extinção de qualquer mecanismo descentralizado de busca e oferta é outra.
Em termos antropológicos, podemos pensar que esta estrutura não é tão distante da busca amorosa moderna, com seus jogos de busca e oferta. No passado era um sistema controlado, onde o casamento era regido pela necessidade, pela lógica econômica e política das unidades de produção (famílias). Hoje em dia está mais próximo de uma “livre associação entre amantes”, e espero que siga progredindo nesse sentido.
Lucas,
Começando pelo fim, a determinação das relações amorosas pelas unidades conjugais não é antiga, nasceu na transição do século XVIII para o século XIX, com o aparecimento da chamada família burguesa. Antes disso, na aristocracia do ancien régime, reinava uma libertinagem semelhante à que você evocou. Basta ler Casanova e Choderlos de Laclos. E na Idade Média as coisas eram mais divertidas ainda, a crer no Amadis de Gaula. Mesmo no século XIX o quadro conjugal não prevalecia entre os proletariado e as classes populares, por isso Balzac, para quem todo o drama provinha da inclusão de um terceiro elemento no matrimónio, afirmou que era impossível construir um romance com pessoas desse meio social, que se juntavam e separavam à vontade.
Passando à questão do mercado enquanto «mecanismo descentralizado de busca e oferta», para empregar as suas palavras, se já é difícil prever o amanhã, quanto mais daqui a umas décadas. Por isso eu me limitei a apresentar um quadro em aberto, composto de três elementos articulados (mercado, dinheiro, internet), mas sem especificar funcionamentos concretos. De qualquer modo, repare. No mercado, sobretudo no eventual mercado de uma sociedade sem classes, trata-se de uma relação de tudo com todos; enquanto nas relações amorosas as coisas se passam, digamos, só por amostragem.
Vocês viram o pânico (tão intenso que não conseguiram disfarçar; nunca vi algo assim) dos empresários e dos políticos (que aliás garantiram aos empresários uso sem reserva da força policial) quando, no Rio de janeiro, os motoristas e cobradores ameaçaram substituir a greve (aliás selvagem) pelo transporte gratuito? Viram a amplitude do apoio manifesto por praticamente todos os explorados (inclusive os ditos “classe média”) ao saberem da idéia de transporte gratuito? Ouviram os comentários quase unânimes nas ruas, trabalho, bares, metrôs e trens?
Pois então: não se trata de prever o futuro – tarefa aliás completamente inútil e mero exercício acadêmico – mas do que queremos e podemos enquanto classe daqueles para quem o mercado é antes de tudo o constrangimento (este sim rigidamente regulamentado e policiado, como jamais se viu antes na história) de vender a si mesmos no mercado de trabalho.
Humanaesfera,
Não resisto a reproduzir aqui um comentário que coloquei num artigo em Janeiro deste ano.
Em Lisboa, em Junho de 1968, durante o fascismo, os trabalhadores da Carris, ou seja, a empresa de transportes públicos da capital, fizeram uma greve que ficou conhecida como greve da mala. Os autocarros (ônibus) e os eléctricos (bondes) continuavam a circular, mas os cobradores recusavam-se a cobrar o bilhete (a passagem). Os passageiros viajavam gratuitamente, os transportes encheram a abarrotar e a Companhia Carris ficou seriamente atingida onde mais dói aos capitalistas. Esta greve durou dois dias, num regime em que as greves eram proibidas, em que eram proibido tanto o movimento sindical independente como todos os partidos e organizações opositores ao regime e em que os organizadores de greves e movimentações políticas eram presos e torturados. A repressão policial também se fez sentir neste caso, mas o governo cedeu e pressionou a administração da Carris a conceder aos trabalhadores um aumento salarial. Dois camaradas meus, um já falecido, estiveram envolvidos na organização desta greve. E note-se que na Carris os trabalhadores mais politizados eram os operários das oficinas, mas apesar de os cobradores serem menos politizados e terem de agir isolados, cada um num veículo, tiveram a coragem de estar no centro da luta e de resistir durante dois dias.
Mais ou menos na mesma época, mas não me lembro exactamente do ano, os médicos dos hospitais públicos, pelo menos em Lisboa, fizeram uma greve em que continuavam a atender os doentes mas não preenchiam os boletins administrativos relativos ao atendimento, que passava assim a ser gratuito. O alvo desta greve foi exclusivamente o Estado, através da administração hospitalar, e não os doentes.
Isto ocorreu em pleno fascismo, mas nunca se repetiram greves deste tipo na actual democracia portuguesa.
Acrescento agora que a ausência ou a raridade de greves deste tipo nas democracias actuais deve-se possivelmente ao facto de os sindicatos se terem convertido em empresas capitalistas, dispondo de grandes fundos de investimento.
João,
concordo com tua postura com relação à especulação. Poderia inclusive dizer que se trata de uma postura ‘conservadora’, ou seja, num futuro ainda mais distante pode até ser que o mercado deixe de existir, no entanto creio que este tipo de especulação já deixa de ter valor para a análise e a propositiva contemporanea. A existencia de algum mercado não é identica à hegemonia do mercado como regulação dos processos de produção.
Mas quanto ao tema antropológico, abordei ele porque creio que faz falta sexualizar um pouco as utopias. As vezes elas soam demasiadamente mecanicas. De fato, pode ser que em um mundo onde a economia seja mais organizada o ser humano possa desenvolver a sexualidade de maneira mais livre, como no documentário que eu copio abaixo sobre a vida das mulheres na Alemanha Oriental. No entanto, não entendo porque no mercado da sociedade sem classes a relação é de tudo com todos, sendo que a privação ou a abundancia deste ou daquele valor de uso é sempre um fenomeno particular (pensando no questionamento final do comentário do Taiguara), e ainda que a internet facilite a comunicação global os termos das trocas não seriam centralizados por um órgão central, mas efetuadas por particulares autonomos (comunas federadas?).
Por fim, voltando ao começo, a instituição do dote conjugal é antiga. No mundo greco-romano ele jogava um papel de dom e contra dom que integrava, junto a outras modalidades de empréstimos, o mercado de capitais (que nessa época não se valorizavam) e as decorrentes alianças entre a classe de proprietários. Tal instituição não garantia a monogamia burguesa, mas isso não quer dizer que o aldutério fosse bem visto. Os patriarcas detinham os direitos sobre o casamento dos integrantes de suas familias (no sentido antigo e amplo do termo). Imagino que apenas quando a mão de obra se torna livre ou suficientemente distante do patriarca é que as uniões amorosas deixam de estar atreladas à lógica regida pelos processos de produção da unidade familiar.
https://www.youtube.com/watch?v=Fl_r7rIcds8
Interessante, João. Há tempos os sindicatos foram legalizados para defender a conservação dos trabalhadores como capital variável.
Lucas, na verdade não vejo como especulação sobre um futuro distante, mas como uma perspectiva atual das condições necessárias para ultrapassar o capital. Não parece ser possível haver praxis (de transformação da sociedade) sem ter claro um objetivo (global, pois trata-se da transformação da sociedade), que sempre é produzido no presente (aberto, é certo, ao aprimoramento ou correção do objetivo) e na posição/local onde se está (o que não exclui a validade de outras perspectivas), já que é o único modo de orientar a ação no aqui e agora e não agir às cegas. E a perpectiva que defendo é transformar a sociedade a tal ponto que o mercado poderá ser um hobby à toa, incapaz de constranger ninguém a se vender como força de trabalho.
Sociedade sem classes e com dinheiro; mercado, logo mercadoria – incluída a força de trabalho, donde: trabalho assalariado, em leibnizianas empresas ou comunas autogeridas&fechadas (mas federadas…) e democracia direta giratória ou rotativa (para cargos e/ou funções de mando [sorry, coordenação]) e outras badalhocas distópico-modernistas solipsistautogestionárias para castoriadis, lefort, marilenachaui etc marmiteiro futurível nenhum botar defeito – OXENTE!
Ulisses,
A identificação a que você procede entre mercado e assalariamento é insustentável à luz da antropologia e da história económica. Mercado e dinheiro nem sequer são instituições, são quadros institucionais extremamente plásticos e não vejo como será possível sem eles desenvolver uma sociedade e uma economia muito complexas. É esta para mim a questão. Ou recorremos a esses quadro institucionais e pensamos as necessárias formas de coordenação ou optamos pela barbárie do primitivismo tecnológico. Para mais, peço-lhe um favor. Vá ao Vias de Facto e veja o alvoroço que ontem e anteontem reinou lá, com gente indignada a acusar-me de não seguir os ensinamentos de Castoriadis, e agora você acusa-me de coisas feias chamando-me de castoriadiano. Fico em crise de identidade. Já os marxistas me chamavam anarquista e os anarquistas, marxista, só me faltava esta.
Sobre o último comentário do João. Quem é que hoje à esquerda, em Portugal e um pouco por toda a Europa, lê o que quer que seja para além de blogues, textos propagandísticos e livros de autores especulativos (Zizek, Badiou, etc.)? Em Portugal, os economistas de esquerda ou nem sequer percebem quem está do lado deles (ver o ponto 1 deste artigo: http://passapalavra.info/2014/04/94117), ou conseguem dizer que um aumento da produtividade não leva a um aumento da produção total…
Me passa uma leve impressão de que a defesa da mercadoria por vocês decorre de uma premissa falha, que vou esboçar aqui: uma espécie de fetichismo da mais-valia relativa.
Se a mais-valia relativa aumenta (na medida em que a composição orgânica do capital aumenta, que é a relação capital constante/cap. variável), a taxa de mais-valia aumenta, mas a taxa de lucro diminui (devido à proporção sempre maior do capital constante, que não cria valor, apenas transfere). Porém, se algumas empresas (ou mesmo uma região do mundo) reduzem a proporção de trabalho vivo frente ao trabalho morto e outras empresas (ou regiões) não, aquelas empresas com maior composição orgânica criam na realidade menos valor, mas estão em posição de realizar o valor criado (mas não realizado) pelas empresas (ou regiões) com menor composição orgânica. Ou seja, só mediante empresas baseadas em mais-valia absoluta, as empresas baseadas em mais-valia relativa podem manter ou multiplicar (superlucros) a taxa de lucros (que elas cada vez criam menos, mas realizam cada vez mais). O que critico é que me passa a impressão de que na análise de vocês a mais-valia relativa é “abundante” por si mesma, isoladamente, sem essa relação diferencial que descrevi. A isso chamo fetichismo da mais-valia relativa (uma variedade do fetichismo da mercadoria).
Dois textos que abordam essa relação diferencial:
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/a-escassez-artificial-em-um-mundo-de.html
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/teste-de-realidade-estamos-vivendo-em.html
A 9 de Setembro do ano passado escrevi neste artigo do João Bernardo (http://passapalavra.info/2013/09/83039) o seguinte comentário:
«Uma questão relativamente paralela e que talvez valha a pena pensar é a relação da tese da finitude dos recursos com algumas leituras mais rígidas da lei da queda tendencial da taxa de lucro. Esta questão do Marx tem a sua importância e, na sua essência e em traços gerais, reflecte a mecânica da mais-valia relativa: a necessidade de aumentar a aplicação de capital constante de modo a elevar a produtividade do trabalho. Aliás, a tendência para a queda da taxa de lucro é contrariada pelo mesmo procedimento que, na aparência, a leva a decrescer: a aplicação cada vez mais massiva de novas tecnologias, o que leva a maiores qualificações da força de trabalho, logo, a uma superior produção de mais-valia. Esta é, de modo muitíssimo reduzido, a minha interpretação do que de valioso tem a tese marxiana da lei da queda tendencial da taxa média de lucro. Em suma, é tão ou mais interessante o capítulo de “O Capital” sobre as contratendências como o anterior sobre o funcionamento dessa lei.
Contudo, grande parte dos marxistas vêem as contratendências e a mecânica interna do desenvolvimento capitalista implícito na tal lei como mero floreado. A tese mais mecânica da leitura de tal lei (e que, diga-se a verdade, o Marx ajudou imenso a isso) é de que o capitalismo iria esgotando o seu campo de actuação e de desenvolvimento das hipóteses da sua expansão. Se a Rosa Luxemburg, umas décadas mais tarde, colocaria na finitude dos espaços territoriais do planeta a explorar pelo capitalismo como o seu limite estrutural, parece-me que a maioria dos marxistas coloca a queda da taxa de lucro no mesmo patamar teórico. Ou seja, a evolução do capitalismo assemelhar-se-ia a uma curva de Gauss: primeiro cresceria, atingiria seguidamente um pico e, depois desse apogeu, começaria a longa fase da depressão e da decadência. Autores marxistas da escola da Monthly Review ou o Istvan Meszaros constroem toda a sua crítica ao capitalismo nesta base: a base material de expansão económica do capitalismo é finita. E qual seria a razão para isto? Em poucas palavras, o capitalismo não conseguiria explorar mais eficazmente os recursos existem: recursos humanos, naturais, tecnológicos. Estranha essa decadência de um modo de produção que conseguiu continuar a expandir-se a uma taxa tal que, em termos absolutos, quase quadriplicou o seu produto bruto nas últimas quatro décadas…
Não tenho tempo para desenvolver isto muito mais. Apenas queria sublinhar que a passagem da análise das fricções que a mola do capitalismo coloca ao seu próprio desenvolvimento, para a consideração de um limite económico do capitalismo dentro de uma estrutura fixa é o caminho para que alguns dos aspectos mais interessantes do marxismo sejam hoje absorvidos como uma versão de uma teoria do decrescimento. Creio que isto pode ser uma eventual pista que explique como o ecologismo penetrou na esquerda marxista e que, na realidade, alguns dos seus pressupostos poderão estar implícitos na sua própria estrutura de pensamento. No caso, a tese da finitude dos recursos».
Penso que este comentário responde às colocações de humanaesfera.
humanaesfera,
mas o que tem a ver a necessidade ou não de mercado com o que você escreveu no último comentário, sobre mais-valia relativa e absoluta?
Humanaesfera,
É um grave equívoco confundir uma lei tendencial com uma lei absoluta. Uma lei tendencial determina as medidas que devem ser tomadas para que ela não exerça os seus efeitos. A analogia frequentemente empregue é a de um estreito caminho de montanha entre precipícios. A lei tendencial da queda de uma pessoa implica que a pessoa não se distraia, não escorregue e tenha sentido do equilíbrio. O mesmo com a taxa de lucro. O aumento da composição orgânica do capital verifica-se antes de mais em volume. Mas o próprio aumento da produtividade, que é a condição técnica da mais-valia relativa, implica que, ao mesmo tempo que os elementos do capital constante aumentam em volume, diminuem em valor (em tempo de trabalho incorporado). É similar ao que se passa com os bens de consumo e serviços consumidos pelos trabalhadores e destinados à produção e reprodução da força de trabalho. Os trabalhadores podem dispor de uma abundância crescente de bens e serviços, mas diminui o valor (o tempo de trabalho incorporado) em cada um desses bens e serviços. A lei tendencial da baixa da taxa de lucro marca aos capitalistas as condições sociais e técnicas relativas à produtividade que devem ser impostas para que a taxa de lucro efectivamente não diminua. Não tenho possibilidade de me explicar melhor nos limites de um comentário, mas se você ou algum outro leitor estiverem interessados numa demonstração mais detalhada, remeto para o capítulo 2.5, «Taxa de Lucro», do meu livro Economia dos Conflitos Sociais. Na versão que se encontra na internet corresponde às págs. 149-157. Devem ver-se também as págs. 85, 200, 248 e 250-251.
JB:
A relação entre mercado e assalariamento não é insustentável, posto que não é uma “identificação” nem – tampouco- feita “à luz da antropologia e da história económica”. Sutilezas à parte, a distinção(?) entre “instituições” e “quadros institucionais extremamente plásticos” [sic] é, no mínimo, bizarra…
Aliás, não ver “como será possível sem eles desenvolver uma sociedade e uma economia muito complexas” decorre da escotomização do essencial, na comunidade humana mundial pela qual lutamos, isto é: relações de produção que propiciem superar a escassez e – ergo – abolir a economia.
Postulado o escotoma e/ou hipostasiada a hipótese, eis o falso dilema: “Ou recorremos a esses quadros institucionais e pensamos as necessárias formas de coordenação ou optamos pela barbárie do primitivismo tecnológico.”
No mais, prossigamos, quanto a mim, sem ir ao Vias de Facto nem às nada conceituais vias de fato (rs).
Não acusei ninguém, de castoriadiano ou seja lá o que for.
Crises de identidade acontecem, mesmo entre nós, adolescentes tardios (rsrs).
Eu também fui ‘acusado’ de anarquista pelos marxistas e de marxista pelos anarquistas. Imodestamente, não me faltava esta…
Ulisses,
É muito arriscado discutir em torno de palavras altamente abstractas sem as definir com exactidão, o que me parece impossível num comentário. Por isso eu não sei se estou ou não de acordo consigo quando você escreve que numa comunidade humana sem classes fica abolida a economia. Por um lado, a abundância não implica que seja desnecessário estudar as formas de produção e os canais de distribuição, tal como um corpo saudável não implica que seja desnecessário estudar biologia (não gosto de analogias e é já a segunda que faço hoje). Por outro lado, se as necessidades são uma criação histórica e se a história não se encerra, então haverá obrigatoriamente um hiato entre novas necessidades e a sua satisfação plena. Mas tudo isto depende de saber a que é que chamamos economia.
Chamo instituição a uma instituição específica, por exemplo, as letras de câmbio são uma instituição, as moedas cunhadas são outra e a criação bancária de dinheiro é outra ainda. Mas todas estas instituições podem estudar-se num plano comum e por vezes algumas delas estiveram historicamente relacionadas, e então eu digo que se trata de um quadro institucional.
E para verificar que o quadro institucional pecuniário é muitíssimo plástico basta analisar as formas de dinheiro que existiram nas ilhas do Pacífico, de uma extraordinária sofisticação e adaptadas às mais diversas necessidades. Chegava a ser possível o estabelecimento de taxas de juro (do que nós hoje denominamos assim) sem existirem quaisquer instituições bancárias. E tudo isto sem capitalismo e sem nada que de perto ou longe se lhe assemelhasse.
Mesmo uma assimilação genérica de dinheiro a reificação ou fetichismo é errada, como se demonstra por certas modalidades de uso de dinheiro-géneros. É sabido que quando certos bens de consumo começavam a usar-se paralelamente na função de dinheiro podia ocorrer uma especialização na base material do dinheiro, que ficava impossibilitado para consumo. Assim, por exemplo, em sociedades que usavam o arroz como dinheiro, além de o empregarem como alimento, sucedeu que se reservasse para as operações pecuniárias o arroz estragado, impossível de comer. O mesmo com armas, e progressivamente começaram a usar-se como dinheiro armas que pela dimensão ou pelo formato eram desprovidas de utilização bélica. Mas sucedeu igualmente que essa especialização não ocorresse, e são estes os casos mais elucidativos na perspectiva que aqui me interessa. No regime senhorial europeu, por exemplo, até aos séculos X ou XI, depende das regiões, usou-se o gado bovino para finalidades pecuniárias, sem que o boi-dinheiro se diferenciasse materialmente do boi-animal de trabalho ou do boi-alimento. Ao mesmo tempo, os senhores não controlavam a emissão destas formas pecuniárias, que eram de livre acesso aos camponeses, os quais podiam emitir dinheiro, quando reservavam um boi para funções pecuniárias, e tirar dinheiro de circulação, comendo ou pondo a trabalhar nos campos o que antes havia sido um suporte pecuniário. Nesses séculos os senhores tiveram de travar uma luta vigorosa e muito complexa para se apoderarem ou reapoderarem da emissão pecuniária, mediante o progressivo estabelecimento do exclusivo da moeda cunhada. Os traços dessa luta observam-se materialmente em moedas, por exemplo nos Pirenéus, que tinham gravada numa das faces o desenho de um boi.
Era em questões deste género que eu estava a pensar quando escrevi o § 23.b, mas para mim o mais decisivo de tudo é a relação que estabeleço entre dinheiro e pensamento abstracto.
JB:
Começo – e quase termino – pelo fim do teu, se me permites tutear-te (rs), comentário: ative-me à configuração terminológica e conceitual da discussão ‘in totum et totaliter’, que inclui mas não prioriza o § 23.b mencionado.
No mais, noves fora tua magistral paciência e didática exposição, temo que nossos enfoques sejam quase diametralmente opostos.
A discussão não é, penso, “em torno de palavras altamente abstractas” ou baixamente concretas: trata-se do antagonismo teórico-programático entre duas cosmovisões.
Entre o escoliasta e o polemista, declaro minha minha preferência pelo primeiro – por razões de estilo e outras menos altissonantes.
Entrei na roda para chacoalhar, sem chacota, uma dinâmica que me parecia – salvo equívoco – apologética e recuperadora.
Talvez um crente admita que o Messias não virá. Talvez um autonomista descreia da Revolução.
E daí?
A crítica da religião ainda é o começo de toda crítica. E a superstição ‘revolucionária’ não é melhor do que as outras.
Cordialmente…
João Valente e João Bernardo,
O que tentei explicar foi justamente que o único mecanismo contratendencial da queda da taxa de lucros que existe é essa relação diferencial (e simultânea) entre regiões/empresas de mais-valia relativa e regiões/empresas de mais-valia absoluta.
A competição entre empresas é a competição por reduzir os custos de produção (sobretudo capital variável, ou seja, menos tempo de trabalho cristalizado), mas obviamente o objetivo não é reduzir na mesma proporção o preço daquilo que vendem. Pelo contrário, o objetivo sempre é obter um lucro extraordinário (ou superlucro), isto é, acima do valor que ela mesma cria (pois o valor criado é menor, já que a composição orgânica é maior). E elas conseguem. Esses superlucros não são “mágica” (exceto para os fetichistas), são trabalho não pago. Mas trabalho não pago de quem? Dos proletários das empresas concorrentes que possuem composição orgânica menor e são forçados a trabalhar mais por menos, já que a ameaça de perder seus empregos se intensifica, ao mesmo tempo que os seus empresários vendem a mercadoria com mais valor cristalizado mas a um preço abaixo, única maneira de não serem engolido pela concorrência e não falir.
A medida que a composição orgânica mais alta se difunde igualmente por todas as empresas, a base para os superlucros daquelas empresas “pioneiras” desaparece. Porém, como as empresas/regiões “pioneiras” já absorveram antes dessa difusão uma massa de superlucros imensa, elas sempre tem mais dinheiro para P&D (pesquisa e desenvolvimento) e portanto, são capazes de desenvolver “pioneiramente” novos meios de produção, formas de organização produtiva, novos produtos, e nova qualificação da força de trabalho, que lhes permitem uma nova rodada de superlucros.
Resumindo: a busca e efetuação da mais-valia relativa existe sempre e unicamente em função da mais-valia absoluta (intensificada e expandida) que pode ser absorvida (como superlucros) do restante das empresas/regiões. Este é o único mecanismo contratendencial da queda da taxa de lucros.
(Portanto, se ficamos felizes pelo desenvolvimento – redução da mortalidade, melhora da qualidade de vida, da expectativa de vida, etc. – não é de modo nenhum porque ele se baseie numa idílica mais-valia relativa que pudesse existir sem a absoluta.)
Leo Vinicius, você perguntou:
“mas o que tem a ver a necessidade ou não de mercado com o que você escreveu no último comentário, sobre mais-valia relativa e absoluta?”
É que o fetichismo da mais-valia relativa isola um aspecto do sistema mundial de equivalência universal (que é o mercado, especificamente sob a forma de capital industrial, isto é, submissão do trabalho vivo ao trabalho morto) e o glorifica, não querendo ver que o fundamento da mais-valia relativa (isto eu tentei explicar no post imediatamente anterior) é exterior a ela, é a própria mais-valia absoluta.
Humanaesfera,
toda a dinâmica que você aborda sobre o resgate de valor da mais-valia relativa a partir dos sectores com maior componente de mais-valia absoluta só demonstra o primado da mais-valia relativa, já que, como você apresenta, é esta que determina a própria expansão da mais-valia absoluta, e não o inverso. Por outro lado, não se esqueça que a mais-valia relativa consegue captar valor proveniente dos sectores onde impera a mais-valia absoluta não apenas por um efeito distributivo. De facto, a mais-valia relativa consegue isso porque o seu dínamo está, paradoxalmente, na sua maior composição orgânica que permite elevar a produção de mais-valia acima do crescimento do capital constante global. Ou seja, a mais-valia relativa permite aumentar colossalmente a extracção de valor aos trabalhadores e, com isso, permite às empresas e aos sectores mais dinâmicos baterem a concorrência. Mas conseguem isso precisamente porque são cada vez mais eficientes.
Mas não são apenas mais eficientes os procedimentos da mais-valia relativa. Eles exploram cada vez mais áreas que aparentemente não fariam parte da equação. Por exemplo, a exploração do trabalho intelectual cresceu incomensuravelmente e creio que desde os serviços financeiros até todo o tipo de pesquisa científica e criativa demonstra a expansão da mais-valia relativa sob os seus próprios princípios: aumentar o capital constante mas aumentar ainda mais, e por um tempo durável, a mais-valia extraída. E não apenas da mais-valia absoluta.
Sim, concordo, a mais-valia também é extraída internamente dos trabalhadores das empresas de alta composição orgânica.
O que eu procurei apontar é que enquanto houver empresas, isto é propriedades privadas, que só se relacionam mediante a troca (mercado, sob o cerimonial que se preferir, até kula), mesmo se todas elas fossem autogeridas, essa dinâmica que descrevi sempre impedirá que haja um idílico mundo de empresas de mais-valia relativa homogêneamente por toda parte (numa igualdade de composição orgânica do capital), e cujos aumentos de produtividade sempre possam acompanhar o aumento dos salários dos trabalhadores em todas elas. A verdade é que o proletariado fará sempre “corpo mole” e cagará para a concorrência, tendo por consequência que as empresas autogeridas serão forçadas a impor internamente a disciplina e a ameaça de demissão, com uma hierarquia, burocracia, reconstituindo de uma forma ou de outra uma classe capitalista. Eu defendo que, antes que isso ocorra, os proletários suprimam a propriedade privada por uma livre associação de indivíduos que, tendo livre acesso aos meios de produção em escala mundial, são capazes de realizar/produzir seus desejos e necessidades sem troca (sem equivalentes).
humanaesfera,
confesso que continuo sem conseguir sem enxergar a relação de uma coisa com outra (necessidade ou não de mercado e mais-valia…). Como, por que, a mais-valia relativa levaria a uma fetichização do mercado (os verbos isolar e glorificar não me ajudaram a entender). De toda forma, obrigado pela resposta.
Sobre punk rock, que é o bode no meio da sala que foi posto no final do texto, muito poderia ser dito, inclusive que se for entendido como expressão puramente musical não se compreende sua dimensão cultural.
Mas o central é o seguinte: não se deve tomar figuras de linguagem pelo fenômeno real, pelo que ocorre na prática. Quando se diz que o sujeito não precisa saber tocar (ou cantar), é muito mais uma figura de linguagem do que uma verdade em relação ao punk rock. Em alguma medida, mesmo sendo uma “música” relativamente simples, é preciso saber tocar em alguma medida para fazer punk rock.
Se se quer seguir a lógica, que considero completamente equivocada, do punk rock ter sido uma ruptura política, na prática ao contrário de ser uma ruptura que seria um obstáculo à autogestão operária, ele seria uma ruptura que facilitaria essa autogestão. Pois abriu a perspectiva para muita gente de que fazer música (ou um som) que se gosta não é matéria para experts, iluminados, diplomados, escolarizados… mas algo alcançável pelo homem simples, que pode aprender na prática. Ruptura que faz aqueles condicionados a serem para sempre público, tomarem também o palco. Ruptura que rompe separações e hierarquias, que mostra que não é preciso delegar a outros a gestão por não se ter dez anos no banco da escola.
Leo,
Os argumentos do seu último comentário confirmam o meu diagnóstico: «A democracia assumiu um novo sentido, não é mais a luta pelo direito a todos aprenderem o que quiserem saber e passou a ser a afirmação de que é desnecessário saber o que quer que seja.»
humanaesfera – mercados não pressupõe empresas. Não será essa
uma confusão que impede destravar o debate? Ou seja, empresas só se relacionam por meio do mercado, mas outras modalidades de produção se relacionam de diversas formas, entre elas o mercado.
Leo – que uma pessoa pudesse aprender a tocar um violão por conta própria não é algo que nasceu com o puck-rock. Não quero entrar no mérito da metáfora política, mas tenho a impressão de que justamente o que projeta o punk-rock no mundo é que pessoas “simples” podem também se tornar estrelas do rock, com sua própria banda e holofotes, encaixando o que originalmente era apenas música num pacote completo pre-estabelecido da indústria cultural [isso em absoluto deve ser tomado como uma crítica a quem escuta ou em algum momento da vida escutou punk-rock, isso seria moralizante e contra-producente. Difícil na sociedade em que vivemos não tomar gosto por uma ou outra coisa estúpida que nos oferecem por uma telinha. Elevá-las a uma categoria política ou dar-lhes um valor ético, isso é outra coisa].
Lucas,
Eu não acho nada do punk rock politicamente. Quem acha é o autor do texto. Só forcei o raciocínio partindo do mesmo pressuposto do autor, de que ele representaria uma ruptura política.
João Bernardo,
Não consegui enxergar no que meu comentário reafirmei o diagnóstico citado, uma vez que argumentei que o “não precisa saber tocar” do punk rock é muito mais uma figura de linguagem do que um fato…
Caro João Bernardo,
Gostaria, se possível, que me fossem esclarecidas algumas dúvidas sinceras e despretensiosas.
Se numa sociedade complexa como a nossa, a divisão do trabalho é condição sine qua non, e sendo também exigência para a existência de um socialismo da abundância, como ficariam a divisão internacional do trabalho e a divisão territorial do trabalho, posto que, pelo menos no capitalismo, a “abundância” só se torna possível tendo como pressuposto estas divisões?
Mesmo que sob a coordenação de instituições democráticas, baseada no coletivismo dos produtores, ainda assim, não se encaminharia, com base numa produção racional (pois, entende eu, só racionalmente se pode aumentar a produção e se alcançar a abundância), para uma espécie de “determinismo”, não só no que tange à D.I.T e à D.T.T, mas à própria divisão do trabalho igualitária?
Sendo divisão do trabalho e, talvez, a D.I.T e a D.T.T, condições necessárias à abundância socialista, como ficariam ou como seriam possíveis a realização dos potenciais criadores e de criatividade que nos fariam verdadeira e plenamente humanos?
Agradeço imensamente por toda sua contribuição crítica à nossas reflexões.
Abraços fraternais,
Beto.
Beto
No capitalismo, as diferenças de rendimentos resultantes da divisão do trabalho entre regiões devem-se a motivos sociais e não climáticos ou geológicos. Se vier a existir uma sociedade sem classes, ela só poderá ser mundial ou, pelo menos, num processo de expansão a todo o mundo, o que implicaria a ultrapassagem das diferenças sociais entre territórios e regiões. Tratar-se-ia de instaurar uma divisão mundial do trabalho que não implicasse uma desigualdade de rendimentos.
Caro João Bernardo,
minha dúvida é justamente no tocante aos motivos sociais da divisão do trabalho.
Entendo que aqui nesta e em outras Repúblicas das Bananas o que determina as “bananas” (ou “os” bananas…), não é “a terra em que se plantando tudo dá”… Sim,as desigualdades possuem causas sociais. E a metáfora da banana, hoje em dia tão nesfastamente em moda, também serve às outras repúblicas, por mais “civilizadas” que sejam ou por mais que os recursos materiais estejam nelas disponíveis, ao menos para a venda…
Por isso a persistência da dúvida em relação à divisão do trabalho. Socialmente, permaneceria a divisão internacional do trabalho numa sociedade mundial e sem classes?
Seria, então, a igualdade de rendimentos o meio para a realização de todas as pontencialidades humanas? E como entender as mais variadas condições de trabalho numa sociedade sem classes?
Agradecimentos e abraços fraternais,
Beto.
Beto,
Acho que podemos indicar, em termos muito gerais, quais as condições que consideramos necessárias para definir uma dada sociedade como colectivista, igualitária e sem classes sociais. Mais do que isto parece-me inútil detalhar, porque a luta entre as classes não é estática nem segue uma progressão linear, mas obedece ao modelo de uma espiral. Os trabalhadores hoje lutam de uma dada maneira contra o perfil actual do capitalismo e, consoante o resultado desta luta, o capitalismo apresentará amanhã um perfil diferente, contra o qual os trabalhadores hão-de lutar de outra forma, e assim sucessivamente. Portanto, o comunismo que pudéssemos construir hoje seria forçosamente diferente daquele que poderíamos construir amanhã, e este do que poderíamos construir no dia seguinte. Por isso na 4ª parte deste Manifesto eu preocupei-me só em esboçar o que me parece ser o quadro geral de uma sociedade sem classes, com relações complexas e produção abundante. Mas preocupei-me mais ainda em definir as condições negativas, quero dizer, aquelas que, na minha opinião, apontam apenas a barbárie como alternativa ao capitalismo. Nesta perspectiva, a questão da divisão mundial do trabalho parece-me que deve ser encarada da mesma forma que a divisão do trabalho dentro de uma mesma empresa ou de uma mesma cidade, sem nada de mais específico. A questão não é só a igualdade de rendimentos, mas de oportunidades e de capacidade de tomar decisões e de exercer o controlo. Trata-se de conseguir uma divisão do trabalho que não gere o estabelecimento de hierarquias fixas.
Antes de responder ao Leo Vinícius e Lucas, gostaria de agradecer muito ao João Bernardo e a todos os demais pela paciência.
Leo Vinicius, você tinha perguntado “confesso que continuo sem conseguir sem enxergar a relação de uma coisa com outra (necessidade ou não de mercado e mais-valia…). Como, por que, a mais-valia relativa levaria a uma fetichização do mercado (os verbos isolar e glorificar não me ajudaram a entender). De toda forma, obrigado pela resposta.”
Se os setores de mais-valia relativa são vistos como se pudessem sustentar sua abundância “endogenamente”, isto é, isoladamente dos setores de mais valia absoluta, poder-se-ia chegar à conclusão de que é possível conservar o mercado bastando autogerir as empresas e torná-las todas igualmente de mais-valia relativa. Tentei mostrar que não, que uma dinâmica certa e determinada forçará as empresas a novamente se diferenciarem em mais-valia relativa e em mais-valia absoluta, forçando-as a impor internamente uma disciplina, e, no fim das contas, a reproduzir a sociedade de classes…
Lucas, você perguntou: “humanaesfera – mercados não pressupõe empresas. Não será essa uma confusão que impede destravar o debate? Ou seja, empresas só se relacionam por meio do mercado, mas outras modalidades de produção se relacionam de diversas formas, entre elas o mercado.”
É compreensível que a mercadoria possa ser preservada como uma relação social acidental, periférica, entre muitas outras relações. Porém, na minha opinião afirmar isso é uma platitude, pois o que realmente importa é saber: qual a condição para que não nos encontremos forçados a nos verder no mercado de trabalho em troca da sobrevivência? Foi disso que busquei tratar em todas as minhas respostas anteriores.
humanaesfera,
mas quando se fala em mercado numa situação não-capitalista, com a propriedade dos meios de produção de posso e gestão pelos trabalhadores (e não meramente de empresas isoladas em “autogestão”, não vejo sentido em se falar de mais-valia. Se a discussão é a existência de mercado numa sociedade socialista, não faz sentido falar em mais-valia nessa situação, como aqui foi dito: “bastando autogerir as empresas e torná-las todas igualmente de mais-valia relativa”.
É aí que está o problema: se essas unidades produtivas autogeridas não forem realmente isoladas (penso no sentido de que não são propriedades privadas, e consequentemente não trocam entre si), falar em mercado serve para algo além de lançar uma cortina de fumaça nas relações sociais? O argumento que me foi dado como defesa dessa cortina de fumaça, foi outra cortina ainda maior: muitas formas cerimoniais de mercado existiram antes do capital industrial. Defender o mercado por razões ritualísticas? Sinceramente: assim já é fetichismo da mercadoria no sentido inclusive literal, literalmente. Pô aqui não era um dos principais points iluministas na internet?
Humanaesfera,
Não tencionava retomar este debate, mas parece-me que você está a incorrer em duas grandes confusões.
Antes de mais, quando você escreve «se essas unidades produtivas autogeridas não forem realmente isoladas (penso no sentido de que não são propriedades privadas, e consequentemente não trocam entre si)», você está a referir-se a relações jurídicas, relações de propriedade. A ausência de relações de propriedade privada não implica que cada unidade produtiva produza tudo o que é necessário, ou seja, não implica que não haja divisão do trabalho. E se houver divisão do trabalho, terá de haver trocas. Se não houver divisão do trabalho, a humanidade regredirá para um completo primitivismo.
Em segundo lugar, eu não referi formas cerimoniais ou rituais de mercado. Foi você quem as referiu. Quando eu escrevi que a história económica e a antropologia forneciam inúmeros exemplos de mercado anteriores ao capitalismo e mesmo não pressupondo a existência de relações de exploração, o contexto deixava claro que estava a referir-me a mercados com funções de troca económica. Aliás, as sociedades não existem sem cerimoniais nem rituais, e basta você consultar em manuais de marketing as indicações de qualidade total para o comércio a retalho, ou de varejo, como se diz no Brasil, para verificar que mesmo as formas comerciais do capitalismo moderno não dispensam rituais. O que não significa que as suas compras da semana no supermercado sejam meramente ritualistas.
João Bernardo, agradeço realmente a paciência e vou procurar não estender muito o assunto.
Nem toda divisão de tarefas implica troca de equivalentes (mercado). Por exemplo, a divisão de tarefas pode decorrer de uma coordenação explícita e consciente de ações heterogêneas com vistas a fins específicos que uma livre associação de produtores decidiu executar através da rede mundial de meios de produção gratuitamente acessível à qualquer um, e neste caso é claro que não faz sentido falar em troca, nem em mercado, e até divisão do trabalho talvez não seja um termo lá muito adequado. E propriedade privada talvez não seja só um elemento jurídico, o predicado “privada” já mostra que ela é muito concreta, por ex. os cercamentos.
Quanto ao mercado precapitalista, eu disse aquilo talvez um pouco provocativamente demais. Seja como for, nossas diversas posições já foram apresentadas e, com exceção deste único ponto (tirando a questão do punk rock também, hehe), todo o resto do manifesto traz questões que me pareceram extremamente necessárias para o nosso tempo.
Com efeito a esquerda de hoje, mesmo aquela que tem se insurgido contra as burocracias sindicais, parece estar longe de colocar em questão explicitamente as relações de produção capitalistas. Tenho em mente algumas das greves mais avançadas que felizmente voltaram a ser frequentes no Brasil, como as greves selvagens dos garis [trabalhadores da limpeza pública], no Rio de Janeiro, dos metroviários em São Paulo e dos rodoviários em várias cidades; ou, ainda, a greve dos trabalhadores da educação. Por mais que se encontre nestes movimentos a luta pela recuperação de parte do produto e do sentido do trabalho alienado pelos patrões (ganhos salariais, melhores condições de trabalho, participação na formulação das políticas que regulamentam e orientam a profissão etc.), nenhum deles (pelo que eu saiba) questiona a hierarquização e a subordinação do trabalho à patronal (privada ou estatal, conforme o caso). Em muitas dessas lutas, inclusive, a reivindicação que muitos consideram como a mais “avançada” consiste em reestatizar os serviços públicos, trocando assim a subordinação ao patrão privado pela subordinação ao patrão do Estado. Será que algum rodoviário, ou (o que é ainda mais grave), algum militante do Passe Livre vislumbra, ou tem a coragem de sustentar a transformação dos serviços de transportes públicos em cooperativas autogeridas de trabalhadores reguladas por conselhos de cidadãos?
Eu vejo a necessidade de um duplo trabalho a ser feito para que o câmbio radical das relações de produção volte a ser o programa de ao menos uma parte não desprezível dos movimentos da classe trabalhadora: primeiramente, é preciso tematizar publicamente a questão da autogestão. Isso pode parecer quixotesco à primeira vista, mas a bandeira da Tarifa Zero e da desmilitarização da polícia também o eram até um ano atrás e, no entanto, tornaram-se amplamente conhecidas do grande público e, inclusive, já assumem a ordem do dia em projetos parlamentares. Isso ocorreu graças ao trabalho insistente dos movimentos que levantam estas bandeiras.
O segundo trabalho consiste no aprofundamento, aqui e agora, de experiências exitosas de autogestão, bem como sua maior articulação e propaganda entre os trabalhadores. Para que as pessoas se mobilizem pela autogestão desde a escala da empresa até a escala global da sociedade (isto é, do conjunto das relações sociais), é preciso que eles estejam convencidos de que ela é viável; mais do que isso, que ela é superior à heterogestão. Desse modo, participar de experimentos autogeridos (de uma organização política a um site até uma empresa e uma associação de bairro) deveria ser um pressuposto de todo revolucionário que mereça esse adjetivo. Tão importante quanto estudar a teoria revolucionária, se engajar em debates ou redigir artigos é fazer de tudo para que experiências autogestionárias se aprofundem, se ampliem e se façam conhecer, empenhando para isso seu tempo e dedicação. Nesse sentido, infelizmente nos vemos forçados a constatar um ímpeto prático (e portanto transformador, para o bem ou para o mal…) muito mais forte entre a “pós-esquerda” fora do eixo do que entre muitos pseudo-revolucionários. Critiquemos, sim, a maneira como eles reproduzem relações capitalistas sob outras roupagens, mas reconheçamos sua dedicação e inteligência instrumental que andam faltando entre nós.
Caro Tomazine,
tem sido muito útil para mim, na análise sobre “o que é autonomia”, ter me dedicado muito nos últimos tempos a estudar a história do modo de produção escravista, em especial por ser elemento de formações sociais historicamente superadas.
Para que se tenha uma ideia, uma das vertentes historiográficas mais atenta à questão da autonomia, de matriz thompsoniano, na virada dos anos 1970 para os anos 1980 se dedicou muito a encontrar traços e rastros da luta dos escravos por entre os vestígios documentais. Tentava, assim, combater a linha da escola sociológica da USP (Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni etc.), que, por ver o escravo apenas pelo viés jurídico, tomava-o como coisa, sem ação política possível.
Encontravam indícios da luta autônoma dos escravos em documentos como, por exemplo, o célebre “Tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados”, com datação aproximada a 1789. Este tratado, para esta corrente historiográfica, equivalia a algo como o que temos hoje com os acordos sindicais.
Entre as cláusulas deste tratado, encontramos coisas curiosas. A que chama mais atenção é a seguinte, numa fala direcionada pelos escravos ao seu dono, Manuel da Silva Ferreira:
“Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com nossa aprovação.”
Escravos, sofredores do mais brutal regime de exploração física (ao menos é o que o imaginário atual assim nos diz), pedindo ao senhor, depois de um levante armado, que, nada mais, nada menos, escolha novo feitor e o submeta à aprovação da escravaria. Escravos, escolhendo quem lhes fustigará o lombo.
Note, também, que no documento os escravos exigiam de seu senhor que as tarefas mais pesadas fossem deixadas para os “pretos Minas” — ou seja, os recém-sequestrados da África para a escravidão no Brasil.
Nisto, nestas coisas tão paradoxais, esta corrente historiográfica a que me refiro viu um dos elementos da autonomia das lutas escravas. Nâo só nisto, mas em incontáveis documentos semelhantes: irmandades religiosas como a da Boa Morte; ações jurídicas de libertação pós-1831; sociedades de artesãos, que compravam alforrias; os exemplos abundam.
Questionava-se diretamente a escravidão? Não. A única forma de questionamento direto da escravidão, aparentemente, era a fuga; mas, por outro lado, vemos em estudos mais recentes que a fuga também se dava, às vezes, como “fuga temporária”, como um “susto” no senhor, para que suas condições de trabalho melhorassem.
A fuga para o quilombo era a única forma de questionamento radical da escravidão. E vemos, em alguns quilombos de maior porte, com produção econômica autônoma, a existência paradoxal de… escravos.
Que quero dizer com isto, trazendo a reflexão para o agora? Que questionar a hierarquização e a subordinação do trabalho à patronal é algo mais complexo do que parece. Pode-se falar o quanto se quiser, pode-se pautar a autogestão junto às categorias, pode-se fazer o diabo, mas a construção das condições sociais para a mudança é um trabalho muito mais lento e perseverante que a escrita, acadêmica ou propagandística, da autogestão. E passa, também e exatamente, por estas greves, radicais ou não, onde se tenta conquistar não apenas ganhos reais, como também ganhos reais que sejam reconhecidos como tal pela categoria inteira, e não apenas pela burocracia sindical e sua assessoria de economistas, advogados e contadores.
Afinal, autogerir uma sociedade passa por muito mais que organizar grupúsculos autogestionários. Eles são importantes enquanto experiência existencial para os que os compõem, mas, sem integração com estes outros processos, por mais aparentemente “recuados”, terminam-se bastando-se a si próprios. “Autogeriu-se” uma fração da vida, e dane-se o restante do mundo. A fronteira entre isto e uma empresa é muito tênue, e sabemos no que resulta.
Assim como se deu entre os escravos, é nos paradoxos da vida prática, e no seu questionamento prático a partir de lutas que podem ser recuadas na pauta, mas radicais nos meios, que se encontram, a meu ver, as chaves da construção da autonomia, pensada não enquanto deleite grupuscular ou gestão empresarial disfarçada, mas enquanto projeto de sociedade construído nas contradições da prática.
Tomazine,
faço minhas as palavras do Manolo.
É a partir de lutas bastante concretas que pode se desenvolver o controle do processo produtivo por parte dos trabalhadores. Pautar autogestão ou socialismo, numa situação que nos encontramos, é tão distante, ideológico, que não encontra nenhum eco na classe trabalhadora, em geral.
São dos conflitos concretos, por salários, condições de trabalho, que pode evoluir uma capacidade de controle do processo produtivo e o questionamento prático da subordinação.
Caros Manolo e Leo, não me entendam mal ou distorçam o que eu escrevi. Tematizar a autonomia (via autogestão, conselhos, soviets, confederações, associações, cooperativas etc.) era o conteúdo do socialismo entre o movimento operário até a degenerescência da social-democracia e a hegemonia do marxismo-leninismo nesse meio. É inegável que os setores hegemônicos da esquerda deixaram há muio de problematizar o câmbio radical das relações de trabalho, que setores minoritários engajados num trabalho de base consequente reproduzem o fundamental da hierarquia capitalistas (e não por mera “contradição”, mas por crença na superioridade da hierarquia de comando), e que os demais setores minoritários pautados pela autonomia acabaram deixando de lado o trabalho de base ou, em grande medida, quando ainda fazem parte ou apoiam diretamente a luta política, recuaram suas posições ideológicas como uma estratégia de inserção. O resultado óbvio é que falar de autogestão hoje pode parecer algo distante e ideológico, como pensa o Leo.
Quando eu disse que uma de nossas tarefas primordiais era aprofundar e difundir experiências exitosas de autogestão, eu não me referia à criação de grupúsculos autogestionários. Quis dizer que é preciso empenhar-se com mais afinco em experiências que, fundamentadas pela horizontalidade (mesmo com suas inevitáveis contradições) e apesar de pequenas, não são nem utópicas (posto que criadas por trabalhadores em luta)e nem desintegradas de outros processos. A não ser que agora o coletivo de moradores de ocupações como a Quilombo das Guerreiras, os operários da Flaskô, o Fórum Popular de Apoio Mútuo de moradores de diversas favelas do Rio, os grupos de professores que se auto-organizam e atuam junto às bases sindicais a despeito das burocracias dirigentes, o próprio MPL e tantos outros sejam considerados como grupúsculos, e que apoiar a sua resistência e maior incidência junto à classe trabalhadora seja diversionismo.
O que desejei apontar com meu comentário, dialogando assim com o manifesto do João Bernardo, é que não podemos desresponsabilizar a parte da esquerda antiburocrática (ou seja, nós) pelo fato histórico do questionamento radical das relações de produção e gestão do social estar tão alheio à classe trabalhadora e mesmo à grande parte da própria esquerda. Quis marcar a nossa grande inépcia, ou falta de dedicação, ou incompetência (ou um pouco de cada) em sustentar experiências horizontais dos trabalhadores, que por vezes se desfazem quase que por inanição; em disputar nossas ideias nos principais espaços de luta e em construir uma ideia clara do que queremos, como pretendemos alcançá-lo (um programa) e para onde isso leva (um projeto de sociedade) – ainda mais num momento de grande descrédito das instituições da “democracia” representativa e da gestão global do capitalismo. Certamente há fundamentos sociais e históricos profundos para a nossa incompetência. Se de fato existe uma punk-cultura e uma punk-democracia, como quer ver o João Bernardo, é provável que a maior parte de nós sejamos os punk-anarquistas, punk-conselhistas e punk-autonomistas, ao passo que os ativistas fora do eixo, apesar de cínicos ou ludibriados, são muito vivos.
Manolo,
se te interessar o tema da escravidão no mundo grego antigo sob uma ótica muito similar a esta descrita por você, e se o inglês lhe for um idioma acessível, recomendo este artigo abaixo. Caso não tenha êxito em fazer o download posso enviar por email.
http://www.scribd.com/doc/187485426/Vlassopoulos-Greek-Slavery-From-Domination-to-Property-and-Back-Again
Se alguém fala (ou acha que fala) de fora, do exterior, de cima dos explorados, talvez faça até sentido que tema expressar seus objetivos de transformação, por temer se tornar dirigente e burocrata, e suas aspirações serem “ideologia”. Para compensar isso, estando de fora, por cima, qué-se “inserção social”, um “árduo trabalho de base” (e fala-se “nós da esquerda”), devido ao temor de ser burocrata, quando a própria linguagem já escancara burocracia, ainda que sob um inócuo teatrinho de ativismos, um jogo de bichos correndo atrás do próprio rabo, que não sabem onde estão e nem aonde querem ir.
humanaesfera,
das lutas mais relevantes nos locais de trabalho em que o grau de autonomia (autodeterminação) foi alto nas últimas décadas, aponte um exemplo em que ela não partiu de condições concretas da atividade de trabalho? mas sim de bandeiras de autogestão, socialismo ou coisa que o valha?
Eu acho que você inverte as coisas. Vou dar um exemplo histórico. Nas lutas na Itália durante os anos 60 e 70, os sindicatos focavam em questões de política nacional, distanciados dos problemas vividos concretamente pelos trabalhadores nos locais de trabalho. Os grupos que se tornaram referência política nas lutas com alto grau de autonomia que se desenrolaram naquela época, foram justamente aqueles que focaram a militância nas questões concretas do dia-a-dia dos trabalhadores na fábrica.
Para mencionar uma ilustração que o João Bernardo costuma dar em cursos e palestras, a questão da autogestão está contida na lâmpada queimada no banheiro.
Acho que é bem be-a-bá partir das questões concretas e experiência vividas dos trabalhadores, da população. A autogestão é palavra vazia, sem conteúdo, se não parte de uma experiência concreta dos trabalhadores de aumentarem seu controle no processo produtivo, a partir das lutas nos locais de trabalho, quando, por exemplo, ele quer diminuir o ritmo de trabalho.
Na verdade não discordo de você, Leo Vinícius, porque coincido contigo sobre partir de questões concretas. A diferença é que, no meu modo de ver, a questão verdadeiramente concreta (vivida universalmente pelos proletários) é a mais abstrata, o constrangimento de vender de si mesmo no mercado de trabalho. As questões concretas que fogem disso, para mim, nas condições atuais (talvez não no passado), são pseudo-concretas, corporativas, jogam na prática os trabalhadores uns contra os outros, contra os desempregados e estimulam a xenofobia. Não sou contra essas lutas em si evidentemente, também não nego que elas possam se desdobrar diferentemente, mas favoreço que, enquanto explorados iguais a todos os demais (isto é, nunca enquanto fazedores de “trabalho de base” ou de executantes de “inserção social”), não difundamos ou defendamos meias-verdades ou mesmo mentiras apenas por medo de parecer “ideológicos” e de pavor de miraculosamente nos metamorfosearmos em “burocratas”.
humanaesfera,
quais meias-verdades? O ritmo de trabalho imposto em um frigorífico é uma meia-verdade? a meta absurda em um banco é uma meia-verdade? Isso é pseudo-concreto, corporativo?
Nao existe medo de ser ideológico, existe apenas uma questão de estar em compasso com a realidade, com a vida das pessoas.
Em nenhum museu e galeria que visitei quando morei em São Paulo, vi uma obra de arte tão bem acaba, dadaísta na minha leiura, como o carta de um grupo trotkskista de extrema-esquerda colada num posto bem no centrão de São Paulo. Tinha a foto de Trotsky e algum dizer revolucionário, daqueles que poderiam ter sido ditos em 1917. Era como a o pinico da galeria de arte. A quem aquilo dizia algo? Não era uma questão de ser ideológico, mas uma questão de não viver em outro mundo.
Obrigado, Lucas! Já baixei o arquivo e estou lendo.
Sobre a plasticidade da categoria dinheiro (ainda no Capitalismo)…
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/06/conheca-o-bitcoin-dinheiro-virtual-usado-ate-em-site-de-venda-de-drogas.html
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bitcoin
(ainda pretendo comentar o Manifesto, apenas me lembrei do Bitcoin ao ler o debate sobre a forma-dinheiro no Comunismo..)
Sobre o §23, item c, quando JB diz que as redes de computador
têm condições técnicas para sustentar percursos inversos, em que instituições coordenadoras recebam as decisões emanadas da periferia, as articulem e as reenviem para a periferia, juntamente com novos fluxos de informação
gostaria de lembrar que as redes p2p (peer-to-peer, ou par-a-par) são o exemplo mais acabado, concreto e operante disso a que o JB alude.
A aplicação talvez mais conhecida de tal tecnologia são os quase famosos programas bittorrent, usados na grande maioria das vezes para a prática da troca de filmes e músicas, para horror da indústria do entretenimento. Sem entrar no mérito da questão da pirataria e dos direitos autorais, é uma prática que também tem o mérito de disponibilizar a qualquer um obras raras, como por exemplo o filme La Commune ou Edvard Munch, de Peter Watkins, dois belíssimos e muito pouco divulgados filmes políticos.
Outra aplicação possível dessas redes é a construção de mecanismos de busca descentralizados, onde os índices que remetem a todas as páginas da Internet, localizados em servidores centrais (o modelo de um Google ou um Yahoo), são diluídos por qualquer um que se disponha a rodar esses programas. Cito como exemplo o Yacy, que instalei num computador antigo que tinha parado aqui em casa e que agora fica ligado 24 horas por dia para dar uma pequena contribuição a essa proposta (e em cujo índice de páginas fiz questão de incluir todas as páginas do Passa Palavra, entre outros poucos sites que julgo importante constarem com destaque num mecanismo de busca)
Talvez caiba no Passa Palavra a criação de uma coluna de Tecnologia, com o intuito de divulgar estas alternativas a que JB se referiu e assim influenciar mais ativamente tais práticas.
Em 13 de Junho deste ano o Passa Palavra publicou um corajoso artigo de Daniel Caribé, «O momento errado para dizer certas coisas», que, a crer nos comentários, acertou no alvo. Aqueles comentários vão servir-me a mim também para confirmar esta 4ª parte do meu Manifesto.
Antes de mais, a afirmação de que todos os presos são presos políticos ilustra o que entendo por punk-democracia. Basta matar e roubar, qualquer que seja o sentido da morte e do roubo, para ser considerado um subversor da ordem social e, como tal, se for preso, para ser automaticamente classificado como preso político. Tal como escrevi no § 4 deste Manifesto, uma das formas como o anarquismo tem morrido é pela «dissolução que o atinge quando se confunde com uma liberdade indeterminada». Criticando um comentário meu (16 de Junho, 12:04), Legume (16 de Junho, 22:15) argumenta que os traficantes não são, como eu escrevi, pequenos ou médios comerciantes mas assalariados e que, por conseguinte, são «proletários de uma actividade ilegal», e Rodolfo (17 de Junho, 00:56) insiste na mesma crítica, afirmando que se trata de «trabalhador@s – em geral, extremamente precarizad@s». Como se o tráfico, com o seu sistema de lucros, de hierarquia e de punições, não fosse outra Ordem! Será que basta matar e roubar e destruir e desrespeitar os artigos do código para que os criminosos se convertam em criminosos políticos? Ora, como é muito mais fácil matar e roubar os vizinhos do que os ricos, esses proletários do tráfico estão em antagonismo directo não com a ordem capitalista mas com a restante classe trabalhadora.
E chegamos assim ao cerne da questão. Do mesmo modo que o músico punk não precisa de ter nenhum conhecimento ou mesmo sentido musical para fazer o que ele apresenta como música, também para ser político não seria necessária nenhuma noção de estratégia política, nenhum vínculo institucional, nenhum trabalho organizativo mais amplo do que o pequeno grupo de parceiros. A tese de que todos os presos são presos políticos, de tão contraditória, é insustentável, mas destina-se a encobrir uma outra tese, a de que toda e qualquer oposição à ordem estabelecida seria, por si só, anticapitalista. É precisamente isto que eu caracterizei como punk-política.
E esta punk-política tem como único programa económico o socialismo da miséria. O comentário de Centelhas (16 de Junho, 14:16) é esclarecedor, porque considera como reformistas e social-democratas as reivindicações de melhoria das condições de vida. Foi o que estigmatizei no § 21 desta 4ª parte do meu Manifesto, quando escrevi que a «esquerda da barbárie acusa a classe trabalhadora de estar integrada no capitalismo, de aceitar a integração e já não desempenhar nenhum papel histórico revolucionário. O que se passa, no entanto, é que a classe trabalhadora prefere o capitalismo da abundância ao socialismo da miséria, e continuará a rejeitar o socialismo enquanto este só lhe oferecer exemplos de miséria». Tudo aquilo que tem constituído o eixo histórico das lutas dos trabalhadores é deitado ao lixo em comentários como o de Centelhas.
Por isso classifico esse tipo de atitudes como elitista. Ibsen (15 de Junho, 00:50) ilustrou este elitismo ao escrever que o objectivo daquela acção foi «mostrar [à] população que não existe liberdade, demonstrar algo que estamos cansados de saber, mas que eu percebi que a população mesmo ali vendo tudo acontecer não consegue compreender». Este tipo de vanguardismo não é menos elitista do que qualquer outro, e é sintomático que Carlos (15 de Junho, 13:02) não se aperceba disto ao estigmatizar a «infecção crônica que afeta as organizações brasileiras, o vanguardismo». Pelo contrário, as críticas que Lucas (15 de Junho, 12:24) e Fagner Enrique (16 de Junho, 16:41) fizeram a Ibsen pareceram-me muito lúcidas.
Ora, como se opõe às reivindicações de melhoria do nível de vida, Centelhas (16 de Junho, 14:16) considera que a capacidade produtiva do capitalismo, por ser obra do capitalismo, deve ser negada. Escreve ele: «Se o horizonte de nossa crítica é gerar serviços sociais padrão FIFA, com escolas, hospitais e transporte em padrões escandinavos, não estamos lutando por uma realidade anti-capitalista, mas sim estamos buscando um contexto de consumo e de modo de vida relativos às classes médias européias, estadunidenses e japonesas». A noção de «classes médias» pode ser útil no marketing, mas na crítica ao capitalismo só confunde em vez de esclarecer, porque arruma ali os trabalhadores qualificados, explorados em regime de mais-valia relativa. Foi contra esse tipo de posições que escrevi o § 22, em que considerei «especialmente perverso o argumento de que, tendo o capitalismo atingido um alto grau de produtividade e conseguindo caminhar rumo à abundância, uma crítica radical implicaria a recusa de qualquer tecnologia que sustente a produtividade e a abundância». Naquele seu comentário, Centelhas pôs igualmente em causa a mobilidade colectiva e individual que a sociedade industrial hoje generalizou: «Antes de pensarmos em melhorar o transporte, não deveríamos pensar o porquê de termos que se transportar tanto?». Para uma esquerda que faz a apologia do multiculturalismo, com efeito, as deslocações e viagens são um grande inimigo, porque contribuem activamente para diluir costumes e particularidades numa cultura global única, ou seja, porque contribuem para a formação de uma classe trabalhadora internacionalizada.
A discussão do artigo de Daniel Caribé confirma, em suma, que, enquanto a esquerda for esta esquerda, a esmagadora maioria dos trabalhadores terá toda a razão para lhe voltar costas. O que torna ainda mais urgente a crítica de esquerda a esta esquerda.
João,
Não se trata de achar que os presos por si só sejam contrários ao sistema, não se acha isso de maneira alguma, mas sim procura-se entender os motivos do encarceramento massivo. Especificamente quanto aos pequenos traficantes tendo a concordar que sua ação termina por ser muito mais destrutiva para a própria classe trabalhadora do que para seus patrões.
Isso não se confunde com a defesa de um socialismo da miséria, não defendo que as pessoas vivam dessa maneira, ou que estão organizadas politicamente para combater isso, mas a escolha de como lidar com os conflitos, com um sistema penal que possui claros cortes de classe, é política.