Nenhuma forma de organização dispensa uma luta interna permanente contra a burocratização. Por João Bernardo
III
13.
Enquanto o leninismo ocupou um lugar destacado no movimento operário o fetiche era a organização partidária e tudo o mais lhe era sacrificado. A Terceira Internacional foi uma colossal máquina de soprar o quente e o frio nas lutas conforme fosse mais conveniente para a protecção e o crescimento das suas secções nacionais e depois da segunda guerra mundial os partidos comunistas continuaram a aplicar a mesma orientação. O fetichismo da organização partidária significava na prática a preservação da sua burocracia dirigente, num processo de conversão das vanguardas em elites e de rejuvenescimento das classes dominantes.
14.
O risco hoje é que outras formas de organização sejam fetichizadas. A esterilidade do pós-modernismo no plano da teoria revolucionária é acompanhada pelo fetichismo no plano da organização prática.
a. Tendo-se desinteressado de transformar o mundo, a esquerda pós-moderna dedica-se à criação de microcosmos paralelos. A afirmação de que tudo o que é pessoal é político tem como corolário a redução do político ao pessoal. O modo de vida tornou-se, por si só, político, o que significa que em vez de mudar o mundo basta viver de certa maneira. Esta nova espécie de militância consiste em pertencer a comunidades onde todos se assemelham ou se esforçam por assemelhar-se nos hábitos e no comportamento. A inspiração destes microcosmos está muito perto da literatura de auto-ajuda. Eles são a low art da política. É como se cada um passasse o tempo numa sala de espelhos; pensam que são muitos porque só vêem a sua própria imagem repetida. Anestesiados pelo facto de se sentirem bem, a existência contraditória das relações sociais perde a realidade concreta, extinguindo-se assim a vontade de mudar o que lhes desagrada. Em vez de serem um meio de acção, estes microcosmos imunizam da acção.
As convicções dos participantes nesses microcosmos expressam-se mediante rituais, por exemplo, andar de bicicleta ou plantar hortas no meio da cidade. Ora, como sempre sucede, o ritual depressa se sobrepõe ao conteúdo ideológico originário, dando corpo a novas modalidades de fetichismo, com a correspondente alienação.
b. Outra forma de organização estimada pelo pós-modernismo e apresentada como panaceia é a ocupação de lugares públicos por multidões cujo único meio de inter-relacionamento são as redes sociais.
Porém, em primeiro lugar, este tipo de mobilizações é facilmente manipulável por pequenas minorias dissimuladas, já que os participantes não se encontram previamente unidos por relações estáveis de afinidade, quer de morada quer de trabalho. Uma minoria coerente é sempre capaz de manobrar uma maioria inorgânica.
Em segundo lugar, enquanto estas mobilizações se restringirem a lugares públicos, se mantiverem exteriores aos processos de trabalho e não servirem para desencadear movimentos no interior das empresas, elas deixam incólumes as relações de trabalho vigentes e podem até servir-lhes de legitimação.
Em terceiro lugar, as ocupações de espaços públicos convocadas pelas redes sociais ou se mostram impotentes para impedir a rápida reversão das suas conquistas (Primavera Árabe) ou se revelam incapazes de evitar o seu sequestro a partir de dentro por forças da direita (a revolta dos coxinhas na sequência das manifestações de Junho de 2013 no Brasil) ou servem igualmente de modelo de mobilização à direita e à extrema-direita (Tailândia, Ucrânia) ou são encenações irrelevantes que convertem a política numa estética inofensiva (occupy e acampadas).
15.
Existem formas de organização que são, sempre e em todas as circunstâncias, nocivas para a acção anticapitalista. Mas não existem formas de organização que sejam, sempre e em todas as circunstâncias, benéficas. A este respeito, a garantia funciona só no sentido negativo.
Não existem formas de organização ideais, que as imunizem da recuperação interna por novas burocracias ou externa por forças da direita. Mas existem formas de organização que facilitam a luta contra essas tentativas de recuperação. Afinal, nenhuma forma de organização dispensa uma luta interna permanente contra a burocratização.
16.
O que é ser anticapitalista numa época de expansão do capitalismo? Como é que uma táctica revolucionária a curto prazo pode deixar de ser recuperada e assimilada pelo capitalismo em expansão? Terão os anticapitalistas de se iludir necessariamente a si mesmos?
A grande questão é a de saber como formar organizações de luta que obtenham vitórias nas suas reivindicações sem com isto serem incorporadas nas instituições estatais e passarem a servir como mais uma fonte de legitimação do Estado capitalista. Estarão os revolucionários da nossa época condenados a operar como Sísifo, erguendo um rochedo só para o deixar cair? É urgente reflectir sobre a acção revolucionária, o que significa que é urgente reconstruir um pensamento revolucionário.
17.
A priori, não me parece que seja possível, na sociedade complexa e diversificada em que vivemos, regressar à situação de um sistema teórico revolucionário único, ou pelo menos hegemónico, como sucedeu nas últimas décadas do século XIX e na primeira década e meia do século XX. Mas devemos criar um quadro teórico comum, que permita o diálogo e a polémica entre várias perspectivas de pensamento revolucionário. Não um sistema, mas um quadro.
Não há actividade científica e progresso científico sem direito ao erro. De início toda a novidade surge como um erro, e o debate e a polémica servem para distinguir o inadequado do exacto. Assim como nas ciências da natureza o debate não é apenas um confronto entre os cientistas, mas entre cada um deles e e a respectiva prática ou experimentação laboratorial, também na teoria revolucionária não se trata apenas da polémica entre as várias perspectivas, mas do confronto de cada uma delas com a acção prática, o que significa, com os factos da acção prática. Penso ser este o postulado básico de uma democracia revolucionária.
Este Manifesto foi publicado em quatro partes. A 1ª parte incide sobretudo na velha esquerda. A 2ª parte diz respeito à esquerda pós-moderna. Esta 3ª parte versa questões organizacionais. Finalmente, a 4ª parte trata do horizonte económico do anticapitalismo. Todas as partes foram reunidas aqui.
Na janela de destaques e nos thumbnails reproduzem-se obras de Ellsworth Kelly.
“formar organizações de luta que obtenham vitórias nas suas reivindicações sem com isto serem incorporadas nas instituições estatais”
No Brasil, o polo anarquista sempre caminhou neste sentido. Lembrando que há vários anarquismos no país. Aquele de caráter não meramente teórico e caçador de bolsas e carreiras universitárias, foi o que mais trabalhou nessa linha.
João,
subscrevo todas as ideias mestras desta terceira parte do teu Manifesto. As poucas observações que se seguem devem ser lidas como propostas de desenvolvimento e explicitação de certos pontos da tua análise que creio dever sublinhar.
1. O facto de as relações pessoais estarem presentes em qualquer forma de organização não permite reduzir a organização e muito menos a política de que ela pretende ocupar-se a relações pessoais ou “intersubjectivas”. Ao mesmo tempo que a redução às relações interpessoais ou intersubjectivas da organização acaba por equivaler à recusa desta última como necessariamente inautêntica ou opressiva.
2. Um outro aspecto desta deriva é que faz perder de vista que tanto a “pessoa” como as “relações pessoais” são institucionalmente configuradas, e garantidas por suportes social e historicamente instituídos. E estas instituições e suportes institucionais não são por seu turno produtos da subjectividade inter-pessoal, mas suas condições sociais e históricas (relevando da acção política).
3. O “fetichismo” que descreves tem assim por consequência escamotear a questão do poder que aquilo a que chamas — e muito bem — a “democracia revolucionária” não pode deixar de pôr sem renunciar a si própria. Ou melhor, quando não escamoteia a questão do poder, representa este como o domínio do mal por excelência, ao qual só poderíamos resistir, em nome da “cultura de si” ou da autenticidade intersubjectiva, mas sem reivindicarmos o seu exercício, necessariamente impessoal, enquanto cidadãos governantes, e não enquanto esta pessoa, e mais esta, e mais esta, membro desta ou daquela rede afinitária particular. Que se esqueça assim que a melhor garantia da liberdade subjectiva, e das relações pessoais afinitárias escolhidas por cada um, é justamente a participação de todos — enquanto ninguém em particular — no exercício político do poder sobre as condições comuns de existência de todos e cada um — tal esquecimento é um efeito particularmente perverso do “fetichismo” que assinalas. E aproxima certas concepções e práticas da esquerda “pós-moderna” da célebre divisa de Margaret Thatcher, quando afirmava que a sociedade não existia, mas só existiam indivíduos e famílias (se dissesse “grupos afinitários”, a coisa viria a dar quase no mesmo) — ao mesmo tempo que, através do exercício do poder instituído e da transformação das instituições, se esforçava, com o afinco que se sabe, por “validar” a sua ideia, “convertendo as almas”.
Espero que estes meus sublinhados do teu Manifesto não te pareçam excessivos ou demasiado equivocados.
Abraço
miguel serras pereira
Na mesma toada do que disse Miguel Serras Pereira – e pedindo licença, caso minha interpretação do que ele escreveu estiver equivocada -, uma das principais contribuições do pensamento crítico (e da ação crítica) seria a análise e questionamento das determinações que vivemos. Não para eliminá-las – como num passe de mágica. E sim para que, a partir delas, alcancemos na análise (e na prática) o que realmente faz sentido na história e na política como criação constante – o tornar-se outro, sempre.
Desse modo, não sou gay, ou negro. Posso até se isso tudo aí – mas sou muito mais. Deve ser indiferente à essas diferenças. Uma pessoa não se define, em todas as suas potencialidades políticas e limites históricos, pela sua cor ou orientação sexual. E não se trata, bom esclarecer, de um tal “puro devir” pós-moderno – no qual a realidade não existe tudo torna-se outro porque sim e pelos discursos. É justamente nas práticas, na realidade em suas relações, que observamos esse movimento – de torna-se outro, de uma certa experiência de indeterminação que vivemos na história, mesmo quando nos deparamos com a reafirmação da hegemonia (que, na verdade, se renova para continuar sua hegemonia) que parece sugar qualquer capacidade de mudança e criação.
Posso não ter sido nada claro no que disse – isso tudo ainda não está tão bem elaborado textualmente, por esse motivo peço desculpas. Mas, de verdade, é duro para minha cabeça aceitar que uma pessoa (ou movimento/organização) de esquerda goste de reafirmar fortemente – bem ao gosto do pós-modernismo – a identidade como motivo ou afeto político central de sua luta. É quase inacreditável. Não tem nada que ver com uma história da esquerda que buscava mudar, concretamente, o mundo em que vivemos.
Políticas pós-identitárias (pós, nesse caso, ultrapassando justamente afirmação das diferenças culturais como motivação de uma luta política que deve ser pela igualdade econômica e política radical, nada a ver com o pós-modernismo) e internacionalistas – não seria essa a luta de uma parte da luta da esquerda que merece (ainda?) ser chamada por esse nome.
Informamos que o autor responderá aos comentários no final da semana.
João, esses dias conversando com um companheiro chegamos à conclusão de que a burocratização não teria a ver com a existência de dirigentes, mas sim com o fato de manter uma organização que já não corresponde às necessidades do momento atual. Ou seja, uma organização que se perpetua apesar de não ter mais nenhum sentido para a sua existência. Isso seria a burocratização – a sobrevivência da forma sobre o conteúdo. E a burocracia seria justamente esse setor do movimento que trabalharia para a manutenção do aparelho. Creio que seja isso o que você diz quando fala do “fetiche da forma de organização”.
Se essa análise estiver correta, gostaria de saber qual a sua posição quanto às organizações hierárquicas (sindicatos, partidos, certos movimentos sociais, etc). Seriam elas “formas de organização que são, sempre e em todas as circunstâncias, nocivas para a acção anticapitalista”? Ou elas simplesmente não correspondem ao atual contexto da luta de classes?
Miguel e Exílio Mondrian,
Em 1991 publiquei um livro de poucas páginas intitulado Dialéctica da Prática e da Ideologia (São Paulo: Cortez, Porto: Afrontamento), onde procurei apresentar um modelo em que os indivíduos não são unidades constitutivas das instituições e nem sequer existem indivíduos na esfera das instituições. Nesse livro defini o indivíduo como «um percurso através de instituições distintas e contraditórias e através de campos distintos, sem que nenhuma instituição específica unifique ou fique a assinalar tal percurso», e acrescentei: «Os indivíduos não são sujeitos práticos, nem aspecto de sujeitos práticos» (pág. 61). Quanto à coerência deste modelo, oposto à visão corrente, remeto para o livro, já que não tenho possibilidade de me explicar mais longamente no espaço de um comentário. Limito-me aqui a assinalar a questão, mas penso que é o suficiente para indicar que estou de acordo com as vossas observações, se é que as entendi bem.
Quanto ao que escreveu o Exílio Mondrian, acrescento que para mim a luta contra o racismo, contra o sexismo, contra os preconceitos consiste em fazer com que a cor da pele e o formato do nariz, o facto de ter pénis ou vagina e de atingir o orgasmo por um lado ou por outro deixem de ser factores pertinentes. Assim, situo-me no oposto daqueles que pretendem erigir o sexo ou a taxa de melanina ou as preferências sexuais em grande factor definidor e estruturante. A função dos anticapitalistas é, na minha opinião, exactamente a contrária. Trata-se de fazer com que a cor da pele, o sexo e as preferências tenham a mesma falta de pertinência social que tem o facto de se ser gordo ou magro, careca ou cabeludo. Onde uns querem fundar a política na preservação destas diferenças, eu afirmo aqui a necessidade de as abolir.
Emerson,
Estou de acordo com você. Uma organização que se perpetua para além do contexto que a gerou só pode ter uma existência burocratizada. A burocratização define-se como a passagem do auto para o hetero, ou seja, a passagem de uma situação em que os próprios mantêm o controlo sobre os assuntos que lhes dizem respeito para uma situação em que esse controlo é entregue a outros. Há tempos atrás escrevi aqui uma série de artigos sobre Marat e mostrei num deles que para Marat o mecanismo básico da tirania não é o aparecimento do príncipe mas o facto de o povo deixar o príncipe aparecer. Simplificando, a burocracia não se deve à existência de burocratas mas ao facto de a base de uma organização permitir que se formem burocratas. É neste processo de formação que a crítica deve incidir, senão é tarde demais. No caso do Brasil, é esta a situação que hoje se vive nos movimentos sociais. Quanto aos sindicatos, eles são desde há muito grandes investidores capitalistas. Remeto para o livro que escrevi juntamente com Luciano Pereira, Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008).
Em primeiro lugar, agradeço fortemente ao João Bernardo pela resposta e atenção dispensada ao meu comentário deveras confuso. O seu comentário, João Bernardo, ajudou-me a entender melhor o que eu estava tentando elaborar textualmente. De resto, o livro “Dialéctica da Prática e da Ideologia” é, ainda, um desafio concreto à minha ignorância. Li, reli, reli – e vou reler. A minha ignorância caminha, aos menos, a cada leitura – e novas perguntas e questões mais interessantes surgem a cada página que não entendo (ou que achava que entendia).
O que está em jogo, nessa terceira parte, é a questão da organização anticapitalista e o processo de burocratização. Nesse sentido, o comentário de Emerson foi de grande valia – assim como o comentário, logo em seguida, de João Bernardo.
Pensando a partir do que foi dito sobre as relações pessoais identitárias fixas (para que não sejam “contaminadas”) como a mola propulsora do pós-modernismo que se diz transformador, também a burocratização talvez tenha a ver com essa vontade de reprodução perpétua dessas novas elites – sem serem incomodadas com novas questões e processos que ultrapassam os seus enquadramentos organizativos.
As obras do dramaturgo, poeta e romancista Luigi Pirandello pode ser um bom caminho para se pensar contra esse processo de paralisia da história e do novo pelas suas determinações. No romance “O falecido Mattia Pascal”, existe de forma gritante uma vontade de ser outro, de estar alhures. Mattia Pascal se finge de morto – passando assim a ser outra pessoa, um tal de Adriano Meis, vivendo desse modo uma outra vida.
Talvez a esquerda que queremos deva morrer para a esquerda clássica e para a esquerda pós-modernista. Nossa esquerda deve se fingir de morta – e não se agarrar em nenhuma identidade fixa congelada de preservação das tradições e diferenças culturais como critério político. Trata-se, como bem disse João Bernardo na segunda parte desse texto, de construir uma realidade de fato nova e mundialmente integradora das culturas e lutas sociais. Ou, glosando uma importante obra de Pirandello, uma esquerda capaz de ser “Um, nenhum e cem mil”.
Uma esquerda à altura desse desafio sempre colocará a questão da participação ativa e criativa do povo no controle das lutas e decisões como ponto primordial e decisivo. Ou, então, não merece o nome de esquerda.