Por Miguel Cardoso
Na fraseologia que vai acompanhando a crise e os conflitos que marcam o campo político actual, a expressão «violência gratuita» tem assumido, ocasionalmente, um papel de relevo. Pese embora o seu sentido ser incerto e oscilante, pode servir para entrever algumas perturbações recentes na ordem «natural» das coisas.
Comecemos com umas pinceladas contextuais. A expressão é arremessada por manifestantes e outros descontentes à polícia e ao aparelho de Estado, para sinalizar episódios de abuso no seu regular uso da força, por regra tido como legítimo. Por sua vez, as forças «da lei e da ordem» e, a seu lado, os media colam a etiqueta aos actos de uma série de «elementos perigosos», como quem faz soar um alarme. A este fogo cruzado junta-se ainda a voz dos movimentos sociais organizados, ordeiros, para designar quer o esquerdismo irresponsável de uns quer o fascismo insidioso de outros. Em todos estes casos, por intenção ou deslize, a expressão «violência gratuita» é uma chamada à ordem. Assinala a quebra de um contrato implícito, um desvio em relação a uma ideia do necessário e da justa medida. Mas o adjectivo «gratuito», ou a noção de gratuitidade, fazem bem mais do que isso: não se limitam a sugerir uma perda da sensibilidade e bom senso, mas uma perda de sentido. É gratuito o gesto que se desviou, com maior ou menor alarido, do que tem ou faz sentido.
O escândalo da gratuitidade é ser de difícil leitura e arrumação: não ter causa aparente, não decorrer das circunstâncias. É gratuito o gesto desnecessário, inútil, ocioso ou supérfluo. O injustificado e, até, injustificável. Nesse sentido, a violência gratuita é duplamente violenta: por ser violência e por ser gratuita. Por ser não apenas bruta, mas em bruto. Significa isto que a acusação de «violência gratuita», mais do que apontar um mero excesso ou falha de legitimidade, é um atestado de exclusão do razoável – e o razoável, sendo um terreno certamente vago, é defendido com unhas e dentes. E, não raro, cassetetes. Para compreender o significado e alcance desta expressão importa, pois, examinar a distribuição de competências não só no que toca ao exercício legítimo da violência, mas a própria definição do espaço de uma comunidade política fora do qual, aparentemente, se perde a razão.
Antes de mais, não nos devemos deixar iludir pela aparente simetria, excesso contra excesso, dos dois lados da barricada desenhados acima a traço grosso. O jogo de espelhos entre ordem e desordem esconde grandes diferenças no significado, peso e efeito do termo «violência gratuita», dependendo de onde é enunciado. Enquanto a gratuitidade da violência policial será um desajuste em relação a uma posição tida como legítima, a mesma fórmula aplicada aos manifestantes parece designar a própria posição que eles ocupam: não o desvio de uma posição, mas a sua posição enquanto desvio. Dito de outro modo: nos confrontos, tanto individuais como colectivos, entre a polícia e cidadãos, reconhece-se por vezes um excesso de força por parte da polícia, mas qualquer uso da força por parte de um cidadão é, em si mesmo, um excesso. Isto força-nos certamente a ir virando a questão, perceber as suas várias faces e nuances, mas não significa que estejamos aqui perante uma mera coincidência verbal. Ou seja, não significa que a fórmula «violência gratuita» seja apenas um nome comum para designar realidades completamente díspares. Há uma malha conjuntural, mas que decorre das próprias malhas com que se tece o capitalismo, que une estes diferentes fenómenos. A gratuitidade oferece-nos pistas cruciais para mapear o terreno instável e conflituoso onde se encontram. Ganhamos em colocar a questão da gratuitidade com maior latitude do que a sua associação com a esfera da violência pressupõe. Nesse espectro mais largo, o tom de condenação esbate-se, visto que ao gratuito é dado um lugar à mesa da civilização. A esse lugar é habitualmente dado o nome de estético, um lugar onde se goza de uma margem de liberdade em relação ao jugo do necessário, às regras da conveniência, ou aos cálculos de custo/benefício que governam outras esferas. Mas esta ligeireza é mantida dentro de uma reserva protegida, os seus efeitos contidos e, de preferência, reencaminhados para os domínios menos vagos e soltos do trabalho e do valor. Ou seja, a liberdade do gratuito é vista como um mero intervalo na injunção de produtividade ou, melhor ainda, produtividade por outros meios. Isto porque a aparente inocência do gratuito contém em si mesma uma certa violência, que irrompe enquanto tal logo que este sai deste lugar que lhe foi atribuído e se espalha. Quando assim acontece, parecem pressentir os guardiões do estado das coisas, passa de mero divertimento a ameaça ao círculo mágico de produção e reprodução das relações sociais existentes. Voltaremos a este ponto.
Por agora, regressemos de novo à esfera da violência, onde o problema da gratuitidade ganha porventura maior urgência, na medida em que toca num dos fundamentos da ordem política: o monopólio da violência legítima por parte do Estado. Acontece – e não por acaso – que, no contexto da crise e da austeridade, se torna mais difícil aos agentes da violência tida como legítima apontar com naturalidade e força de evidência para a sociedade do «bem-estar» que lhes competiria defender de perturbações. Perante as cada vez mais óbvias linhas de fractura no tecido social, multiplicam-se também os pontos de antagonismo que precisam de ser defendidos pela força. À medida que o Estado recua ou se demite das suas funções sociais, o terreno polariza-se, e a fronteira entre a polícia e os cidadãos ganha maior ferocidade. Embora seja exagerado dizer que vivemos em «estado de excepção», isto é, em plena suspensão do «Estado de direito», é certo que se multiplicam as zonas ou tempos desta suspensão. Pense-se, por exemplo, nas repetidas invocações de «tolerância zero», nas intervenções policiais de legalidade dúbia, no número desproporcionado de polícias chamados a intervir em manifestações e outros protestos, na presença habitual do Corpo de Intervenção, ou na destruição de bens na sequência do desalojamento de casas ocupadas. Tanta gratuitidade junta é de desconfiar. Poderíamos dizer: na verdade, este arreganhar de dentes nada tem de gratuito. Todos estes fenómenos são demonstrações de força, com propósitos dissuasores bem claros. Nessa medida, estarão longe do supérfluo que o termo «gratuito» encerra. Poderemos lembrar, a este propósito, as célebres palavras de Nixon, que avisava os inimigos dos Estados Unidos que os americanos eram «loucos e imprevisíveis, com uma força destruidora extraordinária nas nossas mãos». A gratuitidade aqui, na forma de um corte ou suspensão na esperada «proporcionalidade» do uso da força, é uma forma de eficácia. Mas não quer isso dizer, uma vez mais, que se apaga o potencial interpretativo da noção de gratuitidade. Se a violência, por oposição à violência gratuita, é de tal modo constitutiva do que nos rodeia que ganha foros de naturalidade, de tal modo presente que se torna imperceptível enquanto violência, a gratuitidade assinala a incapacidade corrente de manter as pessoas no seu lugar por via de mecanismos de controlo mais subtis e subterrâneos. Iluminam-se assim os vasos comunicantes entre os cordões policiais e o entrançado de exploração e dominação que compõe a violência sistémica do capitalismo – também ele cada vez mais visível. A gratuitidade da violência policial, enquanto desvio da norma, mostra-nos, justamente, que a régua por onde se media a «justa medida» se quebrou. A linha que divide entre a norma e o excesso, que sempre foi esquiva, está mais difusa. Extremando um pouco o argumento, poderíamos dizer que os dispositivos da ordem, nos dias que correm, não perdem o controlo num momento de exaltação passageira, antes perderam a capacidade de manter o controlo senão pela violência. Visto de outro ângulo, mas ainda com a lente bifocal da relação entre o útil e o gratuito: a violência gratuita da polícia é a forma como se manifesta a injunção da produtividade – a imposição do útil e do necessário – na hora da sua impossibilidade.
Há ainda um outro aspecto, porventura o mais importante, que reside no facto de, como é próprio em tempos de crise, e quebradas que foram as promessas inscritas no contrato social, se começar a vislumbrar a gratuitidade do próprio sistema. Este parece ter-se esvaziado de conteúdos e aparenta não ter um fim para lá da sua própria sobrevivência. É, nesse sentido, gratuito. E sendo o capitalismo gratuito, bem como cada vez mais difícil apontar para a brutalidade como algo de exterior ou acidental ao sistema, dados os danos visíveis e recorrentes que causa, a sua violência é, precisamente, gratuita. Isto ajuda a entender a dificuldade em manter as pessoas no sítio, trabalho que pertence ao sistema como um todo, e só em última instância à polícia. A crise actual não é apenas financeira, mas de reprodução social. São cada vez mais os que se desencontram com o lugar que supostamente deviam ocupar: o de trabalhadores, úteis, ou o de cidadãos, responsáveis. Quer voluntariamente quer empurrados, há muitos que não servem nem rendem: são supérfluos, gratuitos.
É também dentro deste quadro que devemos entender o modo como a acusação de gratuitidade é lançada a tudo aquilo que é classificado como puro vandalismo, exaltação «sem conteúdo» ou raiva «inconsequente» (a violência no seu «estado de natureza», para usar um termo hobbesiano). A expressão «violência gratuita» vai de par com a criminalização do protesto, que é o mesmo que dizer, com o seu afastamento do terreno político. Se extrairmos um gesto de luta ao contexto e razões que o enquadram, ou se essas razões são tais que a razão do sistema as desconhece, este surgirá forçosamente como gratuito. O mesmo é dizer que a narrativa hegemónica, que se define precisamente por abafar o espaço de explicações que não as suas, detém o poder de declarar a gratuitidade, ou não, de um gesto. A causalidade não é simplesmente abolida, mas diferida: veja-se o exemplo dos motins de Londres (Verão de 2011), de onde, a par do pasmo e susto, brotou um ramalhete de especialistas dedicados a dissecar as «raízes fundas» do problema. E, no entanto, no meio de tanta explicação, restava algo de opaco: aquele algo que está a mais, aquilo que o rol de razões não cobre. A gratuitidade começa, precisamente, nesse ponto em que o fio de causa e efeito se rompe. A explicação dos explicadores não explica, procura apenas preencher o lugar vago da falta de explicação. Do encontro destes vários elementos – crise financeira e económica, crise de reprodução social, crise de legitimação – tem resultado um nítido aumento e generalização do descontentamento. Neste contexto, um dos principais problemas parece residir no facto de ser cada vez mais difícil catalogar e identificar os «arruaceiros», isolando-os do «cidadão comum». Além disso, e apesar da criminalização do protesto, é também cada vez mais difícil colar o rótulo de «violência» a acções como a ocupação ou a reactivação de edifícios deixados ao abandono. E, no entanto, apesar da natureza genericamente pacífica das manifestações, bem como de outros modos de resistência, o espectro de hostes desordeiras, capazes de transformar a cidade num palco de «violência gratuita», é constantemente invocado. Arriscaria dizer que tal pouco tem a ver com a violência. A violência é, afinal, a parte da gratuitidade que a polícia melhor entende. Prende-se, isso sim, com um espectro mais lato. Esse espectro é o de uma gratuitidade mais vasta: um terreno que escape às definições existentes de utilidade ou cálculos de custo/benefício, a não ocupação de um lugar reconhecido na topografia política corrente, o exercício de uma liberdade que não seja um mero intervalo na injunção de produtividade.
Face a tudo isto, e reconhecendo que os problemas da luta contra o «estado das coisas» são em grande medida problemas muito materiais, que nada têm de gratuito – o que comer, onde ficar, como partilhar, como exercer a igualdade –, julgo que devemos aceitar e até cultivar a gratuitidade de que somos acusados. É que não somos de todo estranhos à não-gratuitidade – a violência disciplinada do trabalho, a rosca moída da cidadania responsável, a negociação paciente com as instituições. Conhecemo-la, quando muito, bem demais. A não-gratuitidade foi-nos de tal modo martelada que nos tornámos brutos, insensíveis aos seus chamamentos e à sua ideia de progresso. Quando podemos, sempre que podemos, tomamos distância e distraímo-nos dos seus propósitos. Podemos até dizer que, para lá de uma esterilidade, caímos numa forma de imbecilidade, se o imbecil é o que não percebe. Dispersámo-nos, e desperdiçámos os nossos talentos. Esquecemo-nos até, pelo caminho, de nos manifestarmos como deve ser. E assim pusemos, aparentemente, o pé fora da política, tal como as suas fronteiras são definidas. Que caminho se abre então? Não dispomos de um trilho ou um enredo que possa transportar um «Nós» estável de A a B, de projectar um curso, de colonizar o futuro. Mas na gratuitidade algo se produz, algo se organiza, algo se constrói. Algo para o qual ainda não há nome. A gratuitidade não é uma bandeira, um programa ou um fim em si mesmo, mas é, precisamente, o nome para essa ausência de nome. Não quer dizer que é apenas uma «roda livre», uma espécie de máquina de movimento perpétuo. Ou seja, não é uma celebração da inconsequência, da esterilidade, da falta de futuro. É o lugar disponível, cheio de contradições e dificuldades, para o nosso desencontro com as definições existentes do útil e do necessário. Enquanto esperamos que o termo «gratuito» perca o seu sentido, ou pelo menos a sua força coerciva, o gratuito pode ser a designação do terreno instável de um trabalho outro, paciente, continuado. A nossa oficina – este fruto estranho das nossas circunstâncias, mas que não decorre delas – é ainda um amontoado de peças soltas e de utilidade duvidosa. Não sabemos o que nela se produz. Esperamos que não produza cidadãos nem trabalhadores, e que não reproduza os sentidos ajustados a esses papéis, ou os sentidos que hoje moram nas palavras. A gratuitidade é assim um lugar – é o chão dos muitos lugares – de disponibilidade para desvios do destino anunciado. Por agora, o trabalho será sobretudo o de uma remoção dos fios que sustentam a ordem que nos enreda, e a nós com ela. A verdadeira violência da gratuitidade, a sua maior e paradoxal utilidade, seria a de ir minando o ciclo de violência sistémica, onde quer que ele opere. Para isso, falta-nos porventura um maior hábito de ligeireza, uma prática, livre mas sustentada, de uma imensa e frágil gratuitidade colectiva.
O presente artigo é o terceiro de três artigos inicialmente publicados no dossier «Violência» do n.º 3 da revista Imprópria. Editada pelo coletivo português Unipop, a Imprópria é uma publicação em papel dedicada à pesquisa e reflexão na área do pensamento crítico.