As reformas são revolucionárias quando há intervenção ativa dos trabalhadores em sua efetivação e quando elas não passam ao controle do Estado. Por Fagner Enrique
Descontando-se o período do arranque imperial dos Estados Unidos entre a década de 1890 e a década de 1920, toda a época de que nos ocupamos até agora, da Grande Depressão dos anos 1930 à Guerra Fria, é concebida por Mário Pedrosa, em A Opção Imperialista [1], como uma época de reformas contrarrevolucionárias. O autor divide a época das reformas contrarrevolucionárias em duas fases: a fase das reformas dos anos 1930 e 1940 (o New Deal, o nazifascismo, o stalinismo etc.) e a fase das reformas da Guerra Fria, oriundas dos Estados Unidos pós-New Deal e compreendidas no que o autor chamou de “neocapitalismo liberal”.
Para Pedrosa, essas reformas têm duas dimensões: uma econômica e uma político-social. A dimensão econômica caracteriza-se, essencialmente, pela quebra das ortodoxias, antes intocáveis, do capitalismo liberal, a partir dos anos 1930 [2]. No plano político-social, trata-se de reformas que passam a assegurar à classe trabalhadora um maior bem-estar social. Em ambos os casos, é o Estado que se encarrega da realização das reformas e é isso, precisamente, que as define como contrarrevolucionárias:
a ascensão da classe operária, que se fazia em nome dos direitos democráticos que ela ia conquistando, um a um, numa luta de sacrifícios durante mais de um século, deixou de ser obra sua, para o ser de um punhado de especialistas e funcionários, de burocratas que em nome dela decidiam de tudo, sem consultá-la. Ao contrário, mistificando-a. Eis a essência das reformas contra-revolucionárias da época [3].
Durante muito tempo, os trabalhadores tiveram de lutar intensa, violenta e obstinadamente para que um relativo bem-estar social lhes fosse assegurado, a contragosto das classes dominantes. Agora, era o Estado quem assumia para si a responsabilidade pelas reformas. Da mesma forma, os socialistas opunham o planejamento econômico aos automatismos do mercado, mas também daquele passa a se encarregar o Estado [4]. Em ambos os casos, demandas originadas no seio do movimento operário são sequestradas e voltadas contra a classe trabalhadora independente pelo Estado.
O New Deal, o nazifascismo e o stalinismo
Nos Estados Unidos, do ponto de vista econômico, Roosevelt quebra o padrão monetário do dólar, desligando-o do ouro, e intervém nos bancos para controlá-los. Do ponto de vista político-social, seguindo a receita keynesiana, Roosevelt lança um vasto programa de obras públicas, em plena recessão, para absorver o desemprego em massa [5]. O Estado intervinha na economia ao mesmo tempo para salvar o capitalismo em crise e socorrer os trabalhadores em apuros.
Na Alemanha, do ponto de vista econômico, sem dispor de reservas de ouro no Tesouro Nacional, Hitler cria várias espécies de marcos, controla bancos, põe fábricas em funcionamento, mesmo sem levar em conta sua rentabilidade contábil, e, do ponto de vista político-social, Hitler lança também um vasto programa de obras públicas, a fim de dar emprego aos desempregados e “abrir e pavimentar estradas para os futuros exércitos, contentando […] militares e oficiais ociosos e dando satisfação aos grandes magnatas do ferro e do aço, do carvão, da indústria química e da eletricidade”, enchendo o país de quartéis, depósitos, fábricas, minas, armamentos [6]. O mesmo tipo de intervenção estatal é aplicado [7].
A diferença entre a solução fascista e a solução americana, continua o autor, na esteira de Karl Polanyi, reside, tão somente, no fato de o fascismo promover uma “reforma da economia de mercado”, mas “ao preço da extirpação de todas as instituições democráticas, tanto no reino da indústria como da política” [8]. Desse modo, “o sistema econômico que estava em perigo de dissolução seria assim revitalizado, enquanto os próprios povos eram sujeitos à reeducação visando a desnaturalizar o indivíduo e torná-lo incapaz de funcionar como uma unidade responsável do corpo político” [9].
Para Pedrosa, os países fascistas não tinham os recursos e privilégios dos “grandes países imperialistas democráticos”, os quais puderam manter a democracia representativa porque “tinham possibilidade de, utilizando-se e explorando o acesso mais fácil às zonas de matérias-primas e os recursos e rendas provenientes do exterior, manter em relativo nível de vida as massas trabalhadoras e as classes médias, sem necessidade de instituir um regime de dieta e de restrições severo demais para elas” [10].
Todo o problema então consistia em escolher entre não intervir deixando que os milhões de desempregados se acumulassem, que as mercadorias se amontoassem sem escoamento, a fim de que o padrão monetário e o valor do ouro não sofressem ataque, até que de novo, automaticamente, não se sabe quando, os altos fornos da grande indústria voltassem a funcionar e novos compradores fossem achados para os estoques superabundantes de mercadorias, ou intervir o Estado para dar trabalho aos desempregados, criar artificialmente mercados, estimulando a procura, elevando muros protecionistas cada vez mais altos, subvencionando as indústrias de exportação para o dumping no exterior, desvalorizando a própria moeda para aumentar a concorrência externa. De um lado, se tratava de manter o valor do mercado internacional do dinheiro, de modo a permitir o intercâmbio livre dos produtos quando houvesse possibilidade, e do outro, cortando as amarras das economias nacionais respectivas desse mesmo mercado internacional, se tratava de sair das dificuldades por conta própria, independentemente de quaisquer outras considerações financeiras ou de doutrinarismo liberal econômico. Os homens que até então geriam a economia mundial, os grandes banqueiros, perderam para os novos partidários do intervencionismo [11].
Segundo o autor, do ponto de vista econômico, “uma grande ‘revolução’ […] se estava operando” [12]. Com a introdução da “finança funcional”, a abolição do controle da moeda pelo mercado, tornou-se possível uma maior direção das inversões e uma maior regulamentação da taxa de juros de depósitos bancários. Assim, “os grandes problemas da organização industrial” vão se tornando cada vez mais independentes de considerações puramente financeiras [13]. Tal como no socialismo, a economia passava a organizar-se independentemente de considerações financeiras, só que regida pelo Estado e visando à preservação da ordem social vigente.
A economia dirigida pelo Estado, em certos casos, chegou ao limite de fundir-se a ele, tornando-se hostil à colaboração internacional, “comunicando-se com o mundo exterior como se comunicam por cima dos muros de uma fortaleza sitiados e sitiantes” [14].
Essas economias, que prolificaram até a Segunda Grande Guerra, tiveram a sua expressão mais acabada sob o fascismo italiano e nacional-socialismo alemão. Não foram, contudo, liquidadas com a guerra. Deram lugar a formações idênticas, embora em graus de acabamento diferentes e de origens às vezes opostas. Hoje temos, sob outras formas políticas e com outra ideologia, sistemas econômicos semelhantes. A economia mais acabada nesse sentido é a da própria União Soviética [15].
E continua:
na Rússia, deu-se uma evolução no sentido da totalitarização da economia e da sociedade. […] O Estado tornou-se o senhor de todos os meios de produção. Nesta base, uma nova casta dominante surgiu, ao mesmo tempo em que o mercado livre de trabalho era suprimido, os sindicatos perdendo qualquer possibilidade de luta por aumento de salários e melhoria de condições de vida. Todas as formas de organização econômica e política perderam a sua autonomia, integradas no aparelho estatal. Não existe ali nenhum contrapeso de controle democrático. O Estado dispõe ao mesmo tempo da totalidade do poder econômico e do poder político. A consequência é que, se o automatismo do mercado foi perdido, nem por isso a economia deixou de se basear no sobretrabalho e na exploração desse sobretrabalho em favor do Estado. […] A exploração de trabalho chegou a um ponto em que foi instituído o trabalho forçado como fator permanente e indispensável ao funcionamento do próprio mecanismo econômico [16].
Trata-se de uma totalitarização muito semelhante à dos países fascistas: na Alemanha, por exemplo, o governo liquida “qualquer vestígio de ação coletiva independente pelo trabalho” [17].
A representação trabalhista foi eliminada. Os sindicatos foram destruídos. O direito de greve abolido. O contrato coletivo e a vasta maquinaria para solução dos conflitos trabalhistas foram suspensos. Como substituto para os sindicatos, os nazistas impuseram a Frente Alemã do Trabalho, uma organização dominada pelo partido, de todos os homens e mulheres do país que executavam “trabalho humano”, tanto de empregadores como de empregados. Salários, ordenados, condições operárias, previamente determinados pelo poder de barganha dos vários negociadores, agora em fixados pelos trustes do trabalho, nomeados pelo governo e de cujas decisões não havia apelo. Com a passagem do tempo os controles governamentais aumentaram, o trabalho foi perdendo cada vez mais sua mobilidade e a completa arregimentação foi posta na ordem do dia. Os operários se tornaram autômatos a serviço de um Estado militar, um Estado que dita o tipo de trabalho, o lugar do trabalho, as horas de trabalho e a renda do trabalho [18].
Contudo, isso tudo não significa, necessariamente, que as condições de trabalho e o nível de vida dos trabalhadores tenham deteriorado [19]. Significa, tão somente, que o Estado passava a dispor da renda nacional, “decidindo a seu talante da parte nela do setor do trabalho”, por vezes promovendo mudanças “na distribuição da renda nacional em favor do trabalho e a expensas do capital” [20].
Ao mesmo tempo, outros processos entravam em curso. Escreve Pedrosa:
sob o regime das reformas contra-revolucionárias institucionalizadas, inclusive nos países democráticos ocidentais, a eficiência produtiva aumentou, a racionalidade econômica cresceu, a cultura chegou às “massas”, mas tudo em detrimento do homem, do homem com os seus fins e aspirações contraditórias, substituídos esses por jornadas de trabalho mais curtas mas infinitamente mais intensas e um dia a dia cada vez mais cheio de mata-tempos, distrações e divertimentos organizados, sistemas de informações crescentes em quantidade e relativa diminuição do valor, propaganda das vantagens da melhor democracia, da melhor cerveja, do melhor calista, do melhor negócio, da melhor igreja, do melhor cinema, circo ou jogo, do melhor trabalhador ou patrão, do melhor doutor, da melhor mãe, etc., etc. O melhor no pior também é objeto de admiração. Todas as manifestações culturais de nosso tempo participam desse otimismo, desse enfechamento sobre o presente – é o ópio do povo. Tudo isso vem do arsenal totalitário das reformas contra-revolucionárias. […] Esse ideal foi criado pelo fascismo [21].
Outro ideal é o de criação de um poderoso Estado militar: a capacidade competitiva no mercado mundial passa a depender, cada vez mais, a partir de então, da força e da coesão da nação, de seus recursos financeiros e militares, uma unidade econômica e nacional se bastando a si mesma, expandindo seu poder até governar o mundo num império mundial. Aí, os conflitos de classe desaparecem, cessam, a serviço do todo. Em lugar da luta de classes, a luta da nação por um ideal de grandeza nacional [22]. Tanto os países fascistas quanto a União Soviética e os Estados Unidos, empenham-se nesse sentido. É o superimperialismo, “a base que se criou para a justificação de todas as reformas contrarrevolucionárias que, desde então, se fizeram e se vem fazendo” [23].
Por fim, o que não se tolera, sob regimes reformistas contrarrevolucionários, são as chamadas reformas de reformas de estrutura. Na ideologia americana, por exemplo, segundo Pedrosa, salvo em momentos de grave crise, como a abolição da escravidão e a Grande Depressão, não se mexeu na base natural e eterna do edifício social americano: a propriedade privada e o mercado, que, para os americanos, constituem a essência imutável da natureza humana ou, pelo menos, da natureza americana. Pedrosa encontra as origens desse conservadorismo radical no pensamento de Edward Burke, “o patrono do pensamento conservador de todos os tempos” [24]. Todos os regimes reformistas contrarrevolucionários são radicalmente avessos às reformas de estrutura.
O “neocapitalismo liberal”
A época das reformas contrarrevolucionárias, no entanto, não acaba com o fim do New Deal, dos fascismos e do stalinismo [25]. Um novo poderoso Estado militar conduz um novo tipo de reformas contrarrevolucionárias: “o Estado americano, que tem nas grandes corporações sua formidável armadura econômica” [26]. Essas reformas têm por objetivo, no entanto, restaurar o livre-mercado e a livre-empresa, de modo a garantir a ampliação do poder das grandes corporações, reduzindo o Estado a uma função meramente repressiva.
O Estado cumpre, a partir de então, novamente, a função de intervir em favor dos contratos comerciais, mas sem jamais deslocar o livre-mercado enquanto mecanismo regulador das trocas comerciais. Além do mais, o Estado americano reserva para si mesmo “o direito de intervir por toda parte, […] toda vez que um choque de interesses” surge “entre os países importadores de capitais americanos e os homens de negócios privados, donos desses capitais” [27].
Essa nova modalidade de reforma contrarrevolucionária chega à Europa por intermédio do já referido Plano Marshall: em troca de ajuda econômica para as obras de reconstrução do segundo pós-guerra, os Estados Unidos exigem a realização de reformas que assegurem um crescente protagonismo para as grandes corporações e criem condições favoráveis à livre-empresa e ao livre-mercado. O mesmo tipo de condição é imposto aos países latino-americanos, com a diferença de que eles deixam, progressivamente, de receber qualquer ajuda econômica americana logo após Segunda Guerra Mundial e, novamente, depois da passagem do momento mais crítico da Revolução Cubana; e com a diferença de que os Estados Unidos mostram disposição em patrocinar e apoiar golpes e ditadura militares comprometidas com a realização desse tipo de ajustamento.
Para Pedrosa, do ponto de vista político-social, o “neocapitalismo liberal” é caracterizado, essencialmente, por uma “rotina”. Segundo Pedrosa, “o gênio organizatório americano onde melhor se manifesta é na segurança com que descobre para cada uma de suas instituições a rotina correspondente” [28]. Por outro lado, “o seu mal é querer transplantar, não tanto essas instituições a outras terras e povos, mas com elas cada rotina” [29].
A “rotina” do “neocapitalismo liberal” é composta: a) por sindicatos que têm por única função – função neutra, burocrática, técnica – barganhar salários com os patrões, dirigidos por um tipo padrão de líder made in USA [30]; b) por uma imprensa “livre”, que, para ser “livre”, isto é, para não depender de subvenções de governos e, por isso, ter coloração política marcada, funciona como uma empresa industrial próspera, conquistando uma posição vantajosa no mercado de anúncios e estabelecendo uma relação orgânica com a indústria da publicidade: “uma máquina de informações (nem sempre as mais úteis, as mais sadias ou as mais oportunas) perfeita” [31]; c) pelo “consenso democrático”:
os meios para alcançá-lo não são difíceis. Com dois partidos políticos […] aquele “consenso” será obtido. Para que um “terceiro”, um “quarto”, um “quinto”? Para o “consenso democrático” ser mais funcional, mais cômodo ao leitor, não se lhe deve dar à escolha mais do que uma alternativa […]. Um terceiro partido ou um quarto já começa a dificultar a escolha do eleitor, pois inevitavelmente entrariam em outros elementos, ou pelo menos matizes diferentes das mesmas ideias […] ou questões em aberto. […] O jogo democrático deve ser jogado não só com respeito às regras estabelecidas, mas sobretudo dentro de uma “cancha” bem delimitada e intransponível [32].
Mas não é só nas disputas políticas que se estabelecem “regras de jogo” bem delimitadas e intransponíveis. Para Pedrosa, o mesmo ocorre nas relações entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos: “o partido dos subdesenvolvidos entra para jogar com suas bolas de gude e os big business vêm com suas bolas de ferro. Lá como cá, só devem entrar na ‘cancha’ os partidos já afeitos às limitações das regras do jogo, treinados (por técnicos americanos) para correrem bem (e satisfeitos) na pista” [33].
Ideologicamente, o ideal, sob o “neocapitalismo liberal”, é uma “sociedade sem história”: “não há futuro nem passado, só o presente perfeitamente controlado, equilibrado, acabado em si mesmo” [34].
As reformas revolucionárias
Às reformas contrarrevolucionárias Pedrosa opõe as reformas revolucionárias. As reformas são revolucionárias quando há “intervenção ativa do povo na efetivação das reformas verdadeiras, estruturais” [35], quer dizer, quando elas não passam ao controle do Estado. Tanto o conceito de “neocapitalismo” quanto o de “reformas revolucionárias”, Pedrosa toma-os emprestados de André Gorz – de sua obra Stratégie Ouvrìere et Neo-capitalisme, de 1964.
Para Pedrosa, nos países desenvolvidos, não há mais alternativa entre reforma e revolução, sendo esta entendida como insurreição violenta [36]. Na verdade,
a experiência histórica tem mostrado que ao concorrer para a melhor organização dos elementos de defesa e afirmação social das camadas populares e proletárias da sociedade vai a luta de classes perdendo em violência, em virulência, em explosões súbitas, como outrora, de rebeldes famintos, de escravos oprimidos, de negros perseguidos […] e a se desenrolar em processos de luta organizados, bem delimitados, viris mas disciplinados [37].
E Pedrosa conclui, mais à frente: “quanto maior peso social tiver a classe operária industrial menos caótico e violento será o processo revolucionário que a mover” [38]. A questão diz respeito, agora, não mais a “levantes prematuros, tentativas revolucionárias sem esperanças” [39] mas às reformas, reformas “que vão no sentido de uma transformação radical da sociedade” [40].
Trata-se de reformas que não são reivindicadas “em função do que é possível no quadro de um sistema e de uma gestão dados”, que “são incompatíveis com a conservação do sistema” e que são reivindicadas tendo em vista o que “deve tornar-se possível em função das necessidades e exigências humanas” [41]. Elas não são, portanto, determinadas “em função do que pode ser, mas do que deve ser” e não dependem da “validez” e do “direito de cidade das necessidades de critérios de racionalidade capitalista” [42]. Por causa disso, elas vão levando à transformação, por dentro, do neocapitalismo em socialismo [43]. “Este [o socialismo] vai se impondo e [se] introduzindo na estrutura daquele [o neocapitalismo] até transformá-lo, fazendo dele o seu contrário” [44].
Pedrosa estabelece, para os países desenvolvidos, um paralelo entre a “democracia direta” reivindicada pelas corporações capitalistas, quer dizer, o controle e a gestão direta do Estado pelo big business sob o “neocapitalismo liberal”, e a “democracia direta” reivindicada pela classe trabalhadora, quer dizer, o controle e a gestão direta da produção, no sentido do socialismo:
a direção capitalista da corporação […] é alienante, anti-social e reacionária, privatista. Se ela quer fazer do Estado seu Estado, mas sem intermediários, sem representantes, isso corresponde, em planos paralelos, à reivindicação mais profunda e de maior alcance social e cultural dos trabalhadores dos países de alto desenvolvimento, na Rússia como nos Estados Unidos, na Inglaterra como na Alemanha, Suécia e até na Iugoslávia, onde há um esforço conscientemente oficial nesse sentido: o de que as funções gestionárias sejam coletivas, não havendo mais lugar para medianeiros e representantes seus na direção da produção, mas eles mesmos, como trabalhadores, como produtores, com sua experiência, seus conhecimentos, seu ângulo de visão próprio. A “democracia direta” que proclamava o velho Rousseau como meio de exprimir a vontade do povo ou da maioria é aí que se manifesta ou se pode realizar. O conceito de representação da vontade do povo, da maioria, deve ser arquivado num museu de antiguidades. Pertenceu a uma outra civilização, civilização de minorias que encontrou no mecanismo das representações o segredo da perpetuação de seu poder, de sua riqueza e propriedade. A vontade da maioria não é o monstro abstrato incapaz de expressar-se a si mesmo inventado por Rousseau. É hoje um conceito manejável, sociologicamente verificável, que se exprime diretamente de mil maneiras e em mil escalões, nos limites dos vários “todos sociais” de que se compõe a sociedade. Mas é sempre uma relação direta e mútua, como corrente e contracorrente, entre dirigentes e executantes. Quer dizer sempre intercambiável. Eis o socialismo [45].
A revolução por meio de reformas dos países desenvolvidos se dá, portanto, através da difusão não anárquica, organizada e sem violências inúteis [46] da gestão direta da produção pelos trabalhadores: uma revolução proletária “calculada, disciplinada, constantemente criticando-se a si mesma” [47].
A revolução por meio de reformas dos países subdesenvolvidos, no entanto, para Pedrosa, é diferente. E, aqui, Pedrosa se reaproxima do nacionalismo desenvolvimentista de esquerda. Escreve o autor:
as nossas reformas são a revolução dos subdesenvolvidos – revolução mais ampla e menos definível, mais contraditória e complexa, mais impetuosa e mais plebeia, mais popular, isto é, menos homogênea socialmente. Ela é todo um processo de mudanças contínuas nas estruturas da sociedade, desde uma alteração profunda no dinamismo social das populações rurais, em que uma velha classe de proprietários fundiários desaparece para dar lugar a uma nova classe de capitalistas agrícolas em face de um novo proletariado rural direta e organizadamente assalariado, a uma modificação não menos radical na ordem econômica geral, com crescimento considerável do setor da propriedade pública até colocar sob o seu controle as principais alavancas de comando da economia nacional. O peso específico da classe trabalhadora tende a aumentar e o crescimento das forças produtivas irá depender de mais a mais das técnicas de planejamento e de uma política de investimentos de caráter acentuadamente social. Ela também visa a dar às populações que vivem no interior de seu território um sentimento novo, o de uma participação coletiva num todo nacional cultural enfim acabado ou completo, capaz de falar, entender-se, comunicar-se com o mundo num acento que lhe é próprio. Esse é o modelo que a história e a experiência empírica têm elaborado para o Terceiro Mundo [48].
É então que o autor apresenta a síntese do seu programa revolucionário para o Terceiro Mundo:
a revolução dos subdesenvolvidos é […] dupla: a emancipação nacional em face dos interesses imperialistas alheios e contrários. A emancipação das classes oprimidas e de baixos e médios rendimentos, internamente. Não basta que desenvolvamos ou criemos uma indústria, equipando-a com todos os recursos de que precise, arrancando os capitais onde estiverem para aquele fim, mas – nas próximas década – já não se poderá tolerar que essa tarefa se faça exclusivamente às custas da miséria das nossas populações. É preciso que ao mesmo tempo se alimente o povo, se vista o povo, se abrigue o povo, se o eduque, para uma nação moderna e modernamente equipada. O controle das rendas terá de ser severo, o controle dos investimentos implacável, a redução dos ganhos improdutivos será uma necessidade, a estandardização dos bens de consumo e duráveis uma imposição social, o monopólio do comércio exterior e do câmbio sem brechas, prioridade absoluta dos instrumentos públicos de ensino e educação tecnológica para o povo (inclusive a guerra ao analfabetismo); destruição do velho aparelho estatal e sua remodelação completa para servir às transformações da economia e da sociedade, abolição das forças armadas e sua substituição por milícias populares, aproveitamento de seus serviços técnicos e industriais para aplicações civis no desenvolvimento de infra-estruturas sociais e econômicas. Não há, assim, reformas de meio termo para contentar alguns grandes Estados ricos e poderosos. Toda reforma que nos países subdesenvolvidos se confinar a alterações administrativas, técnicas ou legais de ordem interna, será reforma tipicamente contra-revolucionária, pois visa a enquistar ou calcificar a subordinação da economia primária à do Estado ou Estados imperialistas, controladores dos recursos financeiros internacionais. Não emancipa o país. Ao contrário. E implica a permanência no estágio da estagnação ou dos níveis de subconsumo ou da mediocridade. Quer dizer da dependência [49].
Em suma, o projeto revolucionário de Pedrosa para os países subdesenvolvidos é não a autogestão, como para os países desenvolvidos, mas uma radicalização dos projetos “supermoderados” [50] de reformas para o Terceiro Mundo, propostos por economistas de esquerda como Gunnar Myrdal: projetos voltados para “fortalecer a base para os frágeis começos da democracia política nos países não desenvolvidos”, fazendo-os embarcar “nas reformas necessárias para quebrar as desigualdades sociais e econômicas”, por meio de “tentativas de controlar o consumo dos ricos” para “ganhar a confiança e a cooperação dos grupos de baixa e média renda”, para a efetivação de programas de desenvolvimento não financiados exclusivamente por estes grupos [51].
Notas
[1] Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, [S.l.], Civilização Brasileira, 1966.
[2] Id., ibid., p. 271.
[3] Id., ibid., p. 273
[4] Cf. id., ibid., p. 276.
[5] Id., ibid., p. 272. Roosevelt também garantiu a participação dos sindicatos em programas como o National Recovery Administration, dando início a uma política essencialmente corporativista para com o movimento operário; estabeleceu um programa de previdência social para os desempregados, os idosos, os incapacitados e as crianças desamparadas, a fim de minorar os efeitos da crise econômica; estabeleceu uma Lei Nacional de Relações Trabalhistas, a fim de regular as relações de trabalho, entre outras coisas (cf., p. ex., Robert A. Divine et al, América: passado e presente, Rio de Janeiro, Nordica, 1992, pp. 566-586).
[6] Mário Pedrosa, A Opção Imperialista, [S.l.], Civilização Brasileira, 1966, p. 272. Pedrosa cita, ainda, Paul Baran, para quem “foi a Alemanha fascista que, até hoje, usou mais extensamente a visão penetrante do keynesianismo (id., ibid., p. 288)”.
[7] Por mais que o capitalismo alemão fosse altamente organizado sob o nazismo, este, tanto quanto o New Deal americano, visava salvar a propriedade e a empresa privadas, embora estas não fossem mais completamente “livres”: “os nazis… mantinham a instituição da propriedade privada com muitos de seus antigos direitos e privilégios. A propriedade, por exemplo, continuou a ser uma fonte de rendas grandes e não produzidas pelo próprio trabalho. A propriedade, porém, não mais carregava consigo o direito discricionário de interferir no processo produtivo. O lucro privado continuou a existir como um dos importantes títulos à renda nacional. O motivo do lucro e a competição deixaram, no entanto, de preencher as funções confiadas a elas pelo capitalismo tradicional… Em lugar do antigo papel na produção e no processo de investimento eles agora funcionavam primeiramente como energéticos para estimular os homens de negócio a se empenharem a melhorar a produtividade de suas empresas. Todos esses desenvolvimentos significam que o papel do empreendedor na economia mudara (id., ibid., p. 284)”.
[8] Id., ibid., p. 275.
[9] Id., ibid., p. 275.
[10] Id., ibid., p. 276.
[11] Id., ibid., p. 275.
[12] Id., ibid., p. 276.
[13] Id., ibid., p. 276.
[14] Id., ibid., p. 276.
[15] Id., ibid., pp. 276-277.
[16] Id., ibid., p. 279.
[17] Id., ibid., p. 285.
[18] Id., ibid., pp. 285-286.
[19] Cf. id., ibid., pp. 286-287.
[20] Id., ibid., p. 287.
[21] Id., ibid., pp. 288-289.
[22] Id., ibid., p. 279.
[23] Id., ibid., p. 312.
[24] Id., ibid., p. 299.
[25] Pedrosa nutria esperanças quanto à desestalinização da União Soviética: “Hoje, depois da morte de Stalin e a derrocada do sistema stalinista, a União Soviética se acha em processo revisionista, visando a uma recuperação democrática, através reformas nas estruturas econômicas, para maior eficiência produtiva de seus trustes industriais e através uma descentralização no aparelho produtivo e burocrático supercentralizado e um refinamento mais alto dos métodos e finalidades do planejamento econômico global. Já estamos a mil léguas das reformas contra-revolucionárias, obscurantistas da era staliniana, como, por exemplo, o stakanovismo. Se as novas reformas forem levadas a bom termo e com todas as implicações delas decorrentes, uma era nova abrir-se-á para o povo russo e para o mundo – a era realmente do socialismo. A longa e dolorosa experiência russa terá enfim mostrado todo o seu alcance (id., ibid., p. 277)”.
[26] Id., ibid., p. 325.
[27] Id., ibid., p. 274.
[28] Id., ibid., p. 294.
[29] Id., ibid., p. 294.
[30] Id., ibid., p. 296.
[31] Id., ibid., p. 296.
[32] Id., ibid., p. 296.
[33] Id., ibid., p. 297.
[34] Id., ibid., p. 297.
[35] Id., ibid., p. 302.
[36] Id., ibid., p. 321.
[37] Id., ibid., p. 302.
[38] Id., ibid., p. 305.
[39] Id., ibid., p. 302.
[40] Id., ibid., p. 323.
[41] Id., ibid., p. 323.
[42] Id., ibid., p. 323.
[43] Id., ibid., p. 319.
[44] Id., ibid., p. 319.
[45] Id., ibid., p. 438.
[46] Id., ibid., p. 303.
[47] Id., ibid., p. 303.
[48] Id., ibid., p. 319.
[49] Id., ibid., pp. 320-321.
[50] Id., ibid., p. 302.
[51] Id., ibid., p. 301.
As obras que ilustram este artigo são de Cândido Portinari.
Esta série reúne os seguintes artigos:
1) a aurora do imperialismo americano
2) um imperialismo de novo tipo
3) a América Latina diante da guerra
4) o contexto da Guerra Fria
5) a América Latina em xeque
6) as reformas contrarrevolucionárias