Mais importante do que reconhecer a existência concreta ou em potencial de “privilégios” sociais é pensar como os indivíduos podem superar as desigualdades concretas ou em potencial existentes nos movimentos. Por Um Militante
Este artigo é um resultado preliminar de reflexões decorrentes de debates políticos e conversas informais com camaradas, bem como de conversas informais e discussões teóricas e políticas com colegas e amigos nos âmbitos pessoal e acadêmico. Estou certo de que muitos desses camaradas, colegas e amigos discordarão profundamente de algumas ou de todas as ideias aqui expressas. Meu contato com o que eu chamei, por falta de um termo melhor, de “teoria dos privilégios” – tomando o termo emprestado a outro artigo, como se verá –, embora talvez o termo mais adequado seja simplesmente “multiculturalismo”, deu-se nestes espaços: de militância, pessoal e acadêmico. Seja como for, o objetivo deste artigo é suscitar reflexões a partir de noções que fui sistematizando lentamente e que permanecem inacabadas. Trata-se, portanto, mais de um esboço do que de uma tese. Não espero convencer os adeptos radicais e dogmáticos da “teoria dos privilégios”, nem que estes “reconheçam” o que quer que seja, mas me coloco à disposição para um debate que me parece fundamental para o avanço da luta anticapitalista no Brasil e no mundo.
“O sujeito pós-moderno, diferentemente de seu ancestral cartesiano, é aquele cujo corpo se integra na sua identidade” – Terry Eagleton
A esquerda autônoma se caracteriza atualmente pela expansão, no seu interior, da hegemonia ideológica de um conjunto de “discursos” (para usar um termo em voga) caracterizados, sobretudo, pela afirmação de uma suposta vigência irrevogável, de uma forma ou de outra, de “privilégios” e “desprivilégios” sociais resultantes da constituição biológica dos indivíduos, sendo os “privilégios” e “desprivilégios” de raça e sexo os principais. Um artigo, recentemente traduzido e publicado neste site, chama esse conjunto de “discursos” de “teoria dos privilégios”. Poderíamos chamá-lo simplesmente de “multiculturalismo”, mas o termo “teoria dos privilégios” me parece útil por servir também à designação de um conjunto de afirmações fartamente e efusivamente proferidas por pessoas que se identificam com o marxismo ou o anarquismo. Assim, ao invés de simplesmente definir os adeptos da “teoria dos privilégios” como “multiculturalistas”, podemos perceber a intrusão, no marxismo e no anarquismo, de um conjunto de teses formuladas originalmente por fora do que se costumava conceber originalmente, antes do advento do multiculturalismo, como marxismo e anarquismo.
Pois bem, se de fato existe uma “teoria dos privilégios”, ela é essencialmente uma “teoria dos privilégios biológicos”. Nos discursos constituintes dessa “teoria”, por mais abundantes que sejam as tautologias referentes à “cultura”, o corpo é o ponto de partida e o ponto de chegada, de modo que o real fundamento dessa “teoria”, ao contrário do que afirmam os seus adeptos, não é uma análise da cultura em si – quer dizer, uma análise da cultura como uma esfera separada da esfera da biologia – mas uma redução da cultura a identidades e comportamentos supostamente decorrentes dos atributos físicos (biológicos) dos indivíduos.
Uma análise da cultura em si implicaria conceber as identidades e os comportamentos em geral dos indivíduos como não redutíveis aos seus atributos físicos individuais, o que de fato e no fundo não ocorre. Implicaria em não manter um foco exacerbado e exaustivo nos pontos de partida, nas origens, nos “lugares de fala”, que são geralmente reduzidos aos corpos e às supostas identidades e comportamentos deles necessariamente resultantes, e tentar refletir preferencialmente sobre as relações entre os indivíduos em sua dinâmica. Implicaria, em suma, em pensar os indivíduos não como reféns de suas origens – e como promotores involuntários de desigualdades historicamente constituídas e herdadas do passado – mas como sujeitos capazes de transformar seus comportamentos individuais e seu modo de pensar a qualquer momento, bem como de desafiar as desigualdades legadas pelo tempo.
No que se refere aos “privilégios” masculinos, por exemplo, fala-se frequentemente em gêneros, mas é interessante notar que o gênero masculino é geralmente reduzido ao sexo masculino quando o que está em jogo é denunciar os “privilégios” de que gozam, supostamente de antemão e para sempre, todos os indivíduos do sexo masculino. A própria fluidez dos gêneros em relação aos indivíduos, qualquer que seja o seu sexo, é geralmente abandonada em prol da denúncia dos “privilégios” masculinos. Por esse procedimento, a conexão rígida entre sexos e gêneros – que para muitos militantes constituiu justamente, ao longo da história, um dos principais fundamentos dos “discursos” e das práticas machistas – é sancionada pela “teoria dos privilégios”, ao invés de negada. E é sintomático que tenham sido elaborados, inclusive, os termos cis e trans, concebidos para determinar quando há ou não conexão rígida entre gêneros e sexos, algo criticado, por exemplo, por Judith Butler. Resumindo: costuma-se afirmar ou negar uma conexão rígida entre gêneros e sexos de acordo com a conveniência e, em certos casos, a tendência a essa afirmação é de fato absoluta.
Como a “teoria dos privilégios” sempre duvida veladamente da possibilidade de superação das relações de opressão entre homens e mulheres, entre pessoas brancas e negras, o que há de ser feito com os indivíduos que supostamente não querem ou não podem (ou não podem querer) renunciar aos seus “privilégios”, pois que eles resultam da sua própria constituição biológica inescapável, é fazê-los “reconhecer” tais “privilégios” e, quer reduzi-los à nulidade ou à quase nulidade política em organizações “mistas” – de homens e mulheres, de pessoas brancas e negras –, quer criar espaços de poder especiais e exclusivos para indivíduos que são, supostamente, biologicamente condenados ao “desprivilégio”.
Nesse sentido, é comum a falácia de que, se a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores, a emancipação dos indivíduos “desprivilegiados” será obra sua e somente sua, sendo vedado aos indivíduos “privilegiados” participação ativa com direito de intervenção crítica nesse processo emancipatório. Trata-se de uma falácia porque, embora as lutas dos trabalhadores tenham de conservar a sua autonomia perante o Estado e as empresas e instituições patronais, indivíduos de qualquer origem social podem e devem (e devem poder) participar ativamente das lutas proletárias em curso, inclusive com direito à polêmica. Muitos foram os indivíduos de origem social burguesa e aristocrática que contribuíram imensamente para o avanço das lutas dos trabalhadores nos últimos séculos (e isso é tão evidente que não se faz necessário sequer nomeá-los). Se quisermos uma sociedade igualitária, sem desigualdades referentes ao sexo ou à cor de pele de uma pessoa e sem discriminações ligadas à sua origem social, é preciso trabalhar para construir essa igualdade já no processo de luta.
No entanto, a superação das relações de opressão entre indivíduos de constituição biológica diversa é sempre remetida pelo adeptos da “teoria dos privilégios” para um vago porvir e, por mais que haja declarações públicas recorrentes de que essa é uma meta fundamental, a necessidade de reduzir pessoas brancas ou do sexo masculino à nulidade ou à quase nulidade política em organizações “mistas” ou de constituir organizações exclusivas para pessoas negras ou do sexo feminino coloca essa superação, na prática, num futuro sempre utópico e distante. Se a inversão de papéis ou a segregação são necessárias para o bom convívio, então uma solução radical – quer dizer, efetiva – para o problema está condenada ao limbo. Em compensação, um mecanismo discursivo ao qual frequentemente se recorre para justificar a prorrogação permanente das relações igualitárias é o de apresentar como utópica a possibilidade de construir a igualdade aqui e agora, pois todo indivíduo “privilegiado” sempre partirá supostamente de uma “posição de privilégio” – que sempre remete ao seu próprio corpo e, portanto, à sua constituição biológica – que ele supostamente sempre se esforçará (pelo “discurso” ou pela ação) para manter intacto, de modo que pessoas negras ou do sexo feminino nunca poderão concorrer ou competir em pé de igualdade com indivíduos “privilegiados”: estes sempre trarão para dentro de qualquer espaço os seus “privilégios”, o que implica sempre trazer impedimentos para a conquista do “protagonismo” por parte de indivíduos “desprivilegiados” e para a sua emancipação. E trata-se mesmo de uma concorrência, de uma competição, como se verá.
A ênfase da “teoria dos privilégios” na conexão rígida entre características físicas individuais e inúmeras modalidades de opressão, estas resultando rigidamente daquelas, tende a dificultar ou mesmo impossibilitar pensar em como superar e abolir essas modalidades de opressão. Na verdade, aboli-las, muitas vezes, sequer configura um objetivo. O raciocínio dos multiculturalistas ou dos adeptos da “teoria dos privilégios” segue o esquema a seguir: os homens, brancos, heterossexuais, “cis”, de renda média ou superior, etc., etc., etc., possuem os seus “espaços de poder” e os seus “privilégios”; tais “espaços de poder” e “privilégios” devem ser reconhecidos por todos, tanto pelas pessoas “desprivilegiadas” quanto pelas pessoas “privilegiadas”, porque, na medida em que são reconhecidos, criam-se condições para a conquista do protagonismo por parte das pessoas “desprivilegiadas”; esse protagonismo pode se dar em espaços exclusivos ou “mistos”, a depender da disposição das pessoas “privilegiadas” em recolherem-se, quer à passividade absoluta ou relativa, quer aos seus próprios “espaços de poder” e “privilégio”, o que depende, por sua vez, das demandas apresentadas pelas pessoas “desprivilegiadas”; no fim, não se trata de um empenho em estabelecer relações igualitárias em espaços comuns a pessoas de qualquer sexo ou cor de pele: trata-se, na verdade, de cada grupo identitário ter o seu próprio espaço de poder ou de “empoderamento”. A ênfase se dá no reconhecimento dos “privilégios”, o que acontece em duas dimensões: reconhecendo a sua existência e reconhecendo que eles são de fato insuperáveis.
Sim, trata-se frequentemente, na verdade, de acordo com o raciocínio acima, de um esforço no sentido da conservação da existência dos “espaços de poder” e “privilégio” dos grupos de indivíduos “privilegiados”. Quer dizer, quando existem episódios concretos de racismo ou de machismo nos movimentos, trata-se de apresentar soluções baseadas na inversão de papéis ou na segregação, rejeitando a possibilidade de o movimento impedir a repetição de tais episódios através da participação conjunta de pessoas brancas e negras, de indivíduos do sexo masculino e feminino, e favorecendo divisões e hierarquizações que a esquerda deveria se esforçar por abolir. Os chamados “espaços de poder” e “privilégio” dos chamados indivíduos “privilegiados” acabam, nesse sentido, mostrando-se úteis, pois enquanto houver homens, brancos, heterossexuais, “cis”, de renda média ou superior, etc., etc., etc., ocupando “espaços de poder” e “privilégio”, haverá justificativa para reivindicar a passividade absoluta ou relativa das pessoas “privilegiadas” em espaços “mistos” ou a constituição de espaços exclusivos, nos quais somente as minorias – e, em progressão infinita, as minorias das minorias das minorias das minorias… – tenham o monopólio das atividades, o monopólio do direito de voz, o monopólio da “ressignificação” dos discursos, o monopólio da razão [1].
Ainda sobre a questão do “empoderamento”, este, em diversas ocasiões, tal como os “privilégios” dos indivíduos “privilegiados”, nunca tem, nunca terá e é mesmo bom que não tenha fim. Frequentemente os espaços exclusivos são justificados como garantia de que os indivíduos “desprivilegiados” fiquem à vontade entre seus pares, consigam ter voz e visibilidade, não se sintam intimidados e conquistem o seu próprio protagonismo. Os espaços exclusivos são justificados, em suma, como espaços “seguros” para os indivíduos “desprivilegiados”; outra modalidade de espaços “seguros”, no entanto, parece ser a dos espaços “mistos” que adotam uma nova modalidade de punitivismo, nos quais indivíduos acusados de alguma forma de opressão são, em regra, expostos e punidos, desta ou daquela maneira, para servir de exemplo. Muitas vezes, a defesa dos espaços exclusivos segue um raciocínio etapista: os indivíduos “desprivilegiados” precisam primeiro se “empoderar”, reunindo-se com os seus “iguais”, preparando-se para, na etapa seguinte, lidar com o “outro”, o “diferente”, o naturalmente “opressor” (que deve ter feito também o seu dever de casa, reunindo-se com os seus pares para “reconhecer” os seus “privilégios” e a necessidade de apresentar uma maior ou menor passividade política nos espaços “mistos”). Às vezes, a segunda etapa é concebida como um momento de superação das desigualdades (ou melhor, dos “privilégios”), mas geralmente, tal como se verifica nos raciocínios característicos dos projetos revolucionários etapistas, a segunda etapa é mais um ideal ao qual não se chega nunca do que uma possibilidade concreta do presente. Uma questão começa a se impor, então, para as pessoas mais atentas: chegará algum dia o momento da igualdade? Além do mais, acaba-se também por naturalizar os membros de grupos sociais oprimidos enquanto indivíduos vulneráveis e incapazes de conquistar a igualdade (ou melhor, o “protagonismo”) quando diante de indivíduos “privilegiados”.
Os movimentos que lutam pela emancipação social de classes e grupos de indivíduos subalternos, oprimidos e explorados, costumam abrir possibilidades de ascensão social para aqueles que se consolidam como lideranças desses movimentos. A burocratização, além de sempre servir para renovar o capitalismo sobre novas bases, serve também para garantir a ascensão social de novos gestores (e gestoras). Estes, realizando a gestão das lutas sociais, capacitam-se à gestão do capitalismo e, tanto numa quanto noutra modalidade de gestão, acabam acumulando… “Privilégios” (prefiro afirmar haver aí não um acúmulo de “privilégios” mas uma concentração de poder, que leva ao surgimento de novas formas de desigualdade, opressão e exploração). A esquerda autônoma (quer seja ela marxista ou anarquista), sob a hegemonia da “teoria dos privilégios” ou sob a intrusão do multiculturalismo, tem criado condições para o surgimento de novas lideranças, de novos gestores, de novos (por assim dizer) “privilegiados”, de novas burocracias.
Contudo, mais importante do que constatar os riscos, as possibilidades e as tendências de burocratização dos movimentos autônomos é pensar em como superar tudo isso e encaminhar soluções práticas nesse sentido, sem acentuar ainda mais as divisões internas à esquerda autônoma. Esta precisa se preocupar não somente em identificar e denunciar burocracias mais ou menos consolidadas nos movimentos (por esta ou aquela razão). A denúncia pela denúncia deve dar lugar ao entendimento no sentido da superação do problema, contanto que os termos do entendimento não se resumam justamente a cristalizar o comando de uma nova burocracia (por esta ou aquela razão). Somente assim os movimentos anticapitalistas e libertários tornar-se-ão capazes de edificar uma verdadeira autonomia, assentada numa solidariedade de classe entre oprimidos e explorados, capaz de fazer frente à autonomia e à solidariedade de classe de opressores e exploradores – os quais, apesar de suas divisões internas, são quase sempre capazes de manter a unidade de ação e, sobretudo, de explorar as fragilidades e divisões internas às organizações anticapitalistas e aos movimentos dos trabalhadores. O dogmatismo – e a transformação da polêmica aberta e sincera em desavença e luta fratricida, muitas vezes motivada por empatias e antipatias pessoais – tem sido a causa de inúmeras derrotas da esquerda anticapitalista.
Sendo assim, mais importante do que “reconhecer” a existência concreta ou em potencial, no interior dos movimentos anticapitalistas, de “privilégios” desfrutados por pessoas de determinado sexo ou de determinada cor de pele é pensar em como as pessoas de todos os sexos, de todas as cores de pele, podem superar as desigualdades concretas ou em potencial existentes nesses movimentos; e pensar em como superar as inibições com as quais porventura ainda sofrem, na relação com os demais militantes, militantes que compõem grupos sociais historicamente oprimidos e discriminados. Essa superação é grandemente dificultada quando o que se requer de um grupo de indivíduos é que ele se anule politicamente, de modo absoluto ou relativo, ou quando o que se requer de diferentes grupos identitários é que cada um tenha o seu próprio “espaço de poder” e “privilégio”, o seu próprio espaço de “protagonismo”, concentrando debates, articulações, deliberações, funções e informações, por exemplo, e eventualmente disputando a direção geral da luta. Esse tipo de requerimento serve apenas para acentuar desconfianças recíprocas e favorecer disputas internas na esquerda autônoma. É inevitável que, no interior de movimentos anticapitalistas e libertários, surjam objeções a esse tipo de requerimento: para os adeptos da “teoria dos privilégios”, porém, essas objeções remetem sempre à necessidade das pessoas “privilegiadas” de conservarem os seus “privilégios”; a preocupação com a burocratização e com a cristalização de divisões e disputas internas não costuma ser encarada como a causa desse tipo de objeção.
Essa deve ser uma preocupação fundamental, sobretudo agora, quando se anuncia uma nova jornada de lutas autônomas no Brasil. Começarão novamente os movimentos autônomos por mobilizar uma grande massa de manifestantes, em prol de demandas concretas dos trabalhadores, terminando novamente por se digladiarem por conta de divergências relacionadas a questões de gênero, raciais etc.? Ou a esquerda autônoma brasileira aprenderá com os erros da jornada anterior e avançará na luta por conquistas universais – capazes de beneficiar pessoas de qualquer sexo e cor de pele etc. – baseadas na movimentação autônoma da classe trabalhadora?
Enfim, voltando à “teoria dos privilégios”, parece-me que muitas vezes a defesa dogmática dessa “teoria” se dá também por conta de uma desconfiança, bastante difundida na esquerda autônoma, em relação ao que eu gostaria de chamar de “militância realmente existente”, fazendo um paralelo com o “socialismo realmente existente”. Os adeptos da “teoria dos privilégios” reproduzem, sob nova roupagem, uma certa frustração que consumiu e ainda consome grande parte da esquerda em relação ao “socialismo realmente existente”. A frustração volta-se agora e com força para a não realização da utopia da militância perfeita, algo semelhante à frustração com a não realização da utopia da sociedade perfeita.
Não quero com isso negar que a militância autônoma e libertária seja em grande parte carregada de desigualdades e de relações de opressão com as quais precisamos lidar. Em certas situações, é justificável e legítimo que grupos de indivíduos oprimidos se reúnam separadamente para debater situações concretas de opressão (casos concretos de machismo e racismo, por exemplo) dentro dos movimentos autônomos: quando há uma recusa deliberada, sistemática e recorrente da maior parte dos militantes em refletir sobre as desigualdades existentes e as situações concretas de opressão e também sobre as alternativas possíveis para impedir que elas se reproduzam; e também quando parte da militância silencia sobre ou encobre episódios de agressão, por exemplo. Mas, mesmo nesses casos, é muito improvável – embora não seja impossível, é claro – que, por exemplo, todos os indivíduos do sexo masculino silenciem sobre ou encubram agressões ou desigualdades de gênero num movimento. Da mesma forma, é muito improvável – embora, novamente, não seja impossível – que todas as pessoas brancas de um movimento silenciem sobre ou encubram episódios de discriminação racial. Em ambas as situações, é quase impossível que não se encontre pessoas com quem contar para superar tais problemas e fortalecer os laços de solidariedade que garantem a coesão da militância.
Em certos casos, porém, parece haver uma necessidade – associada a interesses que vão na contramão do princípio horizontal de organização das lutas anticapitalistas – de exacerbar a resistência à reflexão e à busca da soluções para tais problemas por parte de indivíduos “privilegiados” [2]. Seja como for, é preciso que haja maturidade de todos os lados para perceber que não estamos lidando com uma militância perfeita, nem com indivíduos perfeitos imaginados, que pensam e agem como gostaríamos que pensassem e agissem.
Por fim, é preciso acrescentar que pensar a dinâmica interna das organizações de esquerda do ponto de vista de relações sociais entre indivíduos de trajetórias as mais diversas e fluidas – relações sociais em processo permanente de desenvolvimento, sujeitas permanentemente a transformações e mudanças de curso, pois que as próprias trajetórias dos indivíduos passam por idas e vindas e mudanças de rumo – parece ser muito mais útil e objetivo do que pensá-las como estruturadas por hierarquias preestabelecias e estanques (os “privilégios”), as quais, no limite, fazem sempre referência à constituição biológica dos indivíduos em interação. É evidente que não existe conexão rígida entre os comportamentos e as opiniões dos indivíduos e a sua constituição biológica. Da mesma forma que a origem de classe de um indivíduo não elimina a possibilidade de ele atuar politicamente em prol da emancipação da classe trabalhadora, contribuindo no desenvolvimento de relações coletivistas e igualitárias, pessoas de qualquer cor de pele ou sexo podem atuar politicamente em prol da emancipação de quaisquer grupos sociais oprimidos. Os indivíduos, ao contrário das instituições, fazem por merecer o benefício da dúvida. E, mais importante, o capitalismo – e com ele todas as relações desiguais e opressivas ainda vigentes – nunca será abolido se os conflitos internos às organizações da esquerda anticapitalista não forem resolvidos no sentido da restauração da solidariedade e da unidade de ação e no sentido de impedir o surgimento de novas burocracias.
Notas
[1] Por exemplo, somente pessoas negras podem ressignificar o termo “negro”, retirando-lhe o conteúdo racista e atribuindo-lhe um sentido vinculado à luta contra o racismo. Os termos que possuem carga negativa para os indivíduos “desprivilegiados”, como, por exemplo, o termo “denegrir” para os negros, quando usados por pessoas brancas, são um reflexo do racismo vinculado à sua condição biológica de pessoas brancas. E, na verdade, um negro que porventura use, em algum momento, num debate ou numa conversa informal, o termo “denegrir” estará reproduzindo, mesmo que inconscientemente, os discursos racistas que resultam da dominação branca. O mesmo ocorre, por exemplo, com o termo “histeria”. Mesmo que a prática concreta de um indivíduo não seja machista, o uso de um termo como esse num debate político, sobretudo num debate envolvendo feminismo e questões de gênero, revela o machismo resultante da sua constituição biológica “privilegiada” (caso este seja homem) ou o machismo decorrente de uma não adaptação a padrões comportamentais politicamente corretos fixados pelos movimentos identitários (caso se trate de uma mulher). A própria semântica sempre constituiu um “privilégio” de grupos de indivíduos “privilegiados”, cabendo agora torná-la um “privilégio” de grupos de indivíduos “desprivilegiados”. Sobre o monopólio do direito de voz, este parece vigorar com maior intensidade quando o que está em jogo é o direito ou não de defesa de indivíduos “privilegiados” acusados de agressão.
[2] É preciso enfatizar, contudo, que muitas pessoas aderem à “teoria dos privilégios” e às suas soluções práticas e teóricas fáceis não por interesses escusos mas por convicção (uma convicção resultante da desconfiança em relação à “militância realmente existente”) ou por empatia em relação às pessoas que reproduzem, de uma forma ou de outra, a “teoria dos privilégios”. O pessoal torna-se político. Além do mais, as pessoas mais críticas e mais questionadoras costumam ser – ou ser consideradas – antipáticas e provocadoras, quando não arrogantes.
As obras que ilustram este artigo são da autoria de Hans Bellmer.
Vou tocar num ponto do artigo, onde ele fala de “luta fraticida” que deveria ser evitada dentro da esquerda autônoma.
Embora tenha gostado do artigo, acho que tal posição não condiz mais com a realidade dos fatos.
Semana passada comunistas e anarquistas tiveram suas cabeças estouradas por tiros de metralhadoras numa ação de televisionários fascistas de fundamentação religiosa.
A esquerda identitária, a qual se vincula à teoria dos privilégios, aqui e alhures ficou entre a relativização da barbárie e a simpatia mal-disfaçada aos fascistas.
Se no passado a esquerda, através da consigna “socialismo ou barbárie”, buscava apontar que o socialismo era a única alternativa à barbárie inevitável engendrada pelo capitalismo, hoje a esquerda identitária se coloca abertamente do lado da barbárie, e contra qualquer projeto socialista. Não há análise entre essa esquerda identitária do surgimento desse fascismo religioso a partir das dinâmicas do capitalismo e das lutas sociais. Não há qualquer visão global das dinâmicas econômicas e políticas, pois o identitarismo é totalmente imerso no aqui e agora, no que se é, e por isso tem um caráter necessariamente conservador, quando não reacionário.
O assassinato dos cartunistas do Charlie Hebdo é o que pode-se chamar de tipo-ideal, no sentido weberiano, de ação fascista. Não é possível algo mais extremo e mais explícito. O fato é que a esquerda identitária se identificou mais com esse tipo-ideal de reação fascista do que com o socialsmo e iluminismo da equipe do Charlie Hebdo, e da tradição de esquerda que eles representam.
Pode haver algo mais fraticida do que simpatizar com os assassinos ou assassinar simbolicamente a esquerda que foi metralhada fisicamente?
Isso não ocorre apenas dentro da esquerda autônoma. O identitarismo multiculturalista é um modo de ver o mundo que impregna pessoas que se dizem de esquerda de diversos partidos, e vai além da própria esquerda.
Não é mais o caso de não saberem ainda que são fascistas. Os identitaristas-multiculturalistas Já Sabem que São Fascistas. Disso não pode haver dúvidas diante de pessoas esclarecidas,universitárias, estudiosas, e suas posições frente a esse tipo-ideal de ação fascista.
A questão aos socialistas é se dar conta de que pessoas que militam com elas, que podem ser até amigos e amigas pessoais, são fascistas. Disso não se pode enganar. Não é mais tempo de condescendência.
Mesmo que as formas de combate desse fascismo não possam ser totalmente abertas, é fundamental ter claro de que não se trata de luta fraticida quando se luta contra aqueles que estouram nossos miolos.
Caro Operário Gay,
Concordo com boa parte dos seus argumentos, mas minhas opiniões não são tão extremas. Por exemplo, você diz que “hoje a esquerda identitária se coloca abertamente do lado da barbárie, e contra qualquer projeto socialista”. Na verdade, eu acho que, em muitos casos, isso tem mais a ver com uma tendência à vitimização e à empatia para com, digamos assim, identidades historicamente oprimidas do que com um reacionarismo aberto ou velado. Tendência esta motivada, creio eu, por uma necessidade de adequação ao politicamente correto ou por ingenuidade e inexperiência. Acho que a falta de preparo teórico é o determinante em muitas ocasiões; e o enquadramento exercido pelo politicamente correto em outras. No que se refere à falta de preparo teórico, a esquerda identitária desconhece, por exemplo, o fato de que os fundamentalistas islâmicos têm sido opressores históricos, não somente no mundo muçulmano mas também fora dele (via, por exemplo, atos de terrorismo). Falta-lhe, na verdade, consciência histórica. E, no que se refere à empatia, é evidente – para nós, pelo menos – que uma política motivada pelo afeto acaba abrindo caminho para o fascismo, mas isso não parece tão óbvio para a esquerda identitária (É comum se deparar com a afirmação de que só há engajamento verdadeiro por uma causa quando há empatia; e que só se tem empatia pelo “outro” – e pela causa do “outro” – quando se se experimenta o tipo de opressão sofrido pelo “outro”; e que só se consegue experimentar o tipo de opressão sofrido pelo “outro” quando se compartilha dos seus atributos físicos. Isso tudo é aceito dogmática e acriticamente: tornou-se um senso comum. Trata-se de um erro teórico fundamental: para a esquerda identitária, a minha consciência é absolutamente limitada pelas experiências decorrentes dos meus atributos físicos). Novamente, creio eu que isto se deve à sua falta de preparo teórico, desta vez em relação à natureza do fascismo. Seja como for, acho que se trata, em muitos casos, mais de uma militância – e de uma esquerda em geral – ingênua e inexperiente do que de uma nova modalidade de fascismo (embora seja necessário reconhecer que uma nova modalidade de fascismo poderá encontrar aí um terreno mais ou menos fértil). Não é evidente, por exemplo, para boa parte da esquerda influenciada pelos discursos identitários, a incompatibilidade do identitarismo com uma visão global das relações sociais (tanto econômicas quanto políticas), mesmo porque não são poucas as pessoas na esquerda que afirmam o contrário. Portanto, hostilizar todas as pessoas que defendem essas ideias e classificá-las a priori como reacionárias – e encará-las como inimigos – não me parece recomendável: há que ser feita uma avaliação específica de cada caso particular. Acho que muitas pessoas podem ser influenciadas e mudar de opiniões e de práticas; outras não, e são estas que devem ser combatidas abertamente, tendo o seu reacionarismo denunciado. O problema é que a maior parte dessas pessoas acredita na eficácia da inversão de papeis e da segregação para a superação das desigualdades, dentro e fora dos movimentos. A esquerda identitária afirma-se pela negação da eficácia do igualitarismo no interior dos movimentos (e também fora deles). Ela nega a possibilidade de superação das desigualdades, se os indivíduos “desprivilegiados” não constituírem espaços exclusivos de poder (ou “empoderamento”) ou se eles não forem imunes a oposições e críticas – por parte dos indivíduos “privilegiados” – nos espaços “mistos”. Além do mais, ela nega que qualquer luta possa ser vitoriosa, sem que tais critérios “anti-privilégios” sejam adotados (ou outros, como a punição – sem direito à defesa – de acusados de agressão, por exemplo; ou a “detonação” e o escracho de tais acusados, que são considerados eficazes para garantir a segurança dos indivíduos “desprivilegiados”, mas que encontram um paralelo interessante com os programas policiais sensacionalistas, que violam diariamente os direitos fundamentais dos “suspeitos” de praticar qualquer crime). Trata-se – para nós, que fazemos oposição à esquerda identitária – de desafiar o senso comum em relação à eficácia de tais critérios e práticas. O problema é que, muitas vezes, as lutas realmente acabam refluindo por conta de “rachas” ou de disputas internas, que afastam os militantes em geral da luta de classes. A esquerda identitária cria, nesse sentido, condições para a “correspondência” do seu discurso à realidade, o que deve ser denunciado. Tão logo sejamos capazes de superar esse senso comum, a esquerda identitária encontrará dificuldades para continuar a se afirmar e a convencer a militância – e a esquerda em geral – mais ingênua e inexperiente.
Um Militante,
Como já escrevi demais, tentarei ser sucinto.
Como pode ser visto pelo que já comentei, discordo de que se trata de falta de esclarecimento, de que as pessoas que formam essa esquerda identitária são ingênuas, inexperientes, sem esclarecimento, como se bastasse falar as coisas certas e dar os textos certos para elas.
É verdade que existe uma heterogeneidade, e que há sim os ingênuos e pouco esclarecidos. Mas esses a meu ver são de certo modo residuais. E há muita gente esclarecida, com acesso a muita informação e reflexão. Muita gente que leu inclusive as mesmas coisas que eu durante muitos anos.
Não são ingênuos, tanto que essas teorias do privilégio chegadas ao brasil indicam que pelo menos uma parte dessas pessoas leem essas teorias e as adotam. Elas não chegaram aqui pelo espírito santo. Trata-se de uma opção política, não de falta de esclarecimento.
Essas teorias multiculturalistas são escolhidas porque se adaptam melhor aos objetivos dessas pessoas, que por sua vez, na sua relação de preferência por elas em detrimento do socialismo, são consequencia da desestruturação da classe trabalhadora. E se adaptam também à estrutura de caráter (no sentido psicológico) delas. Estrutura de caráter que é consequência do social em que estamos inseridos, com todos os seus determinantes. Sim, vivemos uma tendência conservadora, que já é mais do que clara na própria esquerda.
Textos como este servem muito mais a nós mesmos do que como esclarecimento aos residuais. E dizer que serve mais a nós mesmos não é lhes diminuir a importância. Porque no combate precisamos ter convicção, argumentos, moral. Acima de tudo eles servem para nos esclarecer, mais e mais, do que percebemos e de alguma forma sabemos. Essa é para mim a importância principal deles.
Quando digo que não é mais tempo de condescendência, quero dizer entre outras coisas que estamos recuados, e quanto mais recuamos mais espaço damos. Veja como estamos aqui discutindo usando pseudônimos. Mesmo que por questões táticas, especificamente nessa discussão seja válido o pseudônimo, em quantas outras não usamos pseudônimos para fugir da retaliação e perseguição da vertente feminista do multiculturalismo? A esse ponto chegamos e já estamos quase naturalizando que não possamos dizer o que pensamos por reprimenda, não do Estado, mas de pessoas que achamos que são frades e freiras. Não, não são frades nem freiras, como já disse.
É preciso encarar mais de frente, e menos de lado. Existem duas armas que o multiculturalismo utiliza para se expandir: o MEDO e a CULPA. Não se faz política com medo ou com culpa, pelo menos não nas doses que o multiculturalismo e os multiculturalistas tentam nos impor.
Se não soubermos neutralizar esses dois instrumentos de poder, a partida estará perdida.
Provavelmente quem está lendo esse comentário já possui a culpa neutralizada em si. Mas o medo não.
E o medo vem de ser acusado, julgado, rotulado, estigmatizado, execrado. O medo vem da possibilidade de rompimento de laços afetivos, laços com uma coletividade.
O medo existe em grande parte porque ainda damos alguma legitimidade ao julgamento que essas pessoas fazem. Porque achamos que ainda compartilhamos valores, que ainda são dos “nossos”. Por que ainda nos incomodamos de tal forma com o julgamento de politicamente incorreto deles e suas consequências.
O medo vem do incômodo, por exemplo, de ser chamado de esquerdomacho por alguém que se diz de esquerda, quando ao mesmo tempo não se tem medo de ser chamado de petralha pelo colega direitista do trabalho.
Enquanto acharmos que somos companheiros e companheiros de luta, a arma do medo estará na mão dos multiculturalistas, que é o que sabem usar. Participar de lutas juntos é diferente de ser companheiros. Não existe irmandade com uma AK-47 apontada pra cabeça.
Se é para continuar com esse nível de medo, melhor nem fazer política, e digo isso para mim também.
Quer dar um passo importante, agora, diante das circunstâncias, para frear o avanço do multiculturalismo identitário na esquerda? Que se criem formas coletivas de neutralizar/acabar com o medo.
Caro Operário Gay,
Feitas as observações do seu último comentário, concordo com a sua perspectiva. Realmente trata-se de enfrentar o multiculturalismo e neutralizar a sua afirmação e expansão na esquerda através da imposição do medo e da culpa. Creio, no entanto, que essa esquerda menos esclarecida ou mais ingênua – que você coloca como residual – pode ser influenciada e desempenhar um papel positivo. Não podemos nos esquecer dela porque as pessoas mais radicalmente convictas, os seguidores cegos e irredutíveis de uma ideologia, não costumam ser a maioria. Acho que parte considerável da esquerda que adere às teorias multiculturalistas não as avaliou ainda com profundidade e cuidado, da mesma forma que parte considerável da esquerda ainda não avaliou profunda e cuidadosamente o nacionalismo, por exemplo. O principal, a meu ver, está em acreditar na eficácia de uma teoria não submetida a um exame meticuloso, que é o que eu acho que muitas pessoas fazem. Colocando em causa essa suposta eficácia do multiculturalismo para a superação das desigualdades, podemos trazer a esquerda menos esclarecida e mais ingênua para o nosso lado. Agora, uma outra reflexão que eu gostaria de acrescentar é esta: em muitos casos, quando se trata de movimentos inicialmente “mistos” e que prezam pelo igualitarismo, os multiculturalistas pretendem transformá-los por dentro, estabelecendo uma maior ou menor “segregação” ou uma maior ou menor “inversão de papeis” e pretendendo também proceder a uma alteração de pautas ou da ordem de pautas, desviando o movimento de pautas, estratégias, práticas, formas de organização etc. que possibilitam a sua massificação. Nesses casos, creio que o fundamental é tentar articular o encaminhamento de tarefas voltadas para a massificação do movimento, claro que articulando esse encaminhamento ao combate e à neutralização das posições dos multiculturalistas mais radicais, mais convictos, mais irredutíveis, e tentando influenciar a esquerda presa ao senso comum e às modas intelectuais – que é menos convicta, mais recalcitrante. Nesse sentido, creio que o receio em enfatizar exacerbadamente as hostilidades está relacionado não tanto a darmos alguma legitimidade ao julgamento dos multiculturalistas – ou ao receio de sermos deslegitimados por eles – mas muito mais à necessidade de não se prender à “pequena política” das organizações de esquerda, enfatizando a necessidade de construir uma “grande política” voltada para os trabalhadores – que muitas vezes não fazem nem ideia do que está em jogo nessa disputa pró ou contra multiculturalismo. Por que é exatamente assim que são os multiculturalistas: colocam a “pequena política” das organizações de esquerda acima do fundamental, que é a massificação das lutas autônomas visando a revolução socialista, e se esforçam por favorecer hostilidades entre homens e mulheres, pessoas brancas e negras etc., negando a possibilidade de todos construírem juntos relações igualitárias já na luta e posteriormente na sociedade. Nós, que temos consciência da necessidade de promover o crescimento dos movimentos anticapitalistas, da necessidade de massificar as lutas autônomas dos trabalhadores, não podemos ficar voltando nossas energias – que são escassas – para debates e disputas intermináveis com os multiculturalistas, nos esquecendo do que realmente importa.
Ótimas reflexões, do autor e dos comentadores. Apenas discordo, num pequeno ponto, quanto à crítica ao multiculturalismo de ele ser na prática “biologismo”. Pode até ser mesmo isso (“biologismo”), mas na minha opinião isso é secundário, um epifenômeno. A meu ver, a crítica principal é que o multiculturalismo, por ver a sociedade e as opressões em termos de “cultura”, tem como único fundamento a ânsia patológica por estereótipos e bodes expiatórios (e portanto reforço do aparato repressivo). Afinal, em termos práticos, culturas são sempre estereótipos. Daí que os multiculturalistas vivem de criar e atacar bodes expiatórios. É realmente fascismo, como foi apontado pelo Operário Gay.
A meu ver só é libertária uma crítica em termos materiais: crítica das condições de existência em que os oprimidos são materialmente constrangidos a se sujeitar. Isso implica a luta pelo universalismo material chamado comunismo, que dissolve a estereotipização dos indivíduos, permitindo-os produzirem-se a si mesmos livremente em livre associação. E ao revés, é sempre reacionária e autoritária toda crítica que busca atacar sutilezas subjetivas como “culturas”, “intenções da alma”, “ofensas”, “olhar enviesado”, “más vontades”, porque tudo isso são bodes expiatórios.
Só uma dúvida, na passagem sobre a esquerda largar as lutas fratricidas (o que eu concordo) a exigência da esquerda se empenhar em pautas universais não acaba limitando grupos de esquerda que queiram tratar de pautas especificas? como mulheres, gays e negros por exemplo, não para combater o machismo, a homofobia e o racismo dentro dos grupos da esquerda mas na sociedade como um todo, nem afirmo que essa seja a posição do autor mas essa passagem me deu essa impressão.
abraços
Bruno, acredito que pautas universais são “igualdade entre os gêneros”, “igualdade entre as cores de pele”, etc.; aí está a diferença com relação a “poder feminino”, “poder negro”, etc.
Mas para conseguir encontrar a forma de se combater a falta de igualdade entre os gêneros na sociedade, faz falta identificar as estruturas sociais dessa desigualdade, e não apenas implicar com os usos linguísticos dos círculos militantes, ou então se focar na culpabilização e punição de pessoas que cometam faltas morais de comportamento.
Bruno,
Existem pautas que são do interesses de todos os trabalhadores, sejam eles homens ou mulheres, pessoas brancas ou negras, homossexuais ou heterossexuais, e que são, portanto, “universais”. Estamos diante de um novo ciclo de lutas envolvendo o transporte coletivo em várias cidades do Brasil, como vem noticiando este site. Esse é um exemplo de pauta que interessa aos trabalhadores em geral. O problema da esquerda pós-moderna é que ela tende a simplesmente negar a possibilidade de homens e mulheres, pessoas brancas e negras, homossexuais e heterossexuais, lutarem por pautas universais como essa, ao mesmo tempo em que estabelecem relações igualitárias no interior dos movimentos. E, por causa disso, ela tende a se engajar numa cruzada contra os indivíduos ditos “privilegiados” e em favor do “protagonismo” e do “empoderamento” dos indivíduos ditos “desprivilegiados”, em detrimento da luta contra os capitalistas em organizações caracterizadas pela igualdade entre todos os militantes. Para mim, boa parte da esquerda percebeu corretamente que certas demandas estavam sendo ignoradas, que certas desigualdades não estavam sendo devidamente desafiadas. Mas a esquerda pós-moderna, quando considera lutar contra o capitalismo, afirma que, para tratar da luta contra o capitalismo, é preciso primeiro tratar das questões de gênero, das questões de raça etc. A coisa foi invertida, criando-se ainda uma dicotomia que não deveria existir, pois, se antes era preciso primeiro derrubar o capitalismo para só depois tratar dessas questões, agora é preciso primeiro abolir o racismo e o patriarcado, por exemplo, para só então tratar da luta contra o capitalismo. Os multiculturalistas podem até negar que seja dessa forma, mas na prática é o que se verifica. Os movimentos que lutam por pautas “específicas” podem encontrar, a meu ver, um ponto de convergência com aqueles que lutam por pautas “universais”. Para mim, na verdade, o objetivo deve ser justamente romper a cisão entre pautas “específicas” e pautas “universais”, mesmo porque todas as desigualdades sociais devem ser abolidas para a construção da sociedade com que sonhamos. A esquerda deve se tornar capaz de reelaborar essas pautas à luz da luta anticapitalista, à luz da luta de classes.
Entendo e concordo compa, porém uma das argumentações que eu acredito valida é que também existem questões “especificas” que são urgentes principalmente quando se trata das formas mais violentas de racismo (e etc), e sim acredito que elas devem apontar para que não haja uma divisão entre pautas universais, mas essa não é a realidade atual, sabemos que nem toda força que pode ser mobilizada hoje pela questão do passe por exemplo pode ser mobilizada automaticamente para essas outras questões, no mais estou de acordo não vejo como uma questão de etapas a serem queimadas.
Caro Bruno,
Já que tocamos no assunto da atual conjuntura de lutas envolvendo o transporte coletivo, se pararmos para pensar, a luta pela tarifa zero, por exemplo, é uma luta “específica”, mas trata-se de uma luta “específica” capaz de unificar os trabalhadores em geral. É, portanto, uma luta com potencial para se massificar. Creio que, se em cada movimento houver um empenho em abolir desigualdades de raça, gênero etc., bem como de combater formas violentas de racismo, machismo etc., esses movimentos podem influenciar a classe trabalhadora em geral, contanto que se massifiquem: colocando a classe trabalhadora em luta contra os capitalistas e não contra si mesma, tais movimentos são capazes de influenciar os trabalhadores em geral, levando-os à reprodução de práticas igualitárias contrárias ao racismo, ao machismo, à homofobia etc. e à violência contra a mulher, contra pessoas negras, contra os homossexuais e assim por diante. Um movimento desse tipo é capaz de se tornar uma instituição difusora de práticas contrárias a tais desigualdades e violências. Mas, para que haja essa difusão, é preciso haver um empenho em massificar a luta, mais do que em prender o movimento a polêmicas e lutas fratricidas internas, que contribuem para a sua divisão ou desagregação e que servem para romper laços de confiança e solidariedade entre camaradas. Não digo que a luta contra tais formas de opressão por movimentos especificamente voltados para isso não seja válida, nem que não dê certos resultados positivos, mas me parece que a luta anticapitalista, que sempre parte de demandas “específicas” (luta pela terra, pela moradia, pela tarifa zero, movimentos grevistas etc.), se travada ao mesmo tempo em que tais desigualdades e violências são combatidas no interior dos próprios movimentos (por homens e mulheres, brancos e negros, homossexuais e heterossexuais etc.), tem um potencial muito maior para o combate das desigualdades e violências que acontecem fora dos movimentos. E aí é claro que as urgências devem ser tratadas, tanto da parte dos movimentos voltados especificamente para as opressões de gênero, raça etc. quanto da parte dos demais movimentos. Mas como tratá-las? O artigo critica algumas soluções apresentadas pela esquerda pós-moderna. Será preciso refletir sobre isso e encontrar alternativas, pensadas por homens e mulheres, brancos e negros, homossexuais e heterossexuais etc.
Então, o que tava definindo por especifico é aquilo que não atinge a todos, por tanto especifico de um setor, e não falava nem de tentar acabar com esse tipo de opressão dentro da esquerda mas voltado pra sociedade como um todo, até porque a expressões mais violentas dessas opressões geralmente não estão dentro da esquerda (ainda que haja exceções).
Já li vários artigos no passapalavra que tem uma forte crítica ao multiculturalismo, mas não conheço nenhum artigo fazendo uma apresentação mais aprofundada do que seria o tal multiculturalismo. Alguém pode, por favor, me indicar algum texto que cumpra este papel?
Caro Luiz,
Para uma primeira aproximação com o tema, posso recomendar-lhe este texto introdutório escrito por Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes: http://www.ces.uc.pt/publicacoes/res/pdfs/IntrodMultiPort.pdf
Outros textos podem ser encontrados facilmente em várias línguas na internet. Como o multiculturalismo é atualmente hegemônico em graduações e pós-graduações, o acesso a textos de autores multiculturalistas não esbarra em dificuldades. Sem contar nos textos sobre o multiculturalismo, não necessariamente de autores multiculturalistas. Além do mais, os próprios multiculturalistas não deixam de disponibilizar suas próprias obras ou suas referências bibliográficas na internet – numa espécie de ativismo virtual.
Àquelas e àqueles que defendem que as mulheres necessitam de espaços exclusivos para que tenha lugar o “empoderamento” feminino, recomendo a leitura deste trecho da segunda parte do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir (disponível aqui: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Beauvoir,%20Simone%20de/O%20Segundo%20Sexo%20-%20II.pdf):
[…] a passividade que caracterizará essencialmente a mulher “feminina” é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A imensa possibilidade do menino está em que sua maneira de existir para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos, despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo; através de jogos, esportes, lutas, desafios, provas, encontra um emprego equilibrado para suas forças; ao mesmo tempo conhece as lições severas da violência; aprende a receber pancada, a desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da primeira infância. Empreende, inventa, ousa. Sem dúvida, experimenta-se também como “para outrem”, põe em questão sua virilidade, do que decorrem, em relação aos adultos e a outros colegas, muitos problemas. Porém, o mais importante é que não há oposição fundamental entre a preocupação dessa figura objetiva, que é sua, e sua vontade de se afirmar em projetos concretos. É fazendo que ele se faz ser, num só movimento. Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu “ser-outro”; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino. É o que acontece, por vezes, quando lhe dão uma formação viril; muitos problemas então lhe são poupados. É interessante observar que é um gênero de educação que o pai de bom grado dá à filha; as mulheres educadas por um homem escapam, em grande parte, às taras, da feminilidade. Mas os costumes opõem-se a que as meninas sejam tratadas exatamente como meninos. […] A não ser que levem uma vida muito solitária, mesmo quando os pais autorizam maneiras masculinas, os que cercam a menina, suas amigas, seus professores sentem-se chocados. Haverá sempre tias, avós, primas para contrabalançar a influência do pai. Normalmente, o papel deste em relação às filhas é secundário. Uma das maldições que pesam sobre a mulher — Michelet assinalou-a justamente — está em que, em sua infância, ela é abandonada às mãos das mulheres. O menino também é, a princípio, educado pela mãe; mas ela respeita a virilidade dele e ele lhe escapa desde logo; ao passo que ela almeja integrar a filha no mundo feminino. Ver-se-á adiante quanto são complexas as relações entre mãe e filha; a filha é para a mãe ao mesmo tempo um duplo e uma outra, ao mesmo tempo a mãe adora-a imperiosamente e lhe é hostil; impõe à criança seu próprio destino: é uma maneira de reivindicar orgulhosamente sua própria feminilidade e também uma maneira de se vingar desta. […] as mulheres, quando se lhes confia uma menina, buscam, com um zelo em que a arrogância se mistura ao rancor, transformá-la em uma mulher semelhante a si próprias. E até uma mãe generosa que deseja sinceramente o bem da criança pensará em geral que é mais prudente fazer dela uma “mulher de verdade”, porquanto assim é que a sociedade a acolherá mais facilmente. Dão-lhe por amigas outras meninas, entregam-na a professoras, ela vive entre matronas como no tempo do gineceu, escolhem para ela livros e jogos que a iniciem em seu destino, insuflam-lhe tesouros de sabedoria feminina, propõem-lhe virtudes femininas, ensinam-lhe a cozinhar, a costurar, a cuidar da casa ao mesmo tempo que da toilette, da arte de seduzir, do pudor; vestem-na com roupas incômodas e preciosas de que precisa tratar, penteiam-na de maneira complicada, impõem-lhe regras de comportamento: “Endireita o corpo, não andes como uma pata”. Para ser graciosa, ela deverá reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome atitudes de menino, proíbem-lhe exercícios violentos, brigas: em suma, incitam-na a tornar-se, como as mais velhas, uma serva e um ídolo. Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la a estudar, a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais do que ao menino o fato de malograr; tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade (p. 21-23).