A poesia peronista dos anos 45-55 pode ser enquadrada no casamento entre o desejo de mundanidade da literatura porteña e os devaneios de grandiosidade classicista, por influência direta da tradição poética de língua castelhana. Por Poeta em Buenos Aires
Em 1922, o poeta Oliverio Girondo estreia em Buenos Aires com seu livro “Vinte poemas para ler no trem”, com subtítulo “Vinte poemas por vinte centavos”. Em realidade o livro custava alguns centavos mais, não muitos. O curioso subtítulo inspira um comentário malicioso de Borges, que à época lançava seus livros com tiragens de 200 cópias em edição de luxo: era essa moda europeia que havia acometido Girondo, de preocuparem-se os escritores com o sucesso comercial.
A poesia peronista dos anos 45-55 pode ser enquadrada no casamento entre o desejo de mundanidade da literatura porteña, como no caso de Girondo e do Grupo de Boedo [1], e os devaneios de grandiosidade classicista, por influência direta da tradição poética de língua castelhana tão marcada por Ruben Darío. Como resultado deste casamento, o mito desquita-se do passado e vai a circular pela cidade, os deuses já não são entidades literárias, espíritos da beleza, mas sim heróis contemporâneos, encarnação verídicas da pureza. O mito se atualiza como nação, a épica se atualiza como presente vivido e a autonomia da beleza, autonomia do caudilho.
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Na ressaca de fluxo e refluxo, do atual crescente coro em defesa dos grandes aparelhos partidários e de Estado, sempre cabe buscar no passado as sombras, os restos abjetos de projetos políticos e sociais que não costumam ser emoldurados na narrativa do tempo presente. Para evitar que ressuscitem principalmente, mas também para expor a contra-figura dos discursos. Da caixa de pandora aberta pela ruptura emergencial na trama do imaginário político brasileiro, certamente entre o trigo haverá muito joio, e nada melhor do que o começo do século XXI para nos mostrar que o mundo não anda apenas para frente, mas também pode ficar parado e inclusive andar para trás. Se como diz Paulo Arantes, a história já não pode nos ensinar nada sobre como se produzirá a novidade do futuro, nos resta lutar para garantir que ele não seja idêntico ao passado.
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Ao 17 de Outubro [2]
(Leopoldo Marechal)
Era o povo de Maio [3] quem sofria,
já não o rigor de um ódio estrangeiro,
mas sim a vergonhosa tirania
do olvido, o descuido e o dinheiro.
O mesmo povo que ganhara um dia
sua liberdade com fio do aço
tateava o porvir, e em sua agonia
lhe falavam apenas o Rio e o Pampeiro.
De uma vez alçou-se e fez-se raio
(era Outubro mas parecia Maio!)
e conquistou suas novas primaveras.
O mesmo povo foi e outra vitória.
E, como ontem, enamorou a Glória,
e Juan e Eva Perón foram bandeiras.
A moça do 17
(Alfredo Carlino)
Seu nome chegou a mim
como um tumulto.
Era eu quase uma criança e militava.
Seu nome surgiu detrás da aurora
Era de madrugada em Buenos Aires,
o calor nos golpeava e a paixão preparava seu incêndio.
Ia surgir o dia,
Fruta prenhe, de pé e para sempre.
Íamos inventar tudo.
A multidão,
aquela moça no desejo
o coronel para sempre.
Contar aos outros,
durante minha vida,
como foi, o que foi, na eternidade.
Ia começar o dia e seria 17
e não sabíamos nada.
Ela chegou a mim pela luta.
Ela, com seus olhos bandeiras
e sua pele de cotovia…
Ela, cantava como um fogaréu
até ferir o espaço.
Chegou a mim pelo sangue,
com a morte Passaponti,
essa mutilada adolescência que sonhava.
Chegou a mim pelo ar e pelo Canto,
pela raiva e pela ferida
pela vida e pela morte,
pela eterna ternura revolucionária,
tão cheia de amor,
tão cheia de violões,
de pombas e canções,
de velhas feito trapos,
de velhos, impossível dormir na rua.
Chegou a mim invicta, memorial e vitoriosa.
Chegou a mim sem que soubesse,
era a história
e então participamos sem mais.
Chegou a mim como tudo,
no tumulto da rua
e no meio da luta.
Linda e total, vestida de estrelas,
de violinos em seu rosto.
Vital de ódios,
porque amava, tanto e tanto o seu povo.
Chegou a mim com seus sóis,
seus gestos, seus todos.
Nunca a pureza teve mais identidade,
que em seu belo nome.
Sua ternura segue crescendo
e contém a mesma rebeldia.
Ela, a invicta, moça do 17,
foi depois eternamente nossa,
ainda fulgura na multidão
e segue cantando
como um fogaréu.
Mãe, a revolução…
(R. San Ghal)
– Mãe, na Praça de Maio
aviões dançando, olha! –
– Filho, são asas da Pátria
que o coração regozijam.
– Mãe, as bombas retumbam
e os aviões as atiram!
São de um país estrangeiro?
Quem odeia assim a Argentina?
– Filho, não são estrangeiros,
mas são da Pátria mesma.
Deus perdoe aos que acendem
a batalha fratricida.
– Mãe, azuis marinheiros
por trás nos fuzilam,
São maus estes moços?
É tão má a marinha?
– Filho, a Pátria é sagrada
e a marinha é muito digna.
A culpa não é do soldado,
mas sim da oligarquia.
– O quê é a oligarquia, mãe?
– Filho, é toda a injustiça
que no sangue dos pobres
se esconde, nunca vencida.
Ela aos ricos perverte,
ela mancha os de cima.
Tudo que toca infecciona,
trai o Povo e o humilha.
– Mãe, a Praça está cheia
de Povo, de Povo vibra.
Os aviões o metralham
e caem milhares de vítimas!
– Filho, o Povo está sem armas
e esta é a guerra maldita
do irmão que não entende
a voz de seu próprio sangue
– Mãe, eu escuto meu sangue.
Que “viva Perón!” me grita.
Mãe, eu vou à guerra.
Eu quero dar a minha vida.
– Filho, Perón já não pode
sucumbir. O necessita
a Pátria, ansiosa de glórias,
e o Povo, cheio de feridas.
– Mãe, meu pai caiu.
– Filho, tu es sua semente.
– Malditos sejam os maus!
– Filho, que Deus nos bendiga!
Os oligarcas trabalham
para si, com sua ilegítima
voracidade de ouro e mando,
de prazer, que é morte em vida.
Nós somos o Povo,
a Pátria que sacrifica
sua vida pelo futuro
que ha de ser todo harmonia.
– Mãe, já vem o exército!
Já rugem as baterias!
– Filho, que ser peronista
seja teu orgulho maior
e tua mais diáfana alegria!
– Mãe, Perón é o ar
e o sol, como disse Evita.
– Perón é Povo e exército
com uma só consigna.
– Mãe, vão-se os aviões!
Foram derrotados, olha!
– Filho, que Deus os perdoe
para que a Pátria viva!
Notas
[1] Grupo informal de artistas que se reuniam no bairro de Boedo, zona operária da cidade nos anos 20, e que compartilhavam o interesse pelas classes baixas e proletárias. Na mesma época estava ativo também o “Grupo Florida”, em referência à rua Florida no centro da cidade, do qual Borges participava e que estava associado aos círculos aristocráticos da sociedade argentina.
[2] 17 de outubro de 1945, nomeado ainda hoje como “Dia da lealdade peronista” por algumas correntes peronistas. Se trata do dia em que uma manifestação massiva de trabalhadores das zonas pobres da cidade exigiram (e conseguiram) a libertação de Perón, que havia sido obrigado a renunciar de seus cargos ministeriais e posteriormente preso. Esse dia marca o surgimento do peronismo como um fenômeno de massas da classe trabalhadora.
[3] Povo de Maio: referência à Revolução de Maio (1810), quando da criação da Primeira Junta de governo, processo que resultaria na declaração de independência da Argentina em 1816.
As ilustração são telas do grupo de artistas argentinos de Boedo.