A legitimação do capital necessita ser aplicada fora de sua esfera de autoridade material. Esse é o Estado: o constituinte da base econômica da sociedade e que edifica uma superestrutura legal e política para legitimar-se e legitimar as relações sociais exploratórias. Por Diego Polese
Do ponto de vista estrutural do complexo social, configura-se o Estado como uma mediação essencial do capital e, assim sendo, como constituinte necessário da sociabilidade capitalista. Isso advém do fato de as relações sociais estabelecidas pelo capital serem, segundo análise de seu processo sociometabólico, fatalmente alienantes para os seres humanos, logo, formadoras de antagonismos inconciliáveis de classes. Por tal razão é que se torna necessária uma instituição interveniente que se mantenha – aparentemente – acima dos interesses das classes e que tenha como objetivo principal conciliá-las para manter regularmente os processos produtivos de exploração.
O Estado, sob a chancela do capital, atua como forma política avançada que opera por meio de mediações institucionais complexas e sofisticadas, visando manter sob sua vigilância todas as relações sociais, criando para tanto toda uma imensa superestrutura legal e política para legitimar seu papel histórico de estrutura de comando político do capital sobre o trabalho.
István Mészáros, em Para Além do Capital, ao se debruçar sobre a problemática do Estado observou o seguinte – e relevante! – ponto:
Na verdade, o Estado moderno pertence à materialidade do sistema do capital, e corporifica a necessária dimensão coesiva de seu imperativo estrutural orientado para a expansão e para a extração do trabalho excedente. É isto que caracteriza todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da ordem sócio-metabólica do capital. Precisamente porque as unidades econômicas reprodutivas do sistema têm um caráter incorrigivelmente centrífugo […] a dimensão coesiva de todo o sociometabolismo deve ser constituída como uma estrutura separada de comando político totalizador. (MESZÁROS, 2002, p. 112)
Por conta desses fatores – seu caráter inerentemente material e abrangedor do processo de metabólico entre os homens e a natureza -, István Mészáros não deixa dúvida alguma acerca de qual esfera devemos situar o aparelho estatal:
Na qualidade de estrutura totalizadora de comando político do capital (o que é absolutamente indispensável para a sustentabilidade material de todo o sistema), o Estado não pode ser reduzido ao status de superestrutura. Ou melhor, o Estado em si, como estrutura de comando abrangente, tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apropriadamente como ‘superestrutura legal e política’ – exatamente como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas próprias dimensões superestruturais. (2002, p. 119)
O Estado, por isso, na medida em que se configura como o instrumento político “por excelência” da classe dominante exploradora de mais-trabalho, torna-se presença imprescindível para a manutenção do sistema exploratório do capital. Isso porque o Estado apresenta como função primordial garantir a reprodução das condições operacionais de produção e reprodução das relações sociais sob a égide do capital, ou seja, a relação bruta entre trabalho e capital precisa desse aparelho político que concentra em si toda a força necessária para garantir e, muitas vezes, criar mecanismos eficientes para a exploração sem qualquer controvérsia da força de trabalho: a fonte inesgotável de lucro.
O que isso quer dizer? Ora, simplesmente que o capitalismo (isso se aplica também ao sistema soviético) não pode de forma alguma justificar-se por si próprio, ou seja, legitimar-se como controlador das forças econômicas, já que sem o Estado o capital apareceria cruamente como força que se impõe e se confronta hegemonicamente sobre o trabalho. O Estado é o véu ideológico necessário do capital, sem o qual este não sobreviveria por muito tempo.
Vê-se, portanto, que a legitimação do capital necessita ser aplicada fora de sua esfera de autoridade material (onde deve reinar como absoluto). Esse é o Estado: o constituinte da base econômica da sociedade e que edifica uma superestrutura legal e política para legitimar-se e legitimar as relações sociais exploratórias comandadas pelos imperativos do capital, além é claro de conformar-assimilar-recuperar as contestações do trabalho.
Deste modo, o objetivo a ser alcançado será explicar o Direito a partir das formas legais que constituem a superestrutura legal e política criada pelo Estado e pelo Capital para assegurar condições exploratórias seguras. Mas como é possível proceder assim se cada Estado-Nação possui sua ordem jurídica específica? Como explicar as formas legais se elas são frutos das particularidades de cada uma das formações estatais formadas ao longo da história e as quais são produtos de suas respectivas formas particulares de interação política, cultural, econômica e ideológica entre as classes sociais que as compõem? A resposta não é simples e por isso não iremos analisar o conteúdo de cada ordem jurídica estatal específica [1]. Analisaremos, na realidade, a própria forma de mediação das relações sociais: a legalizada e formalmente normatizada. Ou seja, explicaremos a lógica interna da própria forma legal-abstrata, a qual é a característica geral comum dos entes estatais modernos.
Dessa forma, pelo fato de as formas legais serem aspectos comuns aos diversos Estados das diversas formações capitalistas, pontuar-se-á os traços gerais a partir dos aportes teóricos de grandes pensadores do Direito, a fim de esclarecer as bases conceituais preliminares aos estudos mais aprofundados e, assim, poder chegar a respostas que poderão servir como base para embasar uma teoria do esfacelamento do Direito na transição para uma sociedade comunista.
Preliminarmente, devemos fixar que o Estado capitalista, sob a chancela da respectiva superestrutura jurídica-política, tem como objetivos centrais exercer as seguintes funções:
a) integrar a classe trabalhadora aos ditames do capital, de modo que ela aceite sua situação estrutural de subordinação e exploração (sistema educacional público, mídias de massa, religião, direito, cultura, costumes, etc.);
b) reprimir os trabalhadores, por meio do uso da força judicial, policial, militar e penitenciária;
c) criar e assegurar as condições gerais da produção de capital;
d) administrar as crises do capital.
Todas essas funções exercidas pelo Estado em prol do capital devem adquirir – ou seja, revestir-se – da forma jurídica legal para que possa aparecer aos olhos da classe explorada como algo realizado legitimamente, já que os representantes que positivam as formas jurídicas são por eles escolhidos em um processo “democrático” (ao contrário do que apareceria se soubessem que seus direitos estão hipotecados aos ditames da força extraparlamentar do capital).
O aparato estatal da qual a forma jurídica legal é instrumento necessário aparece, portanto, como uma força de coesão coercitiva que visa manter certa unidade numa sociedade que está implacavelmente dividida em classes e grupos com interesses antagônicos, os quais só não se combatem até atingir rapidamente um ponto insustentável porque suas lutas são trazidas, remodeladas e decididas pelo uso da força institucionalizada, “legal” e “legítima” do Estado.
A superestrutura jurídica e política e a forma jurídica legal
Como parte inextrincável da base material do sistema totalizante do capital, o Estado deve construir sua superestrutura política e legal segundo as determinações materiais e estruturais das relações de produção capitalistas, observando a função primordial de garanti-las, regulá-las e normatizá-las. Expõe Pachukanis:
Se a análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e desvenda os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de evolução histórica da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a forma da superestrutura jurídica concreta. Desde que as relações humanas têm como base as relações entre sujeitos, surgem as condições para o desenvolvimento de uma superestrutura jurídica, com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, etc. (1989, p. 05)
O Estado, assim, como componente indispensável para regular, manter, normatizar e estabilizar os liames estabelecidos, possui a tarefa histórica de mediar e enviesar o máximo de relações sociais possíveis, utilizando-se para tanto de formas jurídicas legais visando torná-las previsíveis para garantir uma devida ordem de reprodução das mesmas.
A superestrutura legal e política erguida pelo Estado, apesar de sempre revestir-se de instituições que lhe são próprias e específicas, pode assumir as mais diversas formas para exercer seu papel na sociedade como um todo, conforme as circunstâncias históricas assim o exijam. Durante o decorrer da história capitalista, as principais articulações da superestrutura político-legal sucederam-se por meio da forma parlamentarista, bonapartista, fascista e do tipo soviético. Apesar dessa variedade de articulações, a forma jurídica legal sempre se manteve como constituinte básico do sistema social, exercendo além do papel ideológico de legitimar a estrutura estatal vigente, a função de normatizar e orientar as condutas humanas visando manter a estrutura hierárquica de comando do capital em face do trabalho.
Mészáros, aliás, explica que o estabelecimento e aprimoramento da forma jurídica legal por meio da expansão da igualdade formal é um imperativo material do próprio sistema exploratório do capital:
A instituição e o aperfeiçoamento da igualdade formal e da desigualdade substantiva pertencem ao modo normal de funcionamento do sistema do capital, o que está plenamente sintonizado com a tendência de homogeneização do princípio econômico dominante, atendendo à necessidade de fornecimento de uma força de trabalho móvel em expansão e de eliminação de obstáculos artificiais […] da trilha do sucesso no desenvolvimento econômico e, em termos gerais, à viabilidade dos contratos. (2002, p. 209)
A forma legal, portanto, que se relaciona diretamente com a reprodução do capital, exerce uma função mistificadora da relação concreta “seja porque pressupõem como concretas as abstrações burguesas acerca das relações sociais de produção, seja porque generalizam os aspectos igualitários do contrato de trabalho para a forma exclusiva destas relações.” (SIMÕES, 1979, p.31). Deste modo, inicialmente a norma jurídica nada mais é do que a reprodução cristalizada da forma captada nas relações de circulação. A norma positivada, explica Celso Naoto Kashiura Júnior:
[…] apenas estipula abstratamente relações entre sujeitos de direito, apenas reproduz e estende, sob uma expressão discursiva, plasmada como um dever-ser, a forma abstraída da relação de troca mercantil. A norma jurídica não pode, por si mesma, gerar relações jurídicas – as relações jurídicas surgem em função da assunção da forma nascida da relação subjetiva da troca de mercadorias, a forma jurídica. Por isso Pachukanis compara a norma a um ‘projeto’. Se uma norma é elaborada e ‘certas relações constituíram-se em concreto, isto significa que um direito correspondente nasceu; mas se a lei ou o decreto foram editados sem que nenhuma relação correspondente tenha aparecido, na prática, isto significa que foi feito um ensaio de criação do direito, mas sem nenhum sucesso. (2009, p. 77)
No entanto, a norma jurídica não é meramente um reflexo mecânico da relação subjetiva de circulação de vontades. A forma jurídica concreta, apesar de ser um fato, é uma forma jurídica que poderá oferecer um leque de problemas caso não haja seu desenvolvimento por meio de sua posterior positivação. Ou seja, apesar da forma jurídica concreta possuir uma capacidade maior para instituir direitos do que pode a forma jurídica abstrata, ela clama por sua transformação em forma legalizada para se homogeneizar em toda a estrutura societal e poder regular eficazmente o máximo de relações possíveis. A forma abstrata, assim, exerce uma ação de retorno sobre a forma jurídica estabelecida concretamente consolidando-a e/ou até elevando-a a formas de desenvolvimento superiores. Contudo, Carlos Simões, em seu livro Direito do Trabalho e Modo de Produção Capitalista (em minha opinião, o melhor – e menos estudado – livro brasileiro sobre as determinações do Direito sob o sistema do capital), explicita que:
Em qualquer caso, porém, as formas abstratas tendem irresistivelmente à estabilidade no tempo, porque pretendem cristalizar elementos da relação social geradora, de forma a que os conflitos sociais, como confronto de interesses de classe, sejam enquadráveis no código e reordenados pelo interesse dominante. É no regime da produção capitalista que se evidencia e aperfeiçoa a oposição entre o caráter dinâmico dos direitos concretos e o estático das formas abstratas. (SIMÕES, 1979, p. 31)
A referida dialética da contradição estabelecida entre a forma jurídica concreta e as formas abstratas ocorre em razão do dinamismo singular das relações de produção, as quais são revolucionadas constantemente por meio da apropriação/assimilação da ação do trabalho pelos capitalistas, enquanto que o princípio da estabilidade, generalidade e irretroatividade das leis permanecem incólumes.
Historicamente, a forma jurídica institucionalizada teve um papel essencial para a revolução burguesa, já que em um primeiro momento erigiram-se os chamados direitos naturais em direitos positivos. Eram direitos – individuais – que não forneciam nenhuma contrapartida material do Estado para a classe trabalhadora. Entretanto, a partir do momento em que a correlação de forças entre as classes – sempre em incessante movimento – começou a sofrer profundas transformações, acarretando na necessidade de mudanças na ordem até então estabelecida para assegurar a reprodução dos ciclos de mais-valia relativa, fez-se necessário a concessão de algumas formas jurídicas legais protetivas, os quais receberam o desígnio de: direitos sociais. Ernest Mandel explica esse processo:
Outra característica dessa época foi uma ampliação geral da legislação social, que ganhou impulso particular no período imperialista. Em certo sentido tratou-se de uma concessão à crescente luta de classe do proletariado, destinando-se a salvaguardar a dominação do capital de ataques mais radicais por parte dos trabalhadores. Mas ao mesmo tempo correspondeu também aos interesses gerais da reprodução ampliada no modo de produção capitalista, ao assegurar a reconstituição física da força de trabalho onde ela estava ameaçada pela superexploração. (1982, p. 338)
Em outras palavras, em razão do intenso desenvolvimento da forma jurídica pela lógica abrangente do Estado, abriu-se a possibilidade de a forma legal regular as relações afastadas das relações econômicas de troca, estendendo-se para além da circulação mercantil, adquirindo caráter público. Nesse sentido, o seguinte raciocínio de Celso Naoto Kashiura Júnior:
Apenas num momento posterior a forma jurídica originalmente privada se estende e passa a recobrir relações de caráter público. Ou seja, o direito público não surge porque relações de caráter público desenvolvem uma forma jurídica ‘própria’, mas pela assimilação da forma jurídica oriunda da relação de troca de mercadorias. Esta assimilação pode ocorrer apenas em condições muito determinadas. As relações nas quais se exerce, potencial ou atualmente, o poder político não têm, a princípio, nada de jurídicas – tornam-se jurídicas, isto é, ‘vestem’ a forma jurídica, por derivação, apenas no específico contexto em que o poder político assume a forma de Estado e os indivíduos assumem a forma de sujeitos puramente privados. Mais ainda, apenas quando a própria forma jurídica, como forma de relações de troca, já atingiu desenvolvimento suficiente para ‘desprender-se’ da troca mesma, isto é, quando a forma jurídica já está apta a afirmar-se de maneira relativamente independente do conteúdo que abriga e pode então estender-se para relações alheias à circulação mercantil. (2009, 99-100)
Importante trazer ao debate, ainda, a excepcional síntese elaborada por Gyorgy Lukacs, em Para uma Ontologia do Ser social, acerca da lógica complexa da forma jurídica legal:
O funcionamento do direito positivo está baseado, portanto, no seguinte método: manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso surja não só um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de mover-se elasticamente entre polos antinômicos – por exemplo, entre a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade –, visando implementar, no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe que se modifica de modo lento ou mais acelerado, as decisões em cada caso mais favoráveis para essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social. (2013, p. 247)
Analisando o até aqui exposto, percebe-se que a superestrutura legal e política desenvolvida pelo Estado desenvolve um papel extremamente relevante para a sobrevivência da exploração do homem pelo homem por meio da relação social erigida pelo capital. A forma política cunhada pelo sistema sociometabólico do capital, assim, vinculando-se intimamente à forma-mercadoria, já que participa das relações de produção e circulação estabelecidas como terceiro – aparentemente apartado dos interesses dos portadores de mercadoria – constitui-se materialmente por um amplo conjunto de instituições sociais próprias e específicas para funcionar como garante no âmbito da dinâmica das relações capitalistas condições de reprodução do valor.
O processo ideológico de homogeneização de qualquer pessoa – independente da classe social – em cidadão, aliás, é outro aspecto fundamental para a manutenção social do capital exercida pela forma-política e fortalecida pela forma-legal, uma vez que engendra formas de consciência que legitimam a lógica estabelecida, conformando a tomada de consciência dos interesses de classe a um pretenso interesse comum. Nesse sentido, traz luz a seguinte explanação de Márcio Bilharinho Naves:
A operação que o direito promove, transformando o homem em cidadão, torna os trabalhadores desprovidos de sua condição de membros de uma classe, impossibilitando-os como classe de perceber e de lutar por seus interesses estratégicos – a destruição do Estado burguês e a revolucionarização das relações de produção capitalistas -, tornando-os prisioneiros da ideologia jurídica e da política de classe burguesa, fazendo com que reproduzam as formas políticas de sua própria dominação. Essa representação jurídica da política, ao mesmo tempo em que ‘concentra’ a política no Estado, interdita a política à classe operária, isto é, interdita a luta de classes. (2008, p. 85)
Depreende-se, assim, que há também um vínculo indissociável entre a forma política e a “democracia”, já que ambas derivam da forma-mercadoria. Isso porque a primeira institucionaliza sua forma conjuntamente com a segunda, conformando-a a seus ditames e à lógica de subordinação estrutural do trabalho ao capital.
Deste modo, estando subordinada ao Estado e, claro, ao regime do capital, a democracia somente poderá se dar por meio de órgãos de representação, o que torna capitalismo e democracia categorias inexoravelmente antagônicas, já que sobre essa lógica nunca se poderá instituir mecanismos substancialmente democráticos que proporcionem a participação e intervenção efetiva dos produtores diretos nas relações sociais de produção, uma vez que o núcleo da sua forma política reside em estabelecer poderes separados dos agentes econômicos diretos. Isso quer dizer, simplesmente, que não pode haver democracia no Capitalismo, uma vez que ela somente se realiza por meio da participação ampla e direita da população, a qual deve autonomamente cunhar seus aparelhos de autogoverno e autogestão. Quanto à relação da forma legal com a democracia, explica Alysson Leandro Mascaro que:
O campo jurídico exerce um papel fundamental na construção da moderna democracia. Sendo, tal como as demais instituições estatais, um aparato necessário à dinâmica das relações de produção capitalistas, o direito assume a dianteira, em relação ao papel da livre ação política, como elemento de balizamento das possibilidades da democracia. Ao invés de estender a deliberação política democrática ao limite, o direito restringe e qualifica seus espaços e mecanismos. Os resguardos dos direitos subjetivos fundamentais e dos ritos e procedimentos previamente instituídos possibilitam facultar a livre deliberação a um espaço temático já então delimitado e formalizado. […] a ação política é ampla, livre e voluntariosa justamente num espaço que é previamente construído estatalmente. A forma política do capitalismo dá o limite da própria liberdade da vontade democrática. (2013, p. 87)
Deste modo, a “democracia” sob o sistema sociometabólico do capital sempre estará relegada a feições meramente superestruturais, consubstanciada em mera participação formal por meio da escolha de representantes, os quais estarão necessariamente subordinados aos interesses do capital. Assim, dado que um dos objetivos da transição socialista é a transcendência da divisão social hierárquica do trabalho, a questão do caráter das formas transicionais de mediação material capazes de assumir o controle progressivo das funções produtivo-reprodutivas do metabolismo social organizado sob uma estrutura não mais assentada na alienação do trabalho, deve assentar-se sobre o conceito de democracia substantiva. Completa Mészáros:
[…] a estrutura material de comando do capital não pode afirmar-se sem a estrutura de comando político global do sistema. Assim, uma alternativa ao modo de controle sociometabólico do capital deve abranger todos os aspectos complementares do processo de reprodução social, desde as funções estritamente produtivas e distributivas até as dimensões mais amplas da direção política. Como está no controle real de todos os aspectos vitais do sociometabolismo, o capital pode dar-se ao luxo de definir a esfera de legitimação política enquanto uma questão estritamente formal, excluindo desse modo, a priori, a possibilidade de ser legitimamente contestado em sua esfera de funcionamento substantivo. Conformando-se a tais determinações, o trabalho, como real antagonista do capital existente, pode apenas condenar-se à permanente impotência, pois a instituição de uma ordem sociometabólica alternativa só será viável pela articulação da democracia substantiva, definida como atividade autodeterminada dos produtores associados tanto na política como na produção material e cultural. (2002, p. 849)
Nota
[1] “[…] não há dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada.” (PACHUKANIS, 1989, p. 18)
Bibliografia
BERNARDO, J. Estado: a silenciosa multiplicação do poder. SP: Escrituras, 1998
HIRSCH, Joachim. Teoria. Materialista do Estado. Rio de. Janeiro: Revan, 2010.
KASHIURA JUNIOR, Celso Naoto. Critica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. 3 vols. SP: Abril Cultural, 1983.
_. Para a Crítica da economia política. In: Os Economistas. SP: Abril Cultural, 1984.
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio, São Paulo: Abril Cultural, 1982.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política: Boitempo, 2013. MÉSZÁROS, I. Para além do capital. SP: Boitempo, 2002.
. Estrutura Social e Formas de Consciência II. SP: Boitempo, 2012.
PACHUKANIS, Evgeny. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
SIMÕES, Carlos Jorge Martins. Direito do Trabalho e modo de produção capitalista. São Paulo: Símbolo, 1979.
Deplorável escolha a da rinha de galos como ilustração. É preciso ter coragem de dizer a despeito do escárnio. Nesses “detalhes” a nossa coisificação salta aos olhos.