Assim, o Socialismo, caracterizado como fase de transição à sociedade sem classe, pressupõe uma dinâmica complexa de progressiva abolição da normatividade jurídica e legal provinda da relação social concreta que expressa os interesses necessários à circulação de mercadorias. Por Diego Polese

Vimos que a base material concebida pelo capital consiste na imposição hierárquica de controle sobre a classe do trabalho, tendo a superestrutura política e jurídica – mas não somente ela – a missão de assegurar estruturalmente os imperativos reprodutivos desse complexo sistema de exploração do homem pelo homem.

A especificidade do sistema sociometabólico do capital, descoberta por Karl Marx, reside precisamente no fato de que a sociabilidade engendrada por esse sistema é estruturada e sustentada precipuamente pela forma valor, a qual se origina da relação social estabelecida pela forma mercadoria. Dessa maneira, a forma valor resulta da relação-capital, onde as relações sociais de troca estão sob o domínio do capital, não importando o caráter do objeto trocado: seja um produto ou uma atividade, seja algo econômico ou cultural, toda mercadoria está sujeita à “tirania da lei do valor”.

ponte03O princípio estrutural intocável do sistema do capital reside, portanto, na necessária subsunção dos trabalhadores às condições objetivas indispensáveis à própria realização do trabalho enquanto atividade vital humana. Essas condições objetivas do processo de trabalho são apropriadas pelas personas do capital. Essa separação, essa alienação do trabalho, essa perda do controle de sua auto-atividade, fará com que os meios objetivos de vida se tornem o “capital” que confronta e domina o “trabalho” nas relações sociais. Sem tais condições objetivas o trabalhador se torna impotente e acaba sendo forçado a reproduzir a relação-capital, ao invés de subvertê-la por meio da reapropriação de seus poderes socioprodutivos usurpados e estranhados.

O complexo superestrutural político e jurídico, assim, se origina ab initio, das determinações materiais básicas da produção e intercâmbio social. No entanto, nem sempre permanecem diretamente dependentes de seus desígnios. Possuem, portanto, a possibilidade de desenvolver uma relativa autonomia, na medida em que podem estabelecer uma lógica própria, instituições e mecanismos, ainda que atreladas às determinações materiais.

As mediações superestruturais não estão suspensas no ar e seguem um curso inteiramente próprio, mas, não obstante sua relativa autonomia, são portadoras sócio-historicamente específicas de funções materiais determinadas com as quais são reciprocamente imbricadas por meio de formas e modos apropriados de mediação; essa imbricação é particularmente marcante nas fases iniciais do desenvolvimento social. (MÉSZÁROS, 2012, p. 51)

Assim, conforme exposto anteriormente, toda formação social é composta por “instâncias” complexamente articuladas, ou seja, sistemas de relações sociais que desenvolvem sua base material de existência e a partir dela articulam a superestrutura que lhe corresponde, a fim de garantir sua reprodução permanente. A superestrutura do capital, por excelência, é a política-jurídica.

Acontece que o conceito de superestrutura legal e política somente se refere a determinações e condições sócio-históricas específicas e limitadas, ou seja, a certo estágio de desenvolvimento social em que os antagonismos sociais necessitam da criação de uma esfera separada e cada vez mais alienada de dominação jurídica e política, arquitetada pelo Estado.

As explicações e interpretações acerca da esfera jurídica e política correspondentes à realidade material do capital e, por consequência, a formulação de uma teoria que ajude a explicar aspectos acerca do futuro esfacelamento do Direito na transição socialista, seriam imprecisas caso não nos atentássemos a tal determinação, qual seja: não necessariamente a superestrutura deverá ser jurídica-política.

Assim, os sistemas estabelecidos de normas e direitos, provenientes da forma concreta, devem ser dialeticamente explicados em termos de sua gênese histórica. Com efeito, somente a partir da elucidação de sua gênese se poderá estabelecer as tendências internas de seu fenecimento.

Gyorgy Lukács, aliás, quando teceu esclarecimentos sobre o fenômeno jurídico em sua Ontologia, explicou a complexa relação dialética entre e Gênese e fenecimento nos seguintes termos:

Gênese e fenecimento são, assim, duas variações qualitativamente peculiares, inclusive unitárias de tais processos, que, na superação, contêm elementos de preservação e, na continuidade, momentos de descontinuidade. Assim sendo, já apontamos para o fato de que o estado pré-jurídico da sociedade gera necessidades da própria regulação, nas quais está compreendida em germe a ordem jurídica – todavia qualitativamente diferenciados. Todavia, não se pode jamais esquecer quanto a isso que, por trás dessa continuidade, se oculta uma descontinuidade: o ordenamento jurídico em sentido próprio só surge quando interesses divergentes, que poderiam, em cada caso singular, insistir numa resolução violenta, são reduzidos ao mesmo denominador jurídico, são juridicamente homogeneizados. O fato de esse complexo tornar-se socialmente importante determina a gênese do direito na mesma medida em que o fato de ele se tornar socialmente supérfluo em termos reais será o veículo do seu fenecimento. (2013, p. 245)

István Mészáros, neste esteio, ou seja, observando a necessidade de organizar logica e ontologicamente a forma como se deu a prolongada transformação dos princípios reguladores necessários para a reprodução social contínua, uma vez que somente assim torna-se possível estabelecer as tendências objetivas acerca da superação do fenômeno “essencialmente negativo” do quadro regulador jurídico e político, elaborou o seguinte esquema explicativo:

1. a exposição das comunidades primitivas ao domínio do acaso e da arbitrariedade; coerção patente como a única força reguladora factível, com todo seu desperdício e instabilidade; total ausência de normatividade; 2. o surgimento de fatores estabilizadores por meio da repetição, sobre a base da ‘tentativa e erro’, representando os primeiros passos – espontâneos – na direção da emancipação do acaso e da arbitrariedade; 3. a consolidação das realizações positivas da repetição na forma de usos específicos – instrumentalmente orientados; 4. a coordenação de uma multiplicidade de usos recorrentes dentro de um corpo coerente de costumes; a normatividade ainda está primeiramente preocupada com os requisitos objetivos da produção e reprodução, isto é, com a imposição de necessidades predominantemente instrumentais; isso continua sendo o caso por um longo período de tempo, mesmo que os imperativos associados à reprodução das condições operacionais de produção )articuladas como um conjunto de costumes bem definidos) introduzam um forte elemento de normatividade social, preparando o solo para uma divisão social do trabalho muito mais problemática; 5. A integração dos costumes mais variados e há muito estabelecidos na tradição universalmente respeitada da comunidade dada, representando um modo de regulação que enfatiza fortemente os valores transmitidos de geração em geração, como o reforço ritual que envolve a participação ativa de todos; sociedades reguladas pela normatividade da tradição podem permanecer, por um período indefinido de tempo, em caráter completamente igualitário, como mostram os registros históricos, embora o entrincheiramento das novas modalidades reguladoras abra as portas para o desenvolvimento de formas separadas de imposição institucional e para as hierarquias estruturais que as acompanham; 6. O surgimento da lei expressa; a tradição seletivamente elevada ao status de lei, com suas sanções e órgãos separados de imposição das leis a serviço da ordem dominante; os interesses minoritários exploradores da formação social estabelecida, codificados como ‘a lei’, redesenhando autointeressadamente os limites do intercâmbio social legítimo e redefinindo o significado de ‘sociedade’, ‘comunalidade’ e ‘universalidade’ de acordo com os requisitos apriorísticos da dominação estrutural, de modo que o conceito de ‘organismo social’ adquira um significado profundamente conservador e apologético; ao mesmo tempo, as forças sociais potencialmente dissidentes são estritamente (e punitivamente) subordinadas ao novo sistema, um tanto abstrato e instrumentalmente imposto, de coordenação geral e normatividade; daí a articulação inevitavelmente negativa do quadro regulador jurídico e político. (MÉSZÁROS, 2012, p. 97)

ponte01Portanto, a formação da superestrutura legal e política surge em razão da articulação – historicamente cunhada – dos intercâmbios entre os seres humanos por meio de “mediações de segunda ordem”, sem a qual a lógica do capital não poderia se impor continuamente e incutir-se no íntimo das relações sociais.

Deste modo, a estrutura sociometabólica formada pelas relações sociais de produção/reprodução, a despeito de necessitar de organicidade e sistematicidade, não precisa regular os aspectos essenciais da vida humana por meio da concepção de mecanismos subordinantes e hierárquicos, de modo a suscitar a perda de controle pelos homens e a correspondente criação de classes sociais e conflitos políticos e sociais pela dominação – problemática – do controle do sociometabolismo. Ela, na verdade, deveria ser conscientemente orientada, ao contrário do que ocorre com as mediações superestruturais jurídicas e políticas.

Assim, seguindo as linhas traçadas por Marx em Crítica ao Programa de Gotha, István Mészáros ressalta que, a despeito do caráter negativo da juridicidade enquanto tal, mesmo numa genuína sociedade socialista não se poderia ignorar a questão da legislação, uma vez que o essencial residiria no modo de relação social construído pelos produtores associados e as normas que eles definirão para si próprios graças a formas apropriadas de tomada de decisão. Explica Mészáros, em Estrutura social e formas de consciência II – A dialética da estrutura e da história, que:

A proeminência das determinações jurídicas e políticas no exercício das funções essenciais do metabolismo social é característica das sociedades de classe, incluindo o longo período histórico de transição da formação social capitalista para a ‘fase superior da sociedade socialista’ (ou comunista). Segundo Marx, somente esta pode trazer uma mudança radical a esse respeito, quando – para além das primeiras restrições reguladoras – a interação autodeterminada dos indivíduos sociais é governada pelo princípio: ‘a todos de acordo com suas necessidades’, em vez de pela regra institucionalizada de um sistema legal separado e sua correspondente ‘forma-Estado’, seja ela do tipo mais esclarecido. (2012, p. 95)

Mészáros aponta, ainda, no esteio de Marx, que numa sociedade socialista já desenvolvida:

[…] muitas das inevitáveis exigências de regulamentação exigidas poderiam ser atendidas por meio dos costumes e tradições estabelecidos pelas decisões autônomas e inter-relações espontâneas dos indivíduos que vivem e trabalham numa estrutura de sociedade não-concorrencial. Sem isso, é inconcebível a supressão da política como esfera alienada, tornando impensável também o ‘fenecimento do Estado’. Mas também é claro que, para o futuro previsível, muitas das exigências de regulamentação geral devem permanecer associadas a procedimentos legislativos formais. (2002, p. 859).

No entanto, Mészáros distingue o nível de importância da normatividade jurídica nas fases iniciais e nas fases mais avançadas da transição socialista, quando o sociometabolismo já está em vias de consolidar a autorregulação comunal.

[…] nenhuma sociedade pode reproduzir adequadamente a si mesma e avançar em sua capacidade de satisfazer uma gama crescente de carências [needs] humanas sem criar instituições e estruturas normativas confiáveis, de acordo com os requisitos reguladores cumulativos de um metabolismo social cada vez mais complexo e entrelaçado. Nesse sentido, uma vez que a fase regulada pelas determinações materiais mais brutas é deixada para trás, o intercâmbio social é inconcebível sem a intervenção crescente dos fatores superestruturais, com suas correspondentes formas de normatividade. Tampouco é concebível eliminar a normatividade enquanto tal numa sociedade socialista. Com efeito, seu papel, ao contrário, está fadado a aumentar com o controle das necessidades [necessities] materiais e a remoção bem-sucedida das restrições externas. Pois a reciprocidade plenamente reconhecida dos indivíduos sociais interagentes enquanto produtores associados implica necessariamente, como sua precondição, a normatividade interna de um novo modo de ação, orientado para, e almejando a reprodução de, um quadro societal geral conscientemente adotado a partir do qual o predomínio apriorístico (materialmente prejulgado e invalidado) dos interesses parciais tenha sido removido no curso do desenvolvimento histórico‖. (2012, p. 102/103)

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Observem que Mészáros pontua um aumento do papel da “normatividade enquanto tal”, ou seja, da normatividade dos costumes, tradições e demais formas superestruturais escolhidas democraticamente pelos produtores livremente associados. Trata-se do oposto da normatividade jurídico-política, inerente ao sistema do capital e suas mediações alienadas de segunda ordem, as quais devem ser progressivamente suprimidas.

Portanto, se na sociedade socialista o trabalhador pretende se reapropriar das condições materiais de produção extinguindo as formas mercantis, as quais se configuram como o fundamento derradeiro da essência do direito, significa que a persistência do ‘Jurídico’ aparecerá inequivocamente como um obstáculo ao comunismo, ainda que ele possa cumprir durante certo tempo um papel ‘revolucionário’.

Temos, então, que a retenção da normatividade alienante da superestrutura jurídica e política é totalmente incompatível com a ideia da emancipação socialista, já que a normatividade desta é inapropriada para estabelecer o exercício da reciprocidade conscientemente perseguida e plenamente equitativa:

Ademais, posto que, por sua própria natureza, a ‘lei expressa’ não pode nunca adquirir o caráter de autoatividade, de modo que ela deve colocar-se acima de todos os membros da sociedade em suas espúrias reivindicações à validade universal, a realização prática da emancipação socialista almejada por Marx é, em princípio, impensável dentro das restrições estruturais da superestrutura jurídica e política enquanto tal. Em outras palavras, de acordo com a concepção marxiana, a superestrutura jurídica e política, não só em sua forma capitalista como também em todas as formas concebíveis, deve ser considerada o alvo necessário da prática social emancipatória. (MÉSZÁROS, 2012, p. 101)

Assim, o Socialismo, caracterizado como fase de transição à sociedade sem classe, em que os produtores associados devem assumir a hegemonia plena no controle do sociometabolismo, pressupõe uma dinâmica complexa de progressiva abolição da normatividade jurídica e legal provinda da relação social concreta que expressa os interesses necessários à circulação de mercadorias, opondo duas vontades autônomas reciprocamente aquiescentes. Atento a essa problemática, Mészáros pontua três fases ou momentos em que os direitos humanos são objetivados:

(1) Sob as condições as sociedade capitalista, o apelo aos direitos humanos envolve a rejeição dos interesses particulares dominantes e a defesa da liberdade pessoal e da auto-realização individual, em oposição às forças de desumanização e de reificação ou de dominação material crescentemente mais destrutivos.

(2) Em uma sociedade de transição, os direitos humanos promovem o padrão que estipula que, no interesse da igualdade verdadeira, ‘o direito, ao invés de ser igual, teria de ser desigual, de modo a discriminar positivamente em favor dos indivíduos necessitados, no sentido de compensar as contradições e desigualdades herdadas.

(3) Em uma ‘fase mais adiantada da sociedade comunista’, quando – sob a premissa do mais alto desenvolvimento proporcional a elas – a sociedade obtém, ‘ de cada um, de acordo com sua habilidade’ e dá ‘a cada um de acordo com as suas necessidades’, a necessidade de aplicação de um padrão igual não existe mais, uma vez que o desenvolvimento completo de um indivíduo de modo algum interfere na auto-realização dos outros como indivíduos verdadeiros. (2008, p. 168)

Apoiando-se igualmente na Crítica ao programa de Gotha, Pachukanis também afirma que o período histórico da transição socialista permanece encerrado nos “estreitos horizontes do direito burguês”, uma vez que nessa forma transitória de sociedade ainda se preserva, em larga escala, o princípio da lei do valor, ou seja, que certa quantidade de trabalho sob determinada forma deve ser trocado por outra mesma quantidade de trabalho sob outra forma: “preserva-se o princípio da equivalência, portanto, preserva-se a forma jurídica, pois ‘por sua natureza o direito só pode consistir no emprego de uma mesma unidade de medida’”. (Pachukanis, 1989, p.90)

Por fim, colacionemos a síntese elaborada por Stucka acerca da relação entre direito e transição socialista para além do capital e do Estado:

Concebendo-se o Direito em sentido burguês, não é possível falar-se de um Direito Proletário, porque o objetivo da própria revolução socialista encerra-se na abolição do Direito, na sua substituição por uma nova ordem socialista. Para o jurista burguês, a palavra ‘Direito’ está inseparavelmente ligada ao conceito de Estado, enquanto órgão de defesa e instrumento de coerção nas mãos da classe dominante. Com o declínio, ou mais corretamente, com o perecimento do Estado, declina, perece, naturalmente, também o Direito em sentido burguês. Precisamente acerca de um Direito Proletário podemos falar apenas enquanto Direito da época de transição, Direito do período da Ditadura do Proletariado ou, então, como Direito da sociedade socialista, em sentido inteiramente novo dessa palavra, posto que com a eliminação do Estado, como órgão de opressão, em mãos de uma determinada classe, as relações entre os homens no ordenamento socialista serão reguladas não pela coerção, mas pela boa vontade consciente dos trabalhadores, i.e., pela nova sociedade inteira. (2009, p. 36 – Nossos grifos)

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Bibliografia

LUKÁCS, György Para uma ontologia do ser social, I. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. 3 vols. SP: Abril Cultural, 1983.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. SP: Boitempo, 2002.
. Filosofia, ideologia e ciência social. SP: Boitempo, 2008.
. Estrutura Social e Formas de Consciência II. SP: Boitempo, 2012.
PACHUKANIS, Evgeny. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.
STUCKA, P. I. Direito e Luta de Classes. São Paulo: Acadêmica, 1988.

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