Um Milan Kundera é um livro anti-ajuda. Por Carla Luciana Silva
Um Milan Kundera é um livro que se destaca em qualquer livraria de aeroporto. Diante da profusão de futilidades e livros de autoajuda empresarial então… não há qualquer dúvida. Ele foi o escolhido para suprir uma necessidade premente: desligar-se do mundo do aeroporto, mundo insuportável de pessoas conectadas a aparelhos que se ficassem desligados seria como se lhes faltassem os sinais vitais. Mundo das salas de embarque em que pessoas seguem trabalhando enquanto viajam de um lado a outro de suas empresas, fazendo o capitalismo funcionar desse jeito ai que já conhecemos.
Um Milan Kundera é um livro anti-ajuda. É absolutamente inquietante. É talvez a lembrança de A insustentável leveza do ser, aquela que eu procuro. Tomo o livro nas mãos e leio as frases eleitas pela editora: “Sutileza é a qualidade superior deste livro. Veja”; e “breve e encantadora comédia humana… Uma paródia deliciosa e feroz do stalinismo”. La Reppublica. Dou um salto pra trás, penso duas vezes. Será que Kundera transformou-se num propagandista barato e vagabundo do anticomunismo depois dos seus oitenta anos? Não, não pode ser, vou lhe dar um voto de fidelidade advinda lá de seu papel na minha adolescência e vou esquecer o que diz a imprensa de botequim. Vou levá-lo mesmo assim. Uau. Nenhum arrependimento, mas muitos desmentidos.
Este livro não é absolutamente nada sutil. É de uma inteligência necessária e incompreensível para quem vai com esse filtro de leitura, buscando sutileza ou um libelo anti-stalinista. A leitura que faz de Stalin (e ele teria razões de sobra para fazê-las) vai muito além do stalinismo. O livro não é sobre isso. O livro é sobre pessoas. Busco uma ou outra resenha e elas insistem em dizer que o livro fala sobre quatro amigos. Não é possível, o livro fala de quatro pessoas que convivem mas não são amigas, não se suportam, falam mal uns dos outros, vivem um mundo de falsidades, um mundo possível. Um teatro necessário que se consolida em uma festa onde os convidados fazem de conta que não viram o anfitrião e o mesmo faz de conta que está ocupado, como ocupadas estão as pessoas dos aparelhos de telefone, o tempo todo.
Uma mulher tenta o suicídio, assim, como se fosse colher flores no campo. Mas o suicídio não dá certo, algo inesperado se coloca no seu caminho e ela reage de tal forma ao empecilho que desiste da sua morte, já que um obstáculo se pôs ali. Ao fim da obra essa história volta e não se sabe se de fato aconteceu ou se é fruto da imaginação de seu indesejado filho que deveria ter sido morto junto com ela no suicídio, que a reconta. O filho, abandonado pela mãe, criado pelo pai, mas que preserva na parede um retrato da mãe.
A angústia não tem nada de insignificante nas histórias entrecortadas. O que pensar do homem que finge estar com um câncer terminal? Mas não, ele não quer atenção, porque ele finge que a doença não é nada, e faz com que os outros acreditem que ele convive muito bem com isso.
O Stalin que cria uma fábula mentirosa não surpreende, nem os seus lacaios que fingem acreditar. O que surpreende é que ele mesmo os observe conversando entre si sobre a mentira dele, e que mostre que a mentira era de certa forma um pacto de silêncio entre todos, os que obedeciam, os que achavam a situação absurda e depois riam às escondidas. A obediência cega à autoridade incontestável, esse é um mundo cínico, mas não é insignificante. Muito menos sutil.
É o mundo que convive com desculpantes, “como desculpante me sinto feliz quando nós nos desculpamos um ao outro, você e eu”. Mais que isso, sou alguém que “concordo com tudo que você acaba de me dizer. Com tudo. Não é bonito concordarmos, você e eu?” Desculpas e concordância. Assim como os asseclas de Stalin, o rapaz que convive com a mãe em pensamento, concordância e desculpas para um mundo nada insignificante.
A garrafa de armanhaque guardada com zelo no alto do armário. Tão importante e guardada em local inacessível para uma ocasião muito especial. Quando a situação chega, depois da tal festa insignificante, a tentativa de pegá-la no alto é frustrada e a garrafa cai espatifando no chão o tão precioso líquido. Ninguém o bebeu.
Há um jovem sem graça que inventa um vocabulário próprio, “tente, improvisando, falar uma língua fictícia, nem que seja por trinta segundos seguidos! Você vai repetir frequentemente as mesmas sílabas e seu balbuciar será logo desmascarado como uma impostura”. Mas o cara conseguia, criou um alfabeto como modo de se destacar na insignificância. Não demorou muito pra perceber que o alfabeto nasceu morto, já que apenas ele sabia falá-lo, ficava difícil chamar a atenção desta forma.
Milan Kundera deve mesmo ter reunido textos esparsos para compor o livro, mas isso não tira dele sua intensidade. Foi uma excelente forma de sair do mundo insignificante do aeroporto.
* Resenha: A festa da insignificância. Milan Kundera. SP, Companhia das Letras, 2014.
As pessoas estão agarradas a aparelhos para conectar com pessoas queridas, para ler ou ouvir música. Ler um livro de papel, um que se escolhe entre uma parca oferta, tem alguma vantagem?
Há gente que ainda anda por aí agarrada a uma montanha de papel como se a sua vida dependesse disso. Bizarro!
Glória, claro que tem vantagem.
A principal delas é o laço afetivo que se cria com o objeto e na própria relação entre texto e objeto.
Isso não é uma análise subjetivista:
http://literatortura.com/2014/01/impresso-ou-digital-baixa-venda-de-e-books-decepciona-editoras/