O que me parece deliberadamente pernicioso é não deixar explícito que uma cartilha é um documento limitado e de recortes que ficam ao arbítrio de quem os compõem. Por Ian Caetano de Oliveira

argila_1É sabido, a partir do que nos é apresentado pela história oficial, que no período nomeado de Idade Média (grosso modo entre os séculos V e XV) o número de letrados era diminuto. Ficava a cargo dos religiosos a leitura e a escrita. Ficava, pois, a seu encargo a interpretação e divulgação dos conteúdos sagrados, o mais significativo deles – ao menos formalmente – era a bíblia.

Os padres e outros clérigos eram os responsáveis pela leitura atenta da bíblia e pela divulgação sistemática de seu conteúdo. Ficando, pois, a seu encargo a proliferação da “interpretação oficial”, e oficial por ser a única, uma vez que ninguém mais sabia ler e, pelo que se sabe, em todo caso, mesmo que alguém soubesse, era proibida a leitura das sagradas escrituras por quem não fosse eclesiástico.

Sabemos também que uma das razões manifestadas pela chamada reforma protestante era precisamente a desproibição da leitura das escrituras sagradas, para que todos pudessem ter acesso aos ensinamentos do superior que atendia pela alcunha de Deus.

Se pegarmos a situação na qual se encontram os marxistas hoje, ficaríamos espantados – ao menos eu fico – com tamanha semelhança em termos de modus operandi à aquisição dos postulados teóricos do autor alemão.

Os diversos partidos da chamada “esquerda” criam um sem fim de cartilhas com a interpretação oficial do teórico, selecionando cuidadosamente excertos aqui e alhures para corroborar a interpretação “verdadeira” ou a consolidação do “verdadeiro marxismo” ou daquilo que “Marx realmente queria dizer”.

argila_4Não me entendam mal, longe de mim estar a escrever aqui um manifesto pela abolição das cartilhas. Entendo sua função. O que me parece deliberadamente pernicioso é não deixar explícito que uma cartilha é um documento limitado e de recortes que ficam ao arbítrio de quem os compõem. Não, diferente disso, as cartilhas são postas como o Marx sem o “prolixo” de sua escrita e sem o “técnico-teórico” de seus conceitos. É um Marx real, enxuto e desnudo.

E, assim, ficamos então, com qualquer um se dizendo marxista tendo lido uma brochurinha (como normalmente são as cartilhas) de uma dúzia de páginas, que sistematiza todo o pensamento teórico-econômico, filosófico e histórico de Marx e dos seus. E, se perguntarmos “que diabos significa isso? Esse negócio de ‘ser marxista’”. Responder-nos-ão, por certo, alguma coisa genérica sobre ser contra os burgueses e lutar pela revolução. Se perguntarmos mais, aposto, começarão a suar e gaguejar ante a fragilidade das próprias bases.

Assim ficam os marxistas de hoje tal qual os crentes da idade média: acreditam no que lhes foi falado que era oficial, sem nunca terem posto as mãos nos documentos de fato, sem nunca tê-los lido.

O próprio Lênin, sujeito que leu bastante Marx, era bastante apologista das cartilhas. (O que, pela distorção ou não, parece explicar a tara que os partidos leninistas têm com a pregação das cartilhas).

Não que ler os textos na fonte, em termos de militância, seja uma obrigatoriedade; ou que isso vá trazer algum fruto imediato para que avancemos rumo à revolução. Mas se reivindicamos uma bandeira – o marxismo; algum significado para nós esta bandeira deve ter. Então que seja, antes, a de uma interpretação sofrida, mas feita de forma própria, dos escritos daquele que dá nome à bandeira, do que a interpretação dos sábios que dizem deter a leitura correta do autor que querem vender como messias.

Assim como cumpria um papel muito importante essa separação do trabalho intelectual na idade média; cumpre também uma função esse seccionamento na esquerda hoje. Os capas-pretas, que não são necessariamente as figuras públicas, ditam a linha interpretativa conveniente. E, sabemo-los todos, estandardizar o que se pensa sobre as coisas torna muito mais eficiente o controle dos “soldados rasos”.

argila_3Legar às pessoas a possibilidade de uma perspectiva interpretativa nova dos dilemas implica lega-las a capacidade do questionamento dos papas e, ato contínuo, fica aberta a possibilidade do questionamento da hierarquia instituída e dos pressupostos apregoados por esta; bem como os objetivos pregados como “melhores” hoje, talvez amanhã não o sejam mais.

A divisão entre as funções da massa do partido (ou do movimento, pois diversos seguem esta mesma lógica; e não sejamos inocentes de acreditar que os anarquistas não incorram no mesmo problema, vários o fazem) e dos seus intelectuais, expressa-se, pois, como uma necessidade destes partidos para maximização da eficiência do controle, do domínio. Assim permanecem os burocratas felizes em suas salas elegendo aquilo que “Marx realmente queria dizer” e repassando isso aos soldados rasos, e, estes, por sua vez, como bons crentes, cumprem sua honrada função; “marxistas” convictos que são.

“Tudo que sei é que não sou marxista”, falou Marx em algum momento da sua vida; no sentido atual do termo, me parece mais que verdade, uma vez que Marx, embora também tenha escrito cartilhas (mas como eu disse antes, a existência destas não é um problema enquanto tal) nunca foi sujeito dado a acreditar de pronto nelas.

2 COMENTÁRIOS

  1. Não é à toa que alguns dos chamados “marxistas heterodoxos” sejam de fato marxistas ortodoxos, porque são de uma leitura direta das fontes não mediada pelas cartilhas e resumos.
    A verdade é que a obra de Marx é uma verdadeira bagunça articulada que era as tentativas de se fazer uma “ciência alemã” sob inspiração “positivista” ou “francesa”. Na ausência de um “discurso sobre o método marxista” surgem milhões de neófitos prontos a trazer por esforço (e também por preguiça) um “método marxista” que na militância se traduz numa espécie de tratado celeste que investe os “marxistas”. E pra piorar ainda, há alguns anarquistas que (talvez percebendo a farsa) se colocam como autoridades em ambos os campos sendo o “marxismo” inferior ao clássico “anarquismo”. Enquanto isso, o proletariado se enfurece e se organiza por preceitos de “esquerda” que mais se assemelham ao um “franciscanismo” radical que a um projeto de nova sociedade, enquanto uma “onda conservadora” avança por baixo do radar das super “análises de conjuntura” dos justiceiros sociais.

  2. Ian Caetano de Oliveira, realizou uma reflexão que vinha indagando a meus botões faz um tempo. Marx, é hoje um ser fetichizado, como se ele, assim como a fatídica mesa dançante que invoca no Capital, se tornou um autor-mais-que-um-autor. E em torno desse fetiche criou-se todo esse alto e baixo clero que querem muito mais afirmar a necessidade de si, do que construir um projeto humanista.

    Abraços

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here