Por Passa Palavra

Noite de protesto

Estamos na Vila Itatiaia, região norte de Goiânia, Goiás. Na terça-feira à noite, dia 21 de julho, começa o debate convocado pela comunidade escolar na porta do Colégio Estadual Waldemar Mundim. Está escuro, mas lotado: mais de 120 pessoas. O crescimento do movimento é claro. Depois da apresentação, uma das primeiras falas é de uma mãe contrária ao movimento: “A maioria deve ser a favor. Os meninos precisam de disciplina e ordem. Os colégios públicos hoje são cheios de traficantes, drogados, criminosos. Com os militares isso vai mudar”.

Enquanto ela falava, o público, tímido até então, começou a exigir e pressionar a organização do debate para ter sua vez de fala também. Várias mães e pais, estudantes e professores indignados. “Não tenho condições de pagar a taxa e o uniforme”, “meu filho não vai bater continência pra ninguém não”, “tráfico tem em toda esquina, não é militar no colégio que vai resolver isso não”, “vocês tão falando que filho de pobre é tudo criminoso e precisa de polícia”…

Para a surpresa de muitos, a maioria dos pais e alunos era contra não só pelas taxas que passarão a ser cobradas com a mudança, mensalidade e compra do uniforme, mas pela própria ideia da gestão militar e estrita do ensino para seus filhos. Esses pais queriam agir para impedir essa decisão de se efetivar. Até então, era um consenso que a população era completamente a favor da depuração militar da indisciplina escolar.

Chegou a parecer que o chamado “retrocesso conservador” moral e penal não era tão assustador quanto querem fazer crer aqueles a quem o povo mobilizado não só causa perplexidade, mas principalmente medo. Mas como se deu esse processo? Quais os caminhos que a mobilização vem tomando?

A solução militar

Um dos motivos é a natureza da mudança. Em meio à greve dos trabalhadores da educação do estado de Goiás, dia 24 de junho, o governador Marconi Perillo (PSDB) propõe um projeto de militarização de oito colégios em Goiânia. As razões alegadas são “o bom desempenho no IDEB e no vestibular”, além das “melhorias na disciplina e senso cívico dos alunos”. Por coincidência, dois desses colégios estão entre os que pararam 100% e não voltaram. O projeto, aprovado, dava um prazo de 30 dias para que se viabilizassem as condições necessárias para a conversão desses colégios em militares. E vetava, ao menos nesse ano letivo, a transferência de pessoal administrativo ou docente do colégio.

A militarização de um colégio implica em algumas consequências. A Secretaria de Educação, Cultura e Esportes (SEDUCE) realiza um convênio com a Secretaria de Segurança Pública. Nesse convênio, 24 policiais militares serão utilizados para cargos administrativos, substituindo a secretaria e inclusive a direção do colégio. As atuais direções civis ficarão na função de vice-diretores dos gestores militares, ao menos inicialmente. Entre as escolas, apenas dois diretores não aceitaram a proposta. 50% das vagas do colégio ficarão reservadas para filhos de policiais e bombeiros. Os regimentos escolares serão adaptados aos atualmente existentes nos Colégios Militares.

Para os professores e trabalhadores administrativos, uma das diferenças é que agora terão gestores militares supervisionando seu trabalho, pressionando para o cumprimento das metas da SEDUCE e interferindo nas suas aulas e no papel disciplinador exercido pelos docentes. Uma das falas da Secretária de Educação, Cultura e Esportes nesse sentido é reveladora:

“[…] a principal diferença é a disciplina, pois em um lugar disciplinado os alunos aprendem mais. ‘Em uma sala em que o professor perde vários minutos para conseguir silêncio, para fazer chamada, isso não é possível. E no próprio cenário criado nas escolas militares há uma disciplina muito rígida, fora o acompanhamento de qualidade que existe. Há uma coordenação central que acompanha o desempenho de cada professor e cobra dele’ (ver aqui)”.

A disciplina não se aplica só aos estudantes, mas também aos trabalhadores das unidades escolares. Fica explicada, então, a coincidência entre as greves totais e a mudança de gestão das escolas. Trata-se de uma maneira de o Estado quebrar a resistência dos trabalhadores nos seus locais de trabalho em implementar as metas educacionais impostas no Pacto pela Educação. Caso o gestor se mostre incompetente ou indisposto para a tarefa de quebrar essa resistência, pode ser facilmente substituído. Isso, nas palavras do governo do estado, é uma “gestão flexível, mais adaptável à realidade escolar”, comparada às atuais direções eleitas pela comunidade escolar, que são um pouco mais difíceis de substituir às escuras.

Para os estudantes e pais, o impacto também é claro. A reserva de vagas dificulta o acesso de muitos e os custos também são proibitivos. Esses custos são: a) uma “taxa voluntária” de R$50,00 a R$80,00 (varia conforme a unidade); b) uniformes que custam cerca de R$350,00; c) taxa de matrícula que vai de R$80,00 a R$100,00 [1]. Uma vez que a estrutura do colégio e os professores são custeados pelo Estado, trata-se de um recurso que pode fazer a diferença na manutenção e estruturação do colégio. No caso do Waldemar Mundim, por exemplo, só pelo número de alunos haveria uma renda de R$80.000,00 reais por mês. É pouco dinheiro, mas com os custos fixos por conta do estado torna-se uma soma considerável. Com isso, transfere-se um custo que estava nas mãos do Estado para os estudantes e pais. Trata-se de uma privatização parcelada, na tradição das concessões petistas e Organizações Sociais (OS) da saúde no estado peessedebista [2].

O código disciplinar (muito similar ao do treinamento de recrutas militares) é outro aspecto que gera muita resistência. Quem não chega no horário exato da aula tem que assinar um “boletim de ocorrência” e às vezes não pega aula, o uniforme (com mais de dez peças) tem que estar perfeitamente em ordem, o cabelo dos meninos tem que ser curto e os das meninas rabo de cavalo, são proibidos piercings e tatuagens, “linguagem desrespeitosa e gírias” (como “mano” e “velho”) são proibidas também. Ao começo de cada aula, os alunos tem que bater continência para o professor e pedir autorização para se sentar. “Gestos amorosos” são rigorosamente proibidos [3]. Grêmios estudantis não são formalmente interditados, mas na prática proibidos. Os filhos ficam, então, completamente à mercê dos pais para fazer qualquer reinvindicação. A lógica é muito similar à dos colégios particulares mais estritos, com a diferença de que o gestor e os bedéis estão armados. Obviamente, para muitos estudantes já estão sendo preparadas as suas expulsões ou “transferências educativas”.

Ao contrário do que dizem as discussões que colocam o governo de Marconi Perillo (PSDB) como um coronelismo arcaico, esse projeto de militarização não é um “entulho autoritário”. É um projeto piloto ou um laboratório para a educação pública no estado de Goiás. Outra declaração de Raquel Teixeira nesse sentido também é reveladora:

“Temos 1,2 mil escolas e temos apenas 20 colégios militares. É assim no mundo todo. As próprias “charter schools” são apenas 6% da rede de ensino. Mesmo sendo uma boa escola, nunca ocupará todo o sistema”.

A resistência à implantação dessas escolas é, então, uma resistência a um piloto que busca legitimar a política de privatização parcelada, “descentralização de gestão” imposta de cima pra baixo, a imposição de códigos de comportamento estritos sobre os estudantes e o reforço do assédio sobre os trabalhadores da educação para implementação de metas pré-estabelecidas. Os atacados aqui são a autonomia dos estudantes na sua sociabilidade escolar, a autonomia dos trabalhadores da educação na sua resistência no local de trabalho e a autonomia dos pais e moradores em definir a gestão das escolas próximas. Qualquer resistência efetiva tem que se pautar na defesa dessas autonomias e construir na própria luta um reforço delas.

A velha toupeira contra o velho inimigo

A resistência contra a militarização começou a se tornar pública a partir de uma iniciativa de um jornal comunitário da região, o Jornal O Prego. Um debate no fim de semana, nas férias, reuniu 40 pessoas entres pais, estudantes, professores e alguns trabalhadores da região. Nesse debate, foi decidido que se faria outra reunião dentro do colégio com mais mobilização para tentar continuar a luta. A iniciativa se ampliou então de um pequeno jornal para a participação de moradores, pais, estudantes e professores. Foi marcada uma reunião duas semanas após essa primeira atividade e após intensa negociação com a direção do colégio, conseguiu-se marcar a reunião lá dentro na terça-feira à noite, às 19h30.

A mobilização que até então tinha ficado no Facebook e no Whatsapp, além do boca a boca, tomou uma face mais militante com as panfletagens nos pontos de ônibus e comércios. Foram deixados avisos na Igreja Católica da região, além das igrejas evangélicas. Mas um aspecto importante foi a passagem de casa em casa, batendo nos portões e conversando com os pais e estudantes dos bairros próximos sobre a pauta. Essa divulgação, por mais que não tenha chegado a todos, gerou uma repercussão grande na comunidade.

Esse processo de debate, participação aberta e militância concreta contribuíram decisivamente para que o debate em frente à escola se realizasse apesar do boicote da SEDUCE e da diretora, que impediram de última hora a utilização do colégio. O movimento improvisou estrutura de som, cadeiras e prosseguiu com a atividade em frente aos portões fechados do Waldemar Mundim com mais de 130 pessoas. Apesar da grande disposição das pessoas presentes, que surpreendeu quem acreditava no consenso “regressivo”, muitos eram inexperientes e não sabiam como organizar próximas ações.

Quando chegaram aos encaminhamentos, a maioria das pessoas já tinha saído por conta do horário avançado e da insistência de parte dos organizadores em dar um formato acadêmico à atividade de luta, com intelectuais “conselheiros” que não tinham como dar a principal resposta que os pais e estudantes tinham ido lá buscar: “o que fazer para não perdermos nossa escola?”

Apesar da inexperiência dos lutadores, conseguiu-se aprovar uma manifestação da comunidade que foi feita na sexta-feira (24). Nessa manifestação, que se iniciou com uma assembleia, foram marcadas mais atividades para a ampliação da luta e se agregaram mais lutadores da região, pais e estudantes na organização das atividades.

O movimento até agora conseguiu algumas vitórias. Em primeiro lugar, rompeu com a unanimidade que se acreditava existir em torno da militarização como uma distopia purgatória e educacional. Ficou claro que um número significativo de professores, estudantes e pais acreditam em outra forma de resolver os conflitos escolares que não a exclusão dos desajustados. Essa clareza resultou em uma ampla cobertura de imprensa e repercussão social. Em segundo lugar, a Secretaria de Educação Pública e o Comando de Ensino da Polícia Militar estão tendo que dar explicações, atenuar algumas coisas, inclusive acenar com isenção das taxas e dos uniformes para a comunidade. Em terceiro, o Ministério Público acenou com a possibilidade de questionar legalmente a legislação que implantou a militarização nessas escolas.

Tudo isso foi conseguido através da mobilização de base, no bairro e na escola. A inserção na região, o diálogo com os trabalhadores e moradores foi a chave para que o movimento progredisse. No entanto, não houve ainda um aceno de que a militarização será revertida e ela está marcada para começar efetivamente na próxima semana. Ainda trata-se, também, do movimento de apenas uma escola em um contexto de sete unidades sendo militarizados. Como o movimento conseguirá reverter o considerável apoio e repercussão que conseguiu em uma ação mais contundente? Conseguirá romper com seu isolamento geográfico sem o intermédio de burocracias sindicais ou partidárias? Conseguirá achar uma forma de organização que efetive o desejo de ação das pessoas diretamente afetadas?

Imagens do filme Guerra de Botões (La Guerre des Boutons), de Yann Samuell.

NOTAS

[1] Após pressão do movimento, a Secretária Raquel Teixeira deu uma declaração (ou foi interpretada nesse sentido pelo jornalista) de que essas taxas não serão cobradas nas novas escolas. Mas nenhuma declaração oficial ou documento ainda permite confirmar isso. As declarações dadas na notícia do Jornal Opção, por exemplo, contradizem em parte outras da notícia do Diário da Manhã, em que o Comando Militar “esclarece” que “apenas” as taxas voluntárias serão cobradas e os que não se adequarem “terão a liberdade de se transferirem”.

[2] Para um exemplo disso, ver as “concessões” escolares no Pará, que se espelham abertamente no modelo de escolas charter nos Estados Unidos. Até as críticas feitas pelo movimento são similares: “Seus críticos, porém, apontam com frequência que essas escolas tidas como excepcionais em geral recebem financiamento extra, atendem menos alunos com problemas disciplinares, e dariam ênfase excessiva para a preparação para testes”.

[3] Quem não acreditar pode ver o regimento do “colégio modelo” militar, o Hugo de Carvalho Ramos.

3 COMENTÁRIOS

  1. Parece que uma outra escola aderiu ao movimento. Reproduzo aqui uma entrevista produzida pelo Jornal o Prego. A coisa prossegue.

    ::::: ENTREVISTA COM EDUCADOR EM LUTA CONTRA A INTERVENÇÃO MILITAR EM SENADOR CANEDO

    “Quarta feira, dia 29/07, à noite. Senador Canedo. Se reuniram mais de 150 pessoas entre pais, professores e estudantes na quadra coberta do Colégio Estadual Pedro Xavier Teixeria. Um dos presentes no debate é o prefeito da cidade, Misael Teixeira (PSDB). Começa a discussão sobre a militarização do colégio e a comunidade é unânime na rejeição da intervenção militar, apesar das falas do prefeito querendo defender a proposta.

    Conversamos com um dos educadores presentes na atividade e compartilhamos aqui a entrevista para fins de discussão e esclarecimento.

    Jornal O Prego (JOP): Como foi a atividade ontem?
    Educador Entrevistado (EE): Eram mais de 100 pessoas. Ontem expusemos o tal MILITARISMO a ser imposto aqui no colégio. Colocamos todas as problemáticas sobre nossa escola. Falamos que somos a favor de uma Escola Militar no Canedo sim, mas não nessas circunstâncias, por imposição e em um prédio sem estrutura e também pelo fator de não existir outra escola para os alunos que com certeza serão excluídos de lá. O prefeito Misael tentou argumentar que seria uma ótima opção para a cidade e foi vaiado na hora. Dissemos que tem outras escolas em outro setor que realmente seria o local destinado ao projeto de Escola Militar. E os nossos professores estão sendo punidos por causa da greve. Com essa imposição de militarismo. Para serem vigiados e obrigados a retornarem pra sala de aula. Foi falado também sobre os altos custos a partir de janeiro, com fardas….livros… e por aí vai.

    Pra não cansar o leitor, quem quiser saber mais pode checar no link abaixo:

    https://www.facebook.com/900286073337421/photos/a.908867152479313.1073741827.900286073337421/1012338962132131/?type=1&theater

  2. Quais colégios vão passar por isso? JÁ está confirmado? E os alunos que não puderem pagar?

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