A cidade tornou-se uma empresa, uma pátria e uma mercadoria onde os esforços são concentrados no sentido de vender uma imagem positiva para aos investidores que fazem girar a máquina do capital financeiro. Por Arthur Moura
O texto aqui proposto é uma breve leitura do livro “As Prisões da Miséria”, de Loïc Wacquant. A obra, publicada em 1999, apresenta um panorama político tenso em que a miséria é ao mesmo tempo gerada e instrumentalizada como ganhos políticos e financeiros no mercado mundial em que os Estados-nação e as grandes corporações dividem os lucros. Sabe-se que a miséria existe sobretudo nos países ditos “desenvolvidos” tornando-se ainda mais evidente em períodos de crise do capitalismo, pois dentro dessa dinâmica também acirram-se os confrontos entre as classes que se antagonizam. Essa crise é disparada contra um público previamente determinado que sofrerá remoções, prisões, torturas e assassinatos tendo nas forças coercivas o instrumento letal contra populações inteiras formando uma verdadeira ditadura sobre os pobres. Para além do recorte de classe faz-se necessário um olhar racial e de gênero, pois os que alimentam as prisões, por exemplo, são geralmente negros, jovens, latinos imigrantes e demais segmentos desprivilegiados. Dentro de todo esse panorama é preciso pensar a política e seu caráter. Martha Harnecker faz a diferenciação entre a política conservadora e a política revolucionária. Os conservadores pensam a política como a arte do possível. É, diz Martha, a política que se adapta a situações e que aceita o status quo. A política revolucionária é “a arte de fazer possível no futuro o que aparece como impossível no momento atual”. Para isso, há que se mudar a correlação de forças e isso é possível por meio da organização popular, da organização que supera o voluntarismo e analisa a realidade através de ações sistemáticas.
Segundo Loïc Wacquant, a construção de um Estado penal obedeceu ao consequente desmonte das políticas sociais do Estado-providência que aos poucos, a partir da década de 90, se tornou irrelevante para o interesse dos capitalistas interessados principalmente em alargar os lucros e fazer avançar os mercados. Essa política age diretamente sobre a miséria colocando-a como uma das causas do problema, sendo por isso preciso administrá-la e, muito frequentemente, eliminar seus excessos. Com isso normatiza-se o trabalho assalariado precário justificando o estado de coisas atual. Esse mundo do trabalho reflete diretamente as exigências dos mercados, que segundo Bourdieu,
instaura-se assim o reino absoluto da flexibilidade, com os seus recrutamentos por contratos de duração determinada ou os seus trabalhadores temporários e “planos sociais” de repetição, e com a instauração, dentro da própria empresa, da concorrência entre filiais autónomas, entre equipas, às quais é imposta a polivalência, e, por fim, entre indivíduos, por meio da individualização da relação salarial: fixação de objetivos individuais; instauração de entrevistas individuais de avaliação; aumentos individualizados dos salários ou concessão de prêmios em função da competência e do mérito individuais; carreiras individualizadas; estratégias de “responsabilização” tendendo a assegurar a auto-exploração de certos quadros que, simples assalariados sob uma forte dependência hierárquica, são ao mesmo tempo considerados responsáveis pelas suas vendas, pelos seus produtos, pela sua sucursal, pelo seu estabelecimento, etc., à maneira de “independentes”; exigência do “auto-controle” que alarga a “implicação” dos assalariados, segundo as técnicas da “gestão participativa”, muito para além dos empregos de quadros; outras tantas técnicas de sujeição racional que, ao mesmo tempo que impõem o sobreinvestimento do trabalho, e não apenas nos postos de responsabilidade, e o trabalho com caráter de urgência, concorrem para enfraquecer ou abolir as referências e as solidariedades coletivas. (BOURDIEU, Pierre. Contrafogos, pág. 132)
Esse novo mundo do trabalho, altamente individualizado e entregue à dinâmica empresarial da competência, não vê problemas na miséria que se funda em suas próprias práticas. Para isso os mecanismos do Estado penal sobrepõe-se ao simples alardear do subproletariado. Sobre isso, diz Wacquant, houve
a redefinição das missões do Estado, que, em toda parte, se retira da arena econômica e afirma a necessidade de reduzir seu papel social e de ampliar, endurecendo-a, sua intervenção penal. O Estado-providência europeu deveria doravante ser enxugado, depois punir suas ovelhas dispersas e reforçar a “segurança”, definida estritamente em termos físicos e não em termos de riscos de vida (salarial, social, médico, educativo etc.), ao nível de prioridade da ação pública.
Esse Estado penal, segundo o autor, foi resultado direto de uma difusão sobre as formas como os Estados Unidos forjaram as políticas de segurança. “Essa vasta rede de difusão parte de Washington e Nova York, atravessa o Atlântico para aportar em Londres e, a partir daí, estende suas ramificações por todo o continente”, afirma. Um dos elementos principais dessa trama são os institutos americanos, grandes produtores do pensamento econômico liberal que, por exemplo, no caso do Manhattan Institute, popularizou o discurso e os dispositivos visando reprimir os “distúrbios” provocados por aqueles que Alexis de Tocqueville já chamava de “a derradeira população de nossas grandes cidades”, que tinha em seus quadros Charles Murray, guru da administração de Ronald Reagan (1981-1989). Segundo o livro de Charles Murray, diz Wacquant, “a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e induz à degenerescência moral das classes populares, sobretudo essas uniões ‘ilegítimas’ que são a causa última de todos os males das sociedades modernas – entre os quais a violência urbana”. Esses escritos encomendados pelo próprio capital em favor de sua dinâmica destrutiva sustentam que “as desigualdades raciais e de classe na América refletem as diferenças individuais de ‘capacidade cognitiva’. São, portanto, elementos que vão fortalecer as ações policiais e legitimar a ideia de uma “tolerância zero” com relação aos setores mais pobres da população que beneficiará consequentemente setores médios e altos da sociedade. Segundo Wacquant,
de Nova York, a doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente.
Vê-se construir a noção de inimigo interno que alimentará sobretudo as páginas dos jornais sensacionalistas ou claramente de direita, os telejornais e revistas semanais. Essa política austera é possível graças ao “interesse e a anuência das autoridades dos diversos países destinatários” que veem na prosperidade americana (que se deve ao seu desempenho na economia) uma fórmula bastante simplista para os seus problemas: menos Estado. Essa dinâmica própria do capitalismo funciona num movimento cíclico entre tendências conservadoras ou liberais e reformistas que conformam as forças do capital ora em avanços devastadores ora em passos moderados. Assim se refere István Mészáros sobre os aspectos gerais do capitalismo ao longo da história em “Para Além do Capital”:
O poder do capital é exercido como uma verdadeira força opressora em nossa era graças à rede estreitamente entrelaçada de suas mediações de segunda ordem – que emergiram de contingências históricas específicas ao longo de muitos séculos. Foram sendo fundidas durante a consolidação do conjunto do sistema, produzindo assim um imenso poder sistêmico de discriminação em favor do modo de intercâmbio reprodutor do capital que se desdobrava aos poucos e contra todas as possibilidades contrárias de controle sociometabólico. É assim que, ao longo de toda a sua constituição histórica, o capital se tornou, de longe, o mais poderoso (uma “bomba de extração”, segundo Marx) extrator de excedentes conhecido da humanidade. Na verdade, adquiriu com isto uma justificação auto-evidente de seu modo de ação. Esse tipo de justificação poderia ser mantido enquanto a prática cada vez mais intensa da própria extração de excedentes – não em busca da gratificação humana, mas no interesse da reprodução aumentada do capital – conseguisse esconder sua destrutividade final.(MESZÁROS, István. Para Além do Capital, pág.: 199)
O Estado penal corresponde portanto a essa dinâmica do próprio capital e suas políticas impositivas que geram uma alta lucratividade para uma parcela muito pequena da população, que, segundo Wacquant, “95% do saldo de 1,1 trilhão de dólares gerado entre 1979 e 1996 caíram nas algibeiras dos 5% mais ricos dos americanos”. Isso faz com que as disparidades tornem insuportável a vida do ponto de vista material, fazendo evocar confrontos em todas as ordens possíveis da realidade, “pois a atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro”. Como consequência há um aumento considerável da população carcerária fazendo movimentar também todo um comércio em torno da construção de novas instituições capazes de concentrar a delinquência das ruas. Sobre isso, afirma Wacquant:
contrariamente ao discurso político e midiático dominante, as prisões americanas estão repletas não de criminosos perigosos e violentos, mas de vulgares condenados pelo direito comum por negócios com drogas, furto, roubo ou simples atentados à ordem pública, em geral oriundos das parcelas precarizada da classe trabalhadora e, sobretudo, das famílias do subproletariado de cor das cidades atingidas diretamente pela transformação conjunta do trabalho assalariado e da proteção social. De fato, em 1998, a quantidade de condenados por contenciosos não-violentos reclusos nas casas de detenção e nos estabelecimentos penais dos Estados Unidos rompeu sozinha a cifra simbólica do milhão. Nas prisões dos condados, seis penitenciários em cada dez são negros ou latinos; menos da metade tinha emprego em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços provinham de famílias dispondo de uma renda inferior à metade do “limite de pobreza”.
E continua o autor:
ao mesmo tempo, a implantação das penitenciárias se afirmou como um poderoso instrumento de desenvolvimento econômico e de fomento do território. As populações das zonas rurais decadentes, em particular, não poupam esforços para atraí-las: “Já vai longe a época em que a perspectiva de acolher uma prisão lhes inspirava esse grito de protesto: not in mybackyard. As prisões não utilizam produtos químicos, não fazem barulho, não expelem poluentes na atmosfera e não despedem seus funcionários durante recessões”. Muito pelo contrário, trazem consigo empregos estáveis, comércios permanentes e entradas regulares de impostos. A indústria da carceragem é um empreendimento próspero e de futuro radioso, e com ela todos aqueles que partilham do grande encerramento dos pobres nos Estados Unidos.
A prisão passa pouco a pouco a fazer o papel do gueto concentrando enormes populações que antes se concentravam fundamentalmente em bairros pobres marginalizados. A criminalização da miséria, segundo Wacquant, “é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário e sub-remunerado como obrigação cívica, assim como o desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante” promovendo um verdadeiro controle dos miseráveis pela força. O aumento sistemático das forças coercivas é também sintomático no Brasil principalmente com o novo processo de mercantilização da cidade, tendo nos jogos mundiais a prerrogativa de defesa da cidade em benefício da expansão dos grandes setores empresariais no jogo do capital global. Observou-se nesse processo uma luta sistemática do Estado contra os moradores das periferias que tiveram suas casas derrubadas para dar lugar a novos estacionamentos, shoppings, prédios empresariais ou de instituições burocráticas do aparelho estatal. E quando há organização dos setores populares na luta pela moradia ou à cidade, a criminalização das lutas sociais através de leis de segurança nacional intervém no sentido de anular os direitos daqueles que simplesmente buscam uma relação cidadã com os territórios. A cidade tornou-se uma empresa, uma pátria e uma mercadoria onde os esforços são concentrados no sentido de vender uma imagem positiva para aos investidores que fazem girar a máquina do capital financeiro. Para Wacquant, “a despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a urgência, no Brasil como na maioria dos países do planeta, é lutar em todas as direções não contra os criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência”.
Arthur Moura é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, mestrando em educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores, programa Processos Formativos e Desigualdades Sociais.
Fotografias de Fernando Moleres
Excelente resenha. Li o livro, mas estou cá lendo algumas resenhas para enriquecer a absorção de todo esse conhecimento que nos é ofertado por essa obra desafiante e complexa do Wacquant.