Afinal, o que atravessa esse momento aparentemente tão banal de produzir faixas e bandeiras para uma mobilização de rua? Por lucas
O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé
o que vocês fariam pra sair dessa maré?
O que era pedra vira corpo
Quem vai ser o terceiro a me responder?
Andar por avenidas enfrentando o que não dá mais pé
juntar todas as forças pra vencer essa maré
O que era pedra vira homem
e o homem é mais sólido que a maré.
(Milton Nascimento e Fernando Brant)
Quando em política dizemos “base”, “organização de base”, que queremos dizer? Ensaiemos uma resposta. A base é o apoio mais elemental de qualquer mecânica, de qualquer funcionamento, é sobre onde recai um peso, é o nível mais fundamental de qualquer composição. Nada está abaixo da base, em um coletivo de base não há ninguém “abaixo” dos demais. Os dois conceitos formais dessa igualdade são a essência da democracia grega clássica: a isonomía, todos com igual valor frente às regras, expressa no valor igual dos votos; e a isegoría, igualdade das vozes, expressa na igual possibilidade de se tomar a palavra. A base é o nível elemental de uma comunidade política que assume essas características democráticas, mais além de qualquer prática ou natureza, como a eleição de delegados (que cria um segundo andar para fins práticos e políticos específicos) ou como a natureza gremial (onde a composição desta comunidade política está definida pela organização social dos meios de produção).
A expressão mais acabada desta comunidade política é a assembleia, a ekklesía das sociedades gregas antigas, onde cada integrante da comunidade é reconhecido dentro dos códigos da isonomia e da isegoria. Cada individuo um voto e o direito à palavra. Mas a assembleia não é o encontro do cotidiano e do funcionamento diário desta comunidade, ela é a expressão dos processos de decisão desta comunidade política quando ela se une para atuar de forma coletiva e consciente frente a um cenário (como quando o exército grego se reúne para debater a peste que os acomete, ou quando Atenas decide fazer guerra contra os aliados de Esparta). A própria noção de comunidade política pressupõe que há um vínculo entre os indivíduos que não se dissolve facilmente, a fala pública para a apresentação de argumentos, proposta e convencimento dos pares serve como primeira mediação, o voto como mediação final. Não é possível chegar a um consenso quando alguns companheiros querem voltar à seus palácios antes de incendiar Troia, ou quando alguns são contrários a ocupar a fábrica para combater a demissão massiva de companheiros nos portões. Uma assembleia é uma urgência que reflete as construções cotidianas, os laços de confiança forjados no dia a dia, o embate de pessoas que vivem o mesmo mas pensam diferente, sentem diferente. No caso de uma fábrica, por mais que haja uma grande cisão expressa numa votação acirrada, a comunidade política dificilmente se rompe por incompatibilidades ideológicas: a necessidade de construir com companheiros e companheiras de diferentes opiniões e formações se impõe a partir de como a própria sociedade se encontra organizada. É uma composição orgânica de comunidade política, no sentido em que a comunidade política expressa a organização social; em outras palavras, se trata da auto-organização da classe trabalhadora enquanto classe, enquanto produtores de mais-valia. Outra coisa são os grupos que se juntam em assembleias a partir de criações sociais subjetivas, como os partidos ou organizações políticas, religiões, etc. Ambos tipos de comunidades se caracterizam por estruturarem-se formalmente por uma base, havendo mais facilidade no segundo tipo para que as votações e as cisões assembleárias terminem em rupturas na própria composição da comunidade política.
Pensemos, para exemplificar, na diferença real de fundo e de prática que podemos encontrar em assembleias de comunidades tão distintas como a de trabalhadores de uma fábrica, os estudantes de uma faculdade pública de humanidades, os professores de um cursinho popular, os moradores de um bairro rural no interior do país. Façamos o exercício de imaginar os processos de cada assembleia destas, as dinâmicas no uso da palavra, os objetivos e métodos que estão em disputa, as consequências das decisões tomadas. A construção assembleária por consenso pressupõe uma crença na total conciliação das posições, o que no final resulta na impossibilidade de construir politicamente com posições discordantes. Ao paralisar a comunidade nos metros rasos dos acordos mínimos, qualquer ação prática pressupõe uma homogeneidade opinativa que tem como contra-cara o fracasso coletivo diante de posições antagônicas, matéria viva de qualquer comunidade humana. A capacidade de organizar-se politicamente aceitando a existência de posições antagônicas é justamente aquilo que possibilita que uma comunidade política sobreviva e supere estas cisões, a mesma capacidade de aceitar uma derrota momentânea que não signifique uma ruptura sectária mas sim um momento de um processo mais amplo e em movimento. Por posição antagônica entendemos uma linha de ação a ser defendida, como o “ocupar” contra o “não ocupar”, e não simplesmente posições ideológicas diferentes. É desta forma que os trabalhadores, os moradores, os estudantes e demais setores da classe trabalhadora podem atuar conjuntamente de forma coletiva, como coletivos e não como individualidades aderentes, que só aceitam participar se seus caprichos forem integralmente contemplados. Reconhecer-se como parte de um coletivo mais amplo, e em última instância, de uma classe, é também aceitar que a comunidade política a qual pertencemos nem sempre acerta, e que seremos derrotados muitas vezes. Mas, seria esse um bom motivo para abandonarmos a luta?
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Um pequeno excurso sobre a autogestão: se por um lado no âmbito econômico restrito ela representa o fim das relações sociais estabelecidas entre capital e trabalho, no âmbito político ela pode aparecer como isolamento e separação de um espaço mais amplo. Um espaço estudantil que é autogerido tem a opção ou de integrar-se ao movimento de base, reconhecendo-se como parte do movimento estudantil, ou pode isolar-se politicamente auto-legitimando-se não por uma luta coletiva ampla mas sim com base no coletivo de indivíduos que levam adiante as tarefas em interesse próprio. Quando num último grau de deturpação estes mesmos indivíduos se creem a elite do movimento estudantil por serem os únicos a colocarem em práticas os ideais verdadeiros da classe, temos uma perfeita reprodução do que é um partido político burocrático, isolado da classe e pregando a linha verdadeira no deserto. Na forma como “autogestão” é as vezes entendida por alguns setores da extrema-esquerda podemos encontrar contradições com a própria noção de mobilização de base, quando se traduz na recusa em participar de comunidades políticas com companheiros de diferentes posições políticas.
Essa forma de relação entre bases e comunidades políticas também pode expressar-se de forma contraditória em movimentos sociais e partidos. Sobre os partidos muito já foi dito e escrito; o lugar comum exponente da organização vertical é o centralismo democrático leninista, que transforma todos os militantes em uma grande base somente no momento restrito do sufrágio (como na democracia burguesa), funcionando na maior parte do tempo como um Estado-Maior onde os militantes de base são soldados rasos à disposição dos generais. Como se não fosse pouco, devemos perguntar-nos também a respeito do poder que o Comitê Central detém no momento de preparar e organizar os lapsos democratistas do partido, o que condiciona de forma sempre suspeita o exercício de uma atuação de base dentro da organização. No pior dos casos, essa comunidade política é um acordo ideológico cujas expressões eleitoralistas pressupõe que a participação de base está longe de ser um critério, assim como para torcer para o Corinthians não é necessário tomar parte na vida do clube. Por outro lado, o programa de um partido oferece uma forma de mediação interna, na auto-avaliação das práticas militantes, e também externa, pois um trabalhador pode estar de acordo com um programa e votar e atuar de acordo com ele em seus espaços de base, sem ter de filiar-se ou usar camisetas e carregar bandeiras.
Os movimentos sociais partem de uma lógica mais próxima a dos sindicatos, geralmente associado ao território (no circuito da produção, como os sem-terra ou os piqueteiros argentinos; ou no circuito da reprodução, como os sem-teto, as lutas contra contaminações, remoções, etc). Neste espaço de base não existe a possibilidade de uma construção apenas com aqueles que são ideologicamente próximos. O que determina a composição e participação é o território e um interesse econômicos conjunto, mas as formas de se alcançar os objetivos podem diferir tanto quanto a estrategia de um católico e a de um protestante para se chegar ao céu. E no entanto, quando os trabalhadores acreditam nesta construção plural é quando a classe se une verdadeiramente como comunidade política auto-organizada e expressa sua potência acima das diversas vertentes ideológicas e culturais que a compõe.
Mas surge a questão: o que é o movimento social? É a direção militante nos territórios? É a totalidade dos indivíduos? É a união coordenada dos espaços de base territoriais?
O que temos visto nos últimos anos, para a frustração dos que esperam pela velha novidade, é que a primeira resposta é quase sempre a mais correta. Não à toa que com o envelhecer do fenômeno “movimentista”, o que vemos ocorrer é a caída dos movimentos sociais para as velhas formas políticas conhecidas, seja a do sindicato, como sindicatos de trabalhadores precários especializados em negociações com o Estado que garantam os benefícios econômicos que o mercado não pode oferecer, seja na forma de frente de massas de partidos de esquerda, cada um com seu próprio movimento camponês, com seu próprio movimento de sem-teto, etc. (uso o termo “frente de massas” para aquilo que alguns partidos denominam “setoriais”). No Brasil fica bastante claro como tudo isso converge abertamente nos principais campos, onde cada partido tem (ou quer ter) sua própria central sindical, onde alguns partidos “fazem brotar” centrais estudantis próprias.
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A expressão estética dessas comunidades políticas oferece um tipo de espelho turvo das lógicas que regem as formas de organização da classe trabalhadora – nos referimos aqui à auto-representação das organizações presente principalmente nas mobilizações de rua. Bandeiras e faixas de partidos, centrais sindicais ou movimentos sociais costumam dominar a cena, o que significa que a maioria da “base” da manifestação ao assumir a função da auto-representação (fazer e carregar faixas e bandeiras) opta por representar sua comunidade abstrata, sua própria filiação de acordo ideológico. Se levamos o espírito deste ato ao extremo, isso quer dizer que cada um destes militantes está deixando de organizar seus espaços de base para tal mobilização em favor de sua comunidade ideológica. Em caso de que o espaço socialmente orgânico decida coletivamente não aderir a uma tal manifestação, claro que os militantes e ativistas se veem livres para mobilizar-se com os grupos com quais têm mais afinidade e confiança, mas também existem alternativas como mobilizar “chapas 2”, comissões ou agrupações de base. É comum, no entanto, que os partidos burocráticos todos baixem linha para que seus militantes privilegiem as colunas partidárias (ou suas centrais sindicais/movimentos), para que estas apareçam grande e reluzentes, dado que o militante partidário em meio aos seus companheiros de base gera muito pouco destaque e brilho para o aparelho partidário que quer liderar a marcha proletária.
Por sua vez, o espaço de base mobilizado representa um grau de unidade da classe que é em si a prática do classismo, independente de qualquer vertente ideológica. Os trabalhadores, estudantes, moradores, enfim conseguiram organizar-se por cima de suas diferenças sem isolar-se em pequenos grupos consensualizados ou ideológicos e tocam todos juntos uma ação, independente das filiações pessoais. Oras, o que faz o sindicato ou o movimento social? Roubam esse protagonismo do espaço de base (do local de trabalho X ou da ocupação Y) sob uma bandeira ou um nome único, dando uma versão institucionalizada da organização que escamoteia os conflitos internos e os antagonismos próprios de cada espaço de base, de cada processo de unidade de classe. No caso dos movimentos sociais é como se cada integrante dos espaços de base participassem ideologicamente numa construção totalizadora: “Movimento dos…”, presença marcada com suas bandeiras e bonés. Podemos ver um fenômeno parecido nas agrupações que se denominam “federação disso” ou “coordenadora de espaços daquilo”. Oras, militar uma federação ou uma coordenadora (e em último caso um movimento) é algo no mínimo estranho, especialmente naqueles casos em que nunca nem chegamos a conhecer qualquer uma das entidades federadas dado que estas são completamente secundarizadas em prol da militância federativa (ou da federação de federações). As bandeiras aqui também traduzem bem o caso: nunca se encontrará faixa ou bandeira nenhuma das entidades, que possivelmente a esta altura já deixaram de existir tornando oficial a expressão da dirigência como corpo e alma do movimento ou da federação.
Será então que aqueles indivíduos que não participam de partidos nem se misturam com movimentos sociais pelegos expressam uma boa alternativa estética? Em geral, nos encontramos com dois tipos: compartilhado tanto por setores da extrema-esquerda quanto por setores da extrema-direita e outros incomodados, existe aquele caldo cultural que pede (ou exige) a inexistência de bandeiras em mobilizações de rua; pelo outro lado está o Zé e a Maria, que estavam de passeio e curtiram as palavras de ordem. Mas Zé e Maria não são base de nada, provavelmente nunca estiveram numa assembleia nem no seu local de trabalho nem em seu território de moradia. É bem capaz que Zé more num bairro onde as assembleias não pululam e que Maria seja PJ e não tenha um espaço físico de trabalho. É certo, mas isso não os transforma em base social organizada pela negativa. Das dificuldades da organização dos trabalhadores precarizados não pode decorrer o abandono da construção, da mobilização e do ativismo de base, trocados pelo objetivo de se atrair as “multidões” e sua estética anônima para o espetáculo viático com a expectativa de que alguma coisa grande ocorra, sem o menor controle do que pode chegar a ocorrer. Mesmo porque isso significa que Zé e Maria não participam de nenhuma maneira no processo de luta e organização da classe, por maisque tomem as ruas cada 7 dias feito missa, se decidem ir como indivíduos e não organizados em algum tipo de coletivo auto-convocado, ainda que seja um partido. Apenas através de espaços de base ou de coletivos engajados é que se torna possível que uma luta ampla da classe seja levada adiante pela própria classe e na menor medida possível por forças dirigentes isoladas e verticalizadas pela própria base que se abstém das iniciativas e das decisões. São as faixas e bandeiras dos espaços de base que representam a unidade da classe na sua forma mais elemental, conservando a sua natureza conflitiva e de comunidade política surgida da própria organização social.
Existem muitas matizes, como as bandeiras de seções regionais de aparelhos partidários grandes, ou as faixas de espaços de base que se filiam e reivindicam uma central ou um movimento. Afinal, o que atravessa esse momento aparentemente tão banal de produzir faixas e bandeiras para uma mobilização de rua? Como é que em nossas organizações e auto-organizações relacionamos as letras e as cores com o espaço público?
(A primeira imagem que ilustra o artigo é do Clube da Esquina; a segunda é de uma assembleia do MPL-SP; a terceira é uma obra de Oscar Niemeyer em homenagem ao MST. A escolha delas é de responsabilidade do Passa Palavra)