Os olhos de nosso profeta e messias gotejaram, por entre nuvens escuras um raio de sol forçosamente escapou e iluminou as faces sujas de Teotônio. Era a confirmação divina que fez avançar nosso herói como um gigante colosso para tomar com seus anjos as armas do inimigo. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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Teotônio milagrosamente salva o assentamento

A fraqueza tinha encontrado, como sempre,
salvação na crença em milagres; acreditava ter
vencido o inimigo quando o tinha esconjurado
em fantasia…

(Velho Barbudo)

Ao meio-dia aquelas centenas de infelizes estavam nas ruas e amontoavam coisas com o intuito de erguer barricadas que dificultassem a investida dos policiais e a entrada dos tratores. As rosas vermelhas já haviam sido esmagadas pelos coturnos e o cravo chorava pela sua inutilidade. Ante olhares irados um casaquinho vermelho se destacava no corpo de uma menininha remelenta; os olhos jaziam inchados e as lágrimas secas no rostinho miravam o fogaréu que estendia sua bruma desfazendo-se no sombreado horripilante dos policiais armados até o pescoço.

Uma das mais tangíveis e justas transgressões das leis é a ação conjunta da população contra os desditos cegos e oficiais. A tática consiste em que no lugar de sair calmamente, como reza a cartilha, os moradores num primeiro momento se juntam para logo depois atacarem isoladamente e rapidamente sumir quando as forças da ordem se achegam. Depois retornam e atacam novamente toda vez que uma oportunidade se apresenta. Esse tipo de resistência não só não segue nenhuma regra, como se opõe frontalmente a uma tática pré-estabelecida tida como infalível. Tal tipo de ação foi tão usada como forma de resistência, que adquiriu um caráter popular que resplandeceu e espontaneamente atingiu todos os cantos do mundo; onde houver gente e houver injustiça haverá essa tática anti-tática. Muito embora a resistência por esse método não tenha tanta eficácia no rechaço dos policiais invasores, pelo menos desperta a grossa sensibilidade das forças ditas democráticas e da ilusão chamada de opinião pública.

protesto-certoA primavera enviava um dia quente aliado ao fogo que consumia todo o assentamento. O céu e o horizonte anuviados pela fumaça mantinham um vento que chiava um barulho misterioso e desolador. Ora o fogo parecia arrefecer, ora erguia-se de repente com um vento forte e tenebroso. A tensão causada pela brutalidade da cena cortava os corações das centenas de crianças martirizadas pela fome e sua aceitação como algo normal. Avançavam Teotônio e Alexandra; roupas fedendo a estorricado nas quais o suor e fumaça se misturavam. A exemplo da dor que sentiam, balançavam a cabeça negativamente e olhavam preocupados para a frente. De um lado, mais magro e mais preocupado, de outro, mais despenteada e mais bela; os rostos de nosso herói e heroína pareciam zangados.

Ao lado deles ia Martha. Também despenteada e com o rosto fechado, caminhava rapidamente. Martha era uma mulher baixa, cheia e forte como uma rocha, negra e de cabelos crespos, de olhos abertos e radiantes, e expressão acolhedora e satisfeita no sentimento e na compreensão. Embora fosse impossível dizer em que consistia a sua singularidade, num primeiro olhar ficava claro que, mesmo diante da tragédia do despejo, Martha espelhava tranquilidade que servia para confortar os mais desesperados. Ela não era uma mulher num despejo, mas uma mulher que formava com sua postura uma manjedoura para os desvalidos da terra, um leito em que os marginalizados podiam descansar a mente dos cansados martírios de uma existência aflita.

Um pouco à frente deles, mergulhado na ira, ia Armando Pereira que servia de guia a todos os demais e era a cabeceira do enfrentamento contra a polícia. Seu pescoço parecia estranhamente fino, por causa das preocupações que se abateram de repente sobre sua cabeça; algo que parecia ser o mais sólido, agora se desmanchava no ar. As roupas, as feições – tudo demonstrava o clima hostil e pouco humano imposto pela polícia, bem ali num dos lugares mais humanos já existentes na história humana. Enquanto o vento cortava aquelas faces vigorosas, mas abatidas, enquanto o raio de sol cruzava as frestas dos escudos, enquanto o fogo abrasador derretia as faces da boneca, o pranto de Teotônio testemunhava a dose do que se chama legalidade. Ao lado de Armando, ia um assentado carregando pelas mãos um garoto num pequeno uniforme escolar rasgado e de boné vermelho. O garoto segurava-se com olhos assustados que brilhavam e olhavam para todos os lados, balançava involuntariamente o corpo e, de sobrancelhas erguidas, observava com ar admirado a linha de frente da tropa policial.

Atrás, unidas pela rua empoeirada e esburacada do assentamento, iam todas as famílias; mães com crianças no colo, meninas com animais de estimação, avós segurando netos pelas mãos. Os homens formavam um paredão espontâneo e humano que se mexia a fim de demonstrar coragem e pouca simpatia pelos invasores. No meio do amontoado, os mais velhos praguejavam contra os céus pela pouca sorte de, mais uma vez, serem expulsos de suas terras conquistadas com tamanho suor. Refletindo, no entanto, como se deve, logo se veria que não se tratava de sorte, nada havia que indicasse que aquela terra era mesmo da M……… Celulose Ltda. Sempre foi assim, um papel arranjado, um interesse econômico aliado ao político e pronto!

As chinelas de Teotônio, ao desviarem de um sofá posicionado para impedir a aproximação da tropa, se embolaram e a marcha teve que parar porque nosso herói retumbou no chão.

– Misericórdia! – Exclamou Teotônio com mais raiva do que medo e, pondo-se de joelhos foi erguido por Alexandra e Martha.

Como se pode deduzir, Teotônio não estava de bom humor: por causa da invasão dos policiais, por causa do fogo e, acima de tudo, porque até aquele momento as notícias eram as piores possíveis.

– Não está certo! Jamais achei que o traidor fosse Emiliano, aquele bandido vendeu o assentamento a preço de banana. Temos que atacar com força, tudo bem… vá… atacar sem cobertura da imprensa é arriscado demais, só que se não fizermos nada seremos despejados no olho da rua! – Dizia Armando, enquanto olhava mais à frente achando que tinha visto Emiliano do outro lado das barricadas negociando com os policiais.

Ao divisar a linha limite que separava os policiais dos moradores, toda a turba parou.

– Alguém está vindo – disse Martha.

Tanto Teotônio e Alexandra quanto Armando olharam na direção apontada.

– Estão vindo dois… acho que o oficial de justiça e… ele mesmo, o traidor. Provavelmente vem querer nos convencer a sair! – Disse Alexandra que a partir do momento da tentativa conciliatória de Emiliano, passou a enxergá-lo, não sem razão, como inimigo.

fazendaOs dois homens se aproximavam com parcimônia. Todos os moradores, mães, pais, avós demonstravam-se ansiosos; animados por uma raiva sombria, soturna e indignada, observavam, com aquela falta de espírito comum às desgraças, a aproximação daquele que até ontem havia garantido que ninguém dali sairia. Emiliano trazia um olhar desconfiado, mas mesmo assim altivo, suas calças puídas e rosto corado numa barba espessa denotava uma resolução firme que não se importava com argumentos contrários. Tudo aquilo – capacetes, cassetetes, bombas e armas de grosso calibre – constituía uma sentença soberana da qual seria difícil qualquer apelação. Essa impressão causada por todos os acontecimentos da véspera, matava toda esperança sem que a esperança ao menos tivesse surgido, pois todos enfrentavam aborrecimentos acima de qualquer dignidade.

Em meio aos estafantes trabalhos que ali se realizaram, ergueu-se uma erva daninha cujo auto-título, a auto-nomeação, não evitou a traição. Claro que um homem sozinho não é capaz de dominar o curso dos acontecimentos, mas, com toda certeza, pode dele se aproveitar em benefício próprio e foi exatamente o que fez Emiliano. Isso que já se tornou corriqueiro em nossa grande História se repetia em escala micro no pequeno grande assentamento.

Emiliano se achegou junto ao povo e disse:

– Teremos que deixar o assentamento antes do meio-dia e meia!

– Vá à merda, seu traíra! – Redarguiu Alexandra.

– Por que temos que sair, Emiliano? – Indagou Armando.

– Pensa com a cabeça, Armando… – Fez Emiliano com grande expressividade, e olhando para Teotônio e Alexandra continuou – Eu falo pra você que esse é o melhor caminho! Afinal, temos um monte de terra por aí, é só fazermos um assentamento na próxima parada!

– Idiota, os documentos já estão quase saindo e você quer que o povo deixe essa terra agora?! – Redarguiu Martha indignada, e continuou – Depois de tanto trabalho e tanta coisa boa?

– Não devemos ir, eles estão pressionando porque sabem que teremos a terra pelo uso… – Armando foi abruptamente agarrado pelo braço por Emiliano, que exclamou: Olha isso… – Fez apontando para as crianças – Você quer que essas crianças resistam àqueles brutamontes?

–E você quer que essas mesmas crianças fiquem sem ter onde cair duras? – Redarguiu Armando.

– Meu amigo, contra a força não há argumentos! Sabe disso, estamos no meio do nada, sem imprensa, sem nenhuma divulgação… se eles entrarem não sobra nem esses loucos para contar a história. É melhor sair por bem!

– Sabe! – Disse Alexandra, que já não se segurava – Para quem está desse lado não há nada com que se importar! Ter um lugar digno para criar os filhos, ter direito à terra é a única coisa… coisa mínima… e isso, esse povo tem aqui, aliás, só isso, e você quer que eles abandonem a única coisa pelo qual vale a pena lutar? Você é um covarde e sua covardia vem de algo a mais, você não precisa estar aqui porque, se realmente precisasse e soubesse que isso é só o que se tem, não viria aqui com essa provocação!

– Tem algo mais, a consciência dele é covarde – disse Teotônio – É preferível viver do que morrer, está certo! Mas é preferível lutar pela vida do que aceitar ser dominado e morrer estando em vida. Aqui está a eternidade, a única que existe. Não é à toa que nada mais acontece debaixo do céu, tudo já está morto! O único lugar vivo é este e você quer nossa aniquilação?!

– Olha, eu não dou ideia pra louco! – Redarguiu Emiliano – E nem entendo o que vocês falam! O que estou dizendo é o melhor pra todos!

– O melhor pra quem? Hein, Emiliano? – Interferiu Martha – Diz logo o que te ofereceram, fica menos feio se você confessar!

– Tá me chamando de traidor? – Fez Emiliano, querendo avançar sobre Martha.

– Vai querer me bater? Sei que tipo é você, seu bosta! Machista do caralho! – Disse Martha furiosa.

– Deixa ele vir, Martha! – Disse por sua vez Alexandra – Eu furo ele com minha faca.

O triste espetáculo daquele assentamento já falecido pelo fogo, a visão de nossos heróis comprando um túmulo com falas inflamadas, Emiliano enfurecido por lhe terem arrancado a máscara, o crepitar do fogo que já baixava por ter consumido tudo em volta, essas infâmias e grandezas, essas dores, que surgem quando o inferno se mostra na face aguda de botas e cassetetes, fizeram com que um desânimo varresse a alma de grande parte das famílias. Teotônio pediu ajuda dos céus. De repente, olhou para sua esquerda; um passarinho foi pousar num caibro de um dos poucos barracos que se mantiveram de pé e soltou um gorjeio; seguiu-se então uma grande explosão e um bater de asas que envergaram as costas de Emiliano… Um estilhaço de bomba lhe atingiu.

– Toma, seu filho da puta! – Disse Martha juntamente com Alexandra que prontamente atirou pedras na polícia junto com alguns assentados.
– É isso que chamo de conciliação de classes! – Emendou Armando.

Foi nessa hora que saíram em desabalada carreira, juntamente com as famílias que levaram as crianças para a oca na Rua Antônio Conselheiro. Balançando a cabeça com movimentos aturdidos, Teotônio olhava ora para Martha, ora para Alexandra, ora para Armando, ora para Emiliano que teve que tomar posição contrária à que queria, ora para os policiais que avançavam pelas ruas.

– É preciso fazer eles recuarem! – Disse Armando com olhos coléricos, mas cintilantes.

– Onde estão as pedras? – Indagou Martha, e foi logo atendida por um jovem que trazia centenas numa sacola feita de improviso por uma camiseta.

– Eles vão querer tomar a rua Central, porque de lá dá pra fazer todo mundo recuar! – E Armando apontou para o descampado, além do assentamento – Eu vou ficar ali com o povo tentando fazer com que eles não cheguem lá!

1g56xo9xrrc9mavqhhsar1bwbNesse exato instante – instante no qual as conversas são as mais espontâneas possíveis – lá na saída do assentamento próximo ao local onde Rodrigo se suicidara, soou um tiro, algumas vozes em pânico das famílias ecoaram, soou outro tiro e ouviu-se gritos do mais franco desespero. Aquelas balas não eram de borrachas, eram grileiros que aproveitavam a iniciativa da polícia para também atacarem o assentamento. No primeiro momento, Armando duvidou do que tinham escutado, mas logo depois teve certeza. Estavam atirando para matar.

Proteger todos e recuar, se tornou o mais sensato a se fazer. Todos que pelo menos uma vez na vida visitaram regiões agropecuárias no interior desse país sabem o que aquele sinal significa: uma morte esperada, uma surra e prisão ou um desaparecimento corriqueiro. Logo que entraram de armas em punho, os grileiros puseram fogo no que tinha restado em pé. As crianças e cachorros corriam juntando as trouxas dada pelas mães, vez por outra uma era agredida e uma carabina se levantava ameaçadora. Sob um vento de tarde que juntava nuvens bravas no céu, o fogo se dispersava levado pela gasolina que queimava sem dúvida a última esperança de humanidade. Tudo queimava e se extinguia tal como um coração que deixa de pulsar.

O assentamento era para todos como um coração; a única Coisa que mantinha o ideal preso à prática, sem ele o resto seria silêncio. Uma alma desencarnada vagando que, ao saber o que é o essencial, não pode demonstrá-lo aos Outros; que atravessa muros, mas não pode tocar com os lábios a boca amada, que tem o sentimento da liberdade, mas não pode expressá-lo. Enfim, sem mais o assentamento, a eternidade da morte voltava a reinar com o seu reino da fria e feiosa necessidade. Os olhos de Alexandra e Teotônio novamente marejavam de tristeza:

– Envie seus anjos para salvar o acampamento! – Bradou Alexandra.

Com dezenas de capangas, com forças legais que os apoiavam, com aquele sinal tenebroso, o melhor a se fazer é abandonar tudo e debandar sertão adentro. Não para nosso herói. Para ele o que mais importava era o grande Outro. A relva já inexistia, morta e sem orvalho; chorava os olhos embotados da verdade, o grande herói Teotônio não podia ficar indiferente àquela situação; todos nós sim, ele não. Por quê? Porque era o filho de Deus e atrás de si havia todas as dores do mundo que explodiam numa calibre 12, cuspindo balas que não eram doces para crianças. Toda a verdade resplandecia nos gritos de meninos e meninas que ao se verem perdidos agachavam-se chorando. Com as roupas sujas e num tom cinzento de fumaça foi nosso herói velozmente pelas vielas do assentamento; de um lado, um fogaréu assoprava os ditos de satanás, do outro lado, seus companheiros tentavam avançar e agarrar-lhe pela blusa, na frente grileiros e policia faziam gritar a insanidade que mantém tudo de pé. Teotônio olhou para o céu e gritou:

– Pai! Pai! Ajuda-nos!

Os olhos de nosso profeta e messias gotejaram, por entre nuvens escuras um raio de sol forçosamente escapou e iluminou as faces sujas de Teotônio. Era a confirmação divina que fez avançar nosso herói como um gigante colosso para tomar com seus anjos as armas do inimigo. Corria em fúria para cima da polícia e dos grileiros, não tinha medo da morte, não tinha medo da dor. Todos pararam, tudo parou; o céu, o sol, os policiais, os assentados, Alexandra, todo o povo naquele instante olhava para Teotônio. Um orvalho despencou da alta nuvem, viajou centenas de quilômetros e caiu na testa de nosso herói e, nesse exato instante, se ouviu um estampido seco e cru. O corpo fraco de Teotônio rapidamente tombou no chão.

– Desgraçados! – Gritaram dezenas, quase em uníssono.

– Filhos da puta! – Gritou Alexandra, correndo em direção a seu amigo.

Um carro da imprensa chegou no momento em que, nos braços de Alexandra, o sangue de Teotônio escoava na forte chuva que, de repente, caiu. Todos no acampamento fizeram um círculo em torno de nosso herói e buscavam auxílio para levarem-no ao hospital; ante a tragédia escarrada nas faces de todos, os policiais tiveram que recuar deixando os grileiros escaparem. As crianças ainda choravam assustadas, mas sem dúvida alguma Teotônio junto à chuva tinha salvado o que restou do assentamento.

O sangue do messias novamente banhava o solo e um sorriso escapava doloroso de sua boca…

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