Por Carlos Moacir Vedovato Jr. [*]

“Também é preciso ter coragem para falar a verdade sobre nós mesmos, sobre os vencidos.”

(B. Brecht, “Cinco dificuldades no escrever a verdade”)

O teatro político em São Paulo e o tempo presente

Em 2024, com a possibilidade do fechamento de uma das oficinas culturais em São Paulo, organizada em torno de editais, Georgette Fadel, uma das mais importantes artistas da cena paulistana, postou em suas redes sociais o flagrante grotesco do processo histórico-artístico, escancarado no tempo de agora: “Onde estão os editais de chamamento para as oficinas de cultura do estado de São Paulo? É pra matar a gente? É um esmagamento explícito do teatro? Da arte? Da arte de base? É pra não ter mais como sobreviver, como criar? Esse deserto que nos aguarda… que coisa triste. Tudo poderia ser tão bom e é tão duro. Como tem sido duro… e agora isso??? Gente de espírito podre e pobre. Nós vamos pra cima”. O post indica um diagnóstico e uma posição política diante dele – desacertados, contudo, no tempo, que projeta como futuro um golpe pretérito. Não fossem retóricas as questões, uma resposta cínica ao projeto de morte, seria, menos que um “sim”, um “tanto faz”, a julgar pela relevância no mercado (afinal, é disso que estamos falando) de bens culturais a que chegaram as formas do assim chamado teatro de grupo na cidade, particularmente aquele interessado na alteração das coisas. E ele continua, entretanto, acontecendo.

Certidão de nascimento

Retomemos, então, os autos do processo que nos traz a este presente, cujas origens remontam ao Movimento Arte contra a Barbárie, organizado ao final da década de 1990 e que teve por principal resultado, em 2002, a promulgação da Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo.

Com a falência do mercado teatral racionalizado segundo a empresa burguesa, cujo modelo se deu pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), criado e falido em cerca de uma década, com tentativa de salvação pelo Estado, restava aos trabalhadores da cena, “filhos bastardos da falência do mercado”, se auto-organizarem. Disso resultou a Cooperativa Paulista de Teatro (1979) e os grupos, que surgem inicialmente “porque não existem empresários para contratar/explorar os ‘profissionais’ disponíveis” [1].

Após uma sequência de leis ligadas à cultura no início da Nova República [2], em 1991, é promulgada a Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet), com a qual passou a haver isenção fiscal às empresas que patrocinassem projetos culturais, podendo elas mesmas não apenas divulgar suas marcas através dos tais projetos como, mais importante, “influir decisivamente no que iria ou não ser produzido na esfera cultural”[3]. Contrapondo-se a esse modelo, ao final da década, em 1998, organizou-se, a partir da reunião de diversos coletivos teatrais [4], o mencionado Arte contra a Barbárie, que chegou a realizar atos contra a tal lei, em nome de outro modelo, que estava em elaboração. Trava-se, segundo Pedro Pires [5], de uma avaliação do movimento fundada em dois aspectos: a impossibilidade de o teatro viver de sua própria bilheteria (o que já estava dado na vida cultural brasileira havia muitos anos [6]) e o fato de que o acesso à Lei Rouanet era quase impossível para os grupos, de tal maneira que a possibilidade de haver outra forma de financiamento dos trabalhos congregou e politizou parte significativa dos trabalhadores da cena paulistana.

O resultado da politização coletiva foi a luta pela Lei de Fomento ao Teatro, luta, afinal, por políticas públicas destinadas a essa linguagem, em oposição à circulação das mercadorias artísticas regidas pelas grandes empresas – o lema do movimento era “arte não é mercadoria”. Dentre os aspectos políticos do projeto da lei, destacam-se: uma atividade teatral voltada para a cidade e não para o teatro (ampliação do direito à cultura); pesquisa continuada dos grupos, em oposição às atividades eventuais (o produto final que circulava no semi-mercado artístico); atividades voltadas ao interesse público; retirada da excessiva burocracia; participação direta da sociedade na administração pública a partir da seleção de projetos (3/7 da banca de avaliação dos projetos seria composta por jurados indicados pelos coletivos proponentes); e a reorganização das formas de trabalho e atuação dos grupos, não para manter o que havia, mas para conseguir avançar artística e politicamente [7].

No âmbito político, de forma geral, os grupos que passaram a integrar o Movimento Arte contra a Barbárie [8] na luta pela aprovação da lei resultam, segundo Sérgio de Carvalho, de um corte: não são descendentes diretos da tradição político-coletiva dos anos 1960 e 1970; mas uma oposição à década de 1980, em que predominou a importação das formas de encenação do famigerado teatro pós-dramático e suas variantes performativas, baseados “numa recusa a qualquer conteúdo social manifesto ou em formalizações baseadas em narrativas críticas”, em compasso com a internacionalização do capital financeiro [9].

Caso nossa breve recomposição faça justiça aos acontecimentos, estamos diante de uma situação que poderia ser resumida mais ou menos da seguinte forma: a não assimilação pelo mercado de um contingente de trabalhadores do teatro produz formas de organização política que, se opondo, de um lado, às formas teatrais mitificantes da última moda europeia, e, de outro, às formas de propaganda e administração das grandes empresas, arrancam à gestão do município, em 2002, uma forma avançada de manutenção da vida teatral, fundada nos direitos de cidadania.

Resultado da Lei (ou da politização da cena anterior a ela? [10]), a julgar pela avaliação realizada por Iná Camargo Costa cinco anos após sua promulgação [11], o teatro de grupo avançou em muitos aspectos. Em primeiro plano, interessados nos problemas políticos nacionais de então (em oposição à voga mítico-internacionalizante da década de 1980), os grupos estavam recontando, a contrapelo, a história brasileira nos palcos paulistanos [12]. Para isso, a partir de pesquisas exigentes, desenvolveram-se diversas técnicas artísticas decorrentes do assunto, possibilitadas pela continuidade dos processos. Isso não é pouca coisa, na medida em que representa um momento de experimentação e radicalização da cena em quantidade e qualidade não vistas antes na história teatral brasileira; sobretudo quando se pensa esse processo nos intercâmbios feitos entre os grupos, bem como na ampliação de público a que se chegava. Os grupos puderam também, além da realização de seus espetáculos, propor publicações, debates, formações (políticas e técnicas) – atividades que realizavam na prática parte do programa político de alguns coletivos teatrais, fundadas na “contrapartida social” prevista pela Lei [13]. Ocorre, entretanto, que, no âmbito da produção (que tem consequências formais, decerto), o passo nos levava, com certa consciência, ao universo concorrencial dos editais – mais especificamente, à gestão da cidadania [14]. Certamente, a expressão soa a esta altura como um jargão, por isso ela demanda uma explicação, ao menos na relação com nosso objeto.

De uma forma geral, a cultura enquanto gestão é a maneira como a produção artística se realiza sob o mundo do neoliberalismo [15]. Estamos interessados nas formas do teatro de grupo que intenta a intervenção na vida social. Para esta forma teatral, a questão é um problema na medida em que a gestão da cidadania (cujo véu pode adotar cores que vão do fascismo [16] ao progressismo [17]) a) se apresenta como resposta administrativa de um mundo em que a transformação radical desapareceu do horizonte; b) produz entre os trabalhadores formas concorrenciais ou, mais explicitamente, uma guerra de todos contra todos, sobretudo na medida em que os grupos se multiplicam e o financiamento via editais não aumenta proporcionalmente [18]; c) pauta, à sua maneira, o jogo concorrencial através de incorporações do que julga serem os assuntos mais importantes para a produção artística (pressupostos de alguns editais atuais, por exemplo, em relação a políticas de identidade [19]); e, d) não menos importante, no caso de trabalhadores sem valor para o mercado, torna-os reféns dessa maneira de produção, invertendo assim a relação entre meios e fins [20].

Estamos, então, na ordem das políticas públicas. Para o âmbito cultural como um todo isso significou, de forma muito resumida, a incorporação das formas radicais de contestação (no momento de sua ressurreição nos palcos paulistanos, diga-se de passagem) ao plano da gestão cidadã [21] – parte do que Taiguara Belo de Oliveira chamou de “engajamento cultural”, em que a luta política é uma forma de profissionalização precária, em meio ao universo da viração [22]. Além de participar ativamente da própria gestão da pobreza, os trabalhadores do teatro, eles mesmos, eram alvo desse processo.

Retomados os princípios políticos que regeram as formas do teatro empenhado de meados do século XIX (Antoine e companhia), passando pelas cenas revolucionárias russa e alemã, chegando às formas do teatro de Brecht; mas também a tradição brasileira que teve seus capítulos teatrais de radicalidade utópica no modernismo (Mário e Oswald) e, posteriormente, nos anos 1960 e 1970 (CPC, Arena etc.) [23], tudo parte do princípio de um “mundo transformável” (na conhecida expressão brechtiana) – não é outro, aliás, o horizonte dessas formas teatrais seja ele, a depender do caso, ilusão objetiva ou não. Ocorre, como se sabe, que a cena do teatro paulistano atual tem sua certidão de nascimento justamente no momento em que essas questões não estão mais na ordem do dia, ou, quando muito, para o tempo de agora, giram em falso no mundo gerencial do progressismo.

Ainda assim, houve, como dissemos, um tempo heroico do teatro de grupo paulistano, nos anos imediatamente posteriores à Lei de 2002. Floração tardia da politização anterior (aquela que teve por resultado a organização dos grupos)? Resposta política à ausência de horizonte? De uma forma ou de outra, para um mundo de achatamento das possibilidades de radicalização, estávamos diante de um novo cenário na vida cultural brasileira – sobretudo pela incongruência (quando comparada aos antecedentes históricos) entre forma teatral avançada e impossibilidades objetivas de alteração da vida social. Não há, do ponto de vista daqueles que acompanharam o percurso, registrado nos autos do processo que estamos acompanhando, quem não se recorde das encenações realizadas por grupos como a Cia. do Feijão, União e Olho Vivo, Parlapatões, Cia. do Latão, São Jorge de Variedades, Pia Fraus, Antropofágica, Grupo XIX, Brava etc.

Ensinamentos no presente

No Experimento Plataforma [24] (2024), do grupo Estudo de Cena, a plateia é convocada, de início, a observar um palco frontal, em que se dispõe, na parede ao fundo, um conjunto de retângulos prateados sugerindo telas de celulares e computadores; sobre o chão, um tabuleiro, que indicia o jogo que se iniciará. No espaço, em uma montagem de quadros, duas atrizes representam a vida de duas entregadoras de aplicativo. Ao longo de setenta minutos, valendo-se de diversas técnicas de distanciamento (mímica, separação entre atriz e personagem, interrupções etc.), as entregadoras, relativamente conscientes de sua posição no curso do mundo, bem como nutrindo uma solidariedade “popular”, expõem as desgraças do autoempreendedorismo (“Eu sou empresária de mim mesma!”), rememorando o desenvolvimento técnico da exploração desde o século XIX, bem como as lutas de resistência organizadas por mulheres. Os retângulos prateados vão dando lugar a imagens de lutas do passado e do presente; a todo momento pergunta-se: “O que você vê?”. Ao final, é o anjo da história benjaminiano que, fantasmagórico, vê o conjunto de escombros da história refletido na sede do Google na Avenida Brigadeiro Faria Lima: o anjo é o reflexo no edifício espelhado da própria entregadora.

Exposta a história dos trabalhadores como o acúmulo infinito das catástrofes, o resultado, paradoxalmente, é relativamente positivo para a luta, na medida em que a forma geral da peça sugere, ainda, a possibilidade de um ensinamento: a substância do trabalho é a mesma (no final da Idade Média e agora), à exceção das plataformas empresariais que pretendem explorar todo o tempo possível da classe trabalhadora, diante do que é possível ainda pensar (mais ou menos nos termos do passado) a organização da luta. A tonalidade geral das falas distanciadas (sobretudo quando as atrizes deixam de atuar) é grandiloquente; já as falas das trabalhadoras supõem uma imagem popular positivada e algo ingênua, embora consciente. A intenção formal do conjunto é de agitprop.

Salvo engano, nesta obra comparecem alguns dos aspectos mais significativos de uma parcela do teatro de grupo paulistano em nossos dias: a posição da consciência que pretende ensinar algo como que numa posição acima da plateia; a figuração, a um tempo, ingênua e consciente da vida dos pobres, herdeira indireta do nacional-popular; a ativação presente das políticas de identidades; e a ausência de enfrentamento dos problemas atuais das próprias formas teatrais.

Brecht e brechtismo

Qualquer um mais ou menos atento às discussões sobre teatro político que assiste a um conjunto de peças do teatro de grupo paulistano notará, de início, uma presença muito particular de Brecht. A montagem de alguns textos do dramaturgo, ao longo dos últimos anos, caminha nessa direção: Terror e miséria no terceiro milênio (Núcleo Bartolomeu de depoimentos), Santa Joana dos Matadouros ( Cia. do Latão); Terror e miséria no novo mundo (Antropofágica) e O círculo de giz caucasiano (Cia. do Latão), Terra de matadouros e Estudo sobre a Padaria (Brava companhia), para ficar apenas com alguns poucos exemplos. Entretanto, não é a esta presença mais explícita que nos referimos, mas a um modo de construir a cena, fundada em uma concepção específica de relação entre palco e plateia, cujo resultado exemplar (e talvez por isso com grande poder de revelação) encontra-se no Experimento Plataforma descrito acima: há uma lição a ser dada pelo palco, inscrita na própria forma dos espetáculos a partir de um conjunto de técnicas teatrais. Para quem está interessado nas relações entre teatro e política, não há nada mais justo. Ocorre, entretanto, que, se quisermos avaliar os resultados desse processo, será necessário colocar em xeque o sentido político dessas lições no interior da forma dessas peças, situadas em seu momento histórico, sem o que, corremos o risco da plena abstração e, portanto, da cegueira e do congraçamento.

Se a descrição de Experimento Plataforma estiver correta, estamos bastante distantes da tradição do teatro político cujas formulações mais importantes encontram-se em Brecht (o que não seria um problema em si, não houvesse a intenção militante que pretende associar-se ao dramaturgo). A indisposição à contradição, a tonalidade algo grandiloquente, a quase ausência do riso, a dramaturgia que insiste em não tocar nas diferenças do presente, o bom-mocismo que impregna a figuração dos pobres etc. levam a outros lugares, como tentaremos demonstrar com outros exemplos.

Em 2023, o Coletivo Comum apresentou seu espetáculo Universo. Assumindo a estrutura geral de uma conferência, a peça expunha o diálogo humorístico entre Deus e um cientista (autor da conferência). Deus se apresentava distante das motivações políticas da dominação da natureza pelo homem, bem como das leis da economia, de modo que ficava para o cientista, em sua exposição, a missão de explicar à plateia determinados fatores políticos do tempo presente bem como a importância da razão para elucidá-los. A plateia era posta na posição de alunos assistindo a uma conferência sobre a importância das descobertas da ciência [25]. Naquele mesmo ano, um grupo de atores de diversos grupos colocou em cena o espetáculo O Brasil é bom, em que a partir de um conjunto de quadros eram expostas uma a uma as aberrações do senso comum brasileiro (apenas da direita), atribuindo-lhes estupidez. Comicamente, Deus se indispunha com as lideranças neopentecostais e a classe média era tido por obscurantista. Mais uma vez, tratava-se da questão do esclarecimento; nesse caso, entretanto, não era a plateia que precisaria ser educada (supunha-se que já o fosse), mas os idiotas – que bem poderiam ser caracterizados como todos aqueles que não fossem como nós.

A posição do esclarecimento rebaixado que tem por alvo a comunhão na razão ou a espinafração dos que não são como nós não é novidade do progressismo dos últimos anos (sobretudo, mas não apenas, daqueles sob o governo Bolsonaro ao longo da pandemia). No âmbito teatral, para darmos continuidade ao brechtismo [26], trata-se de uma relação entre palco e plateia, cujo movimento em lugar de dar espaço à reflexão, ao debate, à contradição, à investigação política termina por fundamentar uma forma de espelhamento entre plateia e palco.

O esclarecimento da plateia não se limita, contudo, a esses assuntos, por assim dizer, tradicionais no teatro militante (a luta de classes em Experimento Plataforma, a importância da ciência em Universo e a luta contra o obscurantismo em O Brasil é bom). Em escala mais ampla, em formas teatrais que não se filiam à tradição materilista, podemos encontrar a vocação para ensinar em outras peças. Em Boi mansinho (2023, Clariô), a plateia conhecia a Beata Maria de Araújo (ofuscada pela presença imponente de Padre Cícero), cujo tratamento sério levava a plateia à comoção com a figura, em detrimento das formas cômico-populares com que o grupo sabe bem lidar e que davam o tom geral do espetáculo; em Samba da Paulicéia e sua gente (2023, Coisas Nossas), era apresentado ao público a história da resistência dos sambistas e outras pessoas ao seu redor na cidade de São Paulo – para usar um termo recorrente da gramática partideira, tratava-se da apoteose em cena dos assim chamados “baluartes do samba”, militantes, antes de tudo, da cultura e da ancestralidade. Reina em quase tudo a certeza de que é preciso mostrar o que não se conhece, de que é preciso, a qualquer custo, participar da vida política atual trazendo à cena aquilo que nunca esteve nela, com muita seriedade – uma espécie de manual de bons costumes, que tornaria a plateia mais cidadã.

Além disso, no âmbito da experimentação artística (não gratuita, é claro), parece ter havido, em alguns casos, algo como uma regressão aos padrões anteriores ao teatro moderno. Trata-se de apresentar os assuntos de maneira individualizante (como a requerer, no plano teatral, uma dignidade moral sem contradições às figuras expostas) a partir de uma tonalidade relativamente comotiva. Ou seja, a própria capacidade experimental, alcançada na primeira década dos anos 2000 pelo teatro de grupo paulistano interessado nas questões políticas, se perdeu no tempo e parece restar uma cartilha de procedimentos em que se amalgamam técnicas cristalizadas de distanciamento e exposição séria de individualidades. Mas, ao mesmo tempo, o novo padrão temático demanda seu próprio tratamento cênico: alterada a ambição política da cena anterior para as formas de agência individualizante, que produzem um simulacro histórico sobre os heróis culturais esquecidos, regride-se às formas bem comportadas da cena edificante.

Dignidade moral

O maior evento teatral de 2023 na cidade de São Paulo foi a encenação da Agropeça (2023), realização do Teatro de Vertigem, um grupo veterano da cidade. Encenada em uma unidade de prestígio do Sesc, a peça partia das relações entre a forma dos rodeios e o Sítio do Pica-pau amarelo. À primeira vista, uma reincidência da crítica ao racismo de Monteiro Lobato; numa segunda visada (ainda inicial), contudo, não deixava de ser um achado formal (de baixa voltagem?) para a pesquisa cênica. A ambientação da peça como uma arena de rodeio sugeria uma investigação dessa forma, à sua maneira teatral, e seus nexos com o palco político por excelência, sem deixar de acrescentar ao conjunto um antepassado no imaginário cultural do país, inscrita no espaço pelo recurso ao palco simultâneo (acima da arena) em que seriam encenadas as aberrações do sítio. Unidas uma ponta e outra, em que o vínculo era dado pela base material do latifúndio (de dona Benta e do agronegócio), um olhar generoso atribuiria à mera ambientação uma vontade de investigação de um problema presente, somado a ele a distância crítica e algo cínica da trilha sonora que, antes do início da peça, expunha a plateia aos clássicos da indústria cultural sertaneja.

Iniciado o entrecho, as personagens do sítio resolvem realizar um rodeio para angariar fundos para o sítio em decadência. A condução da peça se dava, então, a partir da condução narrativa do rodeio por Pedrinho (agora crescido, um homem branco e misógino, assediador da prima Narizinho), encarregado de apresentar euforicamente as permanências do latifúndio – em chave distanciada, com recursos à justaposição de quadros da revista (e do rodeio) bem como aos contrastes visuais promovidos pela iluminação e pela trilha sonora. Enquanto isso, a boneca Emília (uma atriz trans que estabelecia uma analogia com a condição de exceção da boneca [27]) se contorcia ao longo da arena, em uma espécie de comentário crítico e de não adesão ao que estava sendo encenado. Intercalada com a narrativa do rodeio, no palco simultâneo acima da arena, explicitavam-se as relações racistas que ordenavam o vínculo entre dona Benta e tia Anastácia – como fica sugerido pelo nome da personagem, um jogo de palavras da peça, que indiciava os caminhos a serem tomados pelo entrecho.

Resumindo para o que interessa ao nosso problema: a certa altura, tia Anastácia tomava o microfone de Pedrinho e passava a conduzir a peça. A trama se desenvolvia, na sequência, a partir de um conjunto de revanches históricas feitas pelas personagens subalternas (Anastácia e Emília) com final positivado e projeto de um outro Brasil – cantado pela ex-empregada, agora empoderada pelo microfone e pela roupa de cowgirl. Noves fora, o que se expunha era literalmente uma tomada de voz positivada, no que eram abandonados todas as formas de distância em função de uma aproximação entre plateia e palco curiosamente construída: espinafrados alguns espectadores (homens brancos de classe média) aproximados dos detentores do mando no sítio, outros, na plateia, gozavam congraçados os insultos recebidos. O empenho educativo e moralizante da peça produziria algo como um manual de bons comportamentos [28] e autopunição, além de, de quebra, interpretar de forma curiosa o problema armado pelo espetáculo: à questão material posta pelo latifúndio, responde-se com narrativas positivadoras dos novos agentes sociais. Aspirações de tipo similar podem ser encontradas em outras peças: em Coluna Prestes: encruzilhadas da marcha da esperança (Coletivo de Galochas) – a certa altura uma mulher trans interpela Luiz Carlos Prestes: “nossas corpas não cabem nessa revolução”; a experiência cênica dos Escritos Negros Modernistas (Brava) traz ao palco o reconhecimento dos escritores negros ofuscados pelo cânone branco, construído pela tradição do Modernismo paulista. Algo similar pode ser dito sobre Boi mansinho (Clariô) e Samba da Pauliceia e sua gente (Coisas Nossas), que mencionamos acima.

Desidentificação e identidade

Em Cena ouro – epide®mia (2023), da Cia. Mungunzá, está em questão a relação entre o teatro (o próprio edifício do Teatro de Contêiner) e o espaço em que está inserido (próximo ao fluxo da Cracolândia, no bairro da Luz). A montagem de quadros, em que se sucedem a recomposição de discussões sobre a Cracolândia, a narrativa da história de personagens da região, a relação entre o palco e o bairro, a militância afirmativa, opta pelo choque como procedimento central da peça – para o que se recorre à iluminação e sonoridade cortantes, que não permitem à plateia qualquer momento de tranquilidade.

A certa altura do espetáculo, as cortinas em volta do teatro se levantam e o espaço cênico se deixava contaminar pela rua (“O cu e umbigo do mundo”, segundo a dramaturgia). O palco passa, então, a ser parte da cidade, e, ao mesmo tempo, a cidade invade o edifício teatral; a não ser, é claro, pelo vidro e pela grade por que ambos estavam separados [29]. A própria separação seria um elemento formal crítico da encenação, não fosse pela dimensão afirmativa da peça que, salvo engano, buscava antes a unidade entre as duas partes que marcar a separação evidente entre elas. O resultado, afinal, era que o próprio choque como procedimento se transfigurava em curiosa concordância.

Isso ocorria, na medida em que o ponto de vista geral da peça fundava-se, ao que parece, na dignidade cidadã que estamos comentando, para a qual concorria também um outro procedimento recorrente na cena atual: a distância, formalizada no espetáculo pelo “saída da personagem”, entre personagens e atores que ficava marcada pela narrativa individual da vida empírica dos que estavam em cena e que, como o próprio assunto da peça indicava, participavam ativamente da vida do bairro. Rejeitados pela condição aberrante do que estava ao redor do edifício, ganhavam dignidade moral afirmativa no palco, ao narrarem suas próprias biografias. Note-se: a ênfase na separação entre ator e personagem refuncionalizava seu efeito crítico pretérito para buscar um sentido afirmativo.

Em se tratando de refuncionalização dos clássicos, um outro grupo veterano dos anos heróicos, trazia aos palcos, poucos anos antes da pandemia, o espetáculo Terror e miséria no terceiro milênio: improvisando utopias (Núcleo Bartolomeu de depoimentos). Em um dos quadros do texto de Brecht, ao expor a vida de uma mulher judia tentando fugir do Terceiro Reich, uma das atrizes, desidentificando-se, dizia ao grupo teatral com que estava ensaiando a peça, dando risadas: “Eu entendo a dor da mulher judia, mas eu não vou fazer um texto em que não caiba a reflexão de que eu, essa preta maravilhosa, nessa sociedade, nem sequer sou considerada a mulher ideal. Num dá” [30]. Outra vez: o procedimento servia à afirmação da própria atriz – a desidentificação servia, agora, à afirmação de uma identidade, neste caso contra uma outra [31]. A peça Voo da guará vermelha (2023, Cia. do Tijolo), procurando conceber um espaço e um tempo em que, a despeito do mundo miserável do trabalho, as pessoas (plateia) eram convidadas a sonhar, se valia de procedimento similar, na medida em que, a certa altura, atores e atrizes punham-se a narrar suas próprias biografias, valorizando-lhes as capacidades artísticas e o esforço de vida.

Tentando formular um problema

Seria o caso de considerar, a julgar pela boa qualidade de encenadores, atores, iluminadores, dramaturgos e cenógrafos a que chegamos, que há algo como uma vitória do teatro político de grupo, na medida em que, passados os anos de precarização da vida material e todas as peripécias da história brasileira ao longo dos últimos vinte anos, ainda assim continuamos a realizar (muitas) peças políticas. A maior parte dos espetáculos que descrevemos é resultado do trabalho constante ao longo dos anos de alguns coletivos teatrais, que se destacam pela qualidade técnica e que dão lastro a uma tradição artística específica, com problemas, pesquisas e tentativas próprias de resolução formal do que buscaram enfrentar. Ocorre, no entanto, que, vistas em conjunto, percebidos os procedimentos e a significação buscada no palco, elas parecem convergir em alguns pontos, do que resulta uma espécie de positivação da cena: técnicas que serviam antes à exposição contraditória da matéria se revertem em seu contrário, buscando maneiras afirmativas, que devem ser aprendidas pelo público (para se organizar politicamente, para aprender a se comportar corretamente, tudo em plena concordância cidadã passiva).

A posição inicial do imediato pós-2002, em que os diversos grupos, mais ou menos tentando investigar questões similares (sempre levando em conta os depoimentos de quem assistiu ao conjunto de peças) relacionadas à matéria brasileira e o fim de uma ideia de sociedade (desmanche das ilusões nacionais, que, se estava em outras formas artísticas ganhava, pela primeira vez, sentido coletivo com o teatro de grupo) produziu uma diversidade de formas de experimentação teatral fundada no enfrentamento dos problemas políticos. O arco histórico que permitiu o desenvolvimento desses grupos, entretanto, chegou a um momento específico em que aquela diversidade se reduziu a algumas poucas tentativas em que tudo parece convergir para um girar em falso – a despeito do tom celebrativo de quase tudo e da percepção, externa à cena, de beco sem saída flagrada por Georgette Fadel no relato que abre este estudo.

In loco, assistimos a algo que se pode chamar genericamente de despolitização dos coletivos – ou, ao menos, uma outra forma política que difere da luta coletiva [32]. Não porque não tenham intenções políticas, mas na justa medida em que a era dos debates e da coletivização posta pela própria relação entre os grupos se encerrou. Dito dessa maneira, estaríamos realizando um juízo moral, como que cobrando dos grupos o reencontro. Não se trata disso. Acontece que esse encontro se tornou, ele próprio, uma impossibilidade. A luta pelos editais, que por sua vez não acompanharam, como se sabe, a quantidade de novos grupos que surgiram ao longo desse tempo, impede materialmente qualquer forma mais ampla e coletiva de encontro político entre os grupos. O Movimento Arte contra a Barbárie tinha como um de seus objetivos justamente a saída das formas anteriores de “sobrevivência econômica” dos artistas, em que segundo a boa descrição de Luiz Carlos Moreira, os artistas eram obrigados a uma diversidade de atuação (profissional) que

implica fazer uma produção no Teatro Abril, por exemplo, reproduzindo um pacote que vem da Broadway e, amanhã, uma peça que prega a revolução comunista, puramente por necessidade de sobrevivência. Agora, se amanhã ele está na peça pregando a revolução comunista, nada impede que no dia seguinte ele esteja na televisão fazendo um comercial para o banco Itaú. Numa ponta mais radical, nada impede que amanhã este mesmo profissional esteja envolvido com uma campanha política, na qual tanto faz se é para o Lula ou para o Maluf, dá no mesmo, pois ele é apenas um profisisonal no mercado. [33]

Com a entrada de mais profissionais no mercado e o esgarçamento das formas de políticas públicas no município, não estamos assistindo agora a um jogo de viração similar? O mercado afirmativo da cidadania que definia nos termos do projeto do Fomento um teatro para a cidade passou, em parte (a partir de outros editais), a pautar tematicamente, como já mencionamos, a própria estrutura do jogo concorrencial. Dessa maneira, a volta no parafuso vista em cena passou a ditar, salvo engano, de maneira convergente o assunto e, por consequência, a forma dos novíssimos espetáculos teatrais. Não se trata apenas da menção ou não às políticas afirmativas nos editais, mas de toda uma forma de circulação dos espetáculos que está sujeita, agora, a elas. Basta pensar, por exemplo, no que está sendo pautado pela programação do Sesc (outro espaço importante do jogo concorrencial a que quase todos almejam chegar, na medida em que simplesmente remunera melhor os artistas) ou por um festival, em quase tudo distante dos grupos, como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT), que não deixa também de ditar parâmetros internacionais de mercado para a cidade [34]. Na outra ponta, o próprio público consumidor, ao seu modo “mais crítico”, em busca de formas culturais em que sejam positivados os marginalizados termina também por determinar a produção artística de pessoas que lutam na guerra por sobrevivência – além, é claro, do medo generalizado do cancelamento [35].

O ingresso na guerra pelos editais, diversas vezes mencionada ao longo deste texto, tornou-se, ele próprio, uma outra forma de viração para os novos agentes da cena. Invertendo os termos da intenção inicial dos primeiros grupos, em que o Fomento (e outros editais) serviria ao avanço político e artístico dos grupos, bem como à pesquisa continuada e relativa profissionalização da vida teatral, agora a tematização das novas formas políticas tornou-se um meio para assegurar financiamento e, menos que a profissionalização, a sobrevivência dos trabalhadores em seus termos básicos [36]. O conjunto de atividades realizado hoje por um trabalhador médio do teatro, que vai do campo teatral (aulas de teatro, participação em outros grupos, realização de propagandas e, quando muito, de um filme) a outras formas precarizadas (garçons, atendentes de bar, motoristas de aplicativo etc.), decerto o impede de formalizar coletivamente os problemas de sua categoria – menos ainda trazê-los à cena como pesquisa [37]. Ao mesmo tempo, há, de forma generalizada nos espetáculos, como tentamos demonstrar, o gesto pedagógico que insiste em indicar à plateia os rumos da cidadania e dos bons comportamentos – pelos quais sofrem na vida prática os próprios artistas do teatro empenhado.

O arco que tentamos descrever parece indicar a realização da armadilha posta já nos momentos de promulgação da lei em 2002 – com o acréscimo de uma nova orientação da circulação que passa pela dominação quase completa do tratamento identitário – não apenas das minorias reconhecidas como tais, mas de todas as outras possíveis identidades [38]. Quanto à questão das identidades, descrevendo o processo através do qual tudo é elevado ao “cultural” no capitalismo atual, Otília Arantes ressalta que “eliminada a antiga mediação da forma que garantia objetividade e recuo crítico, um ego análogo ao do público pop assimila a ‘obra’ como uma atividade de autotransformação, como quem adota, ou melhor adquire, um novo vocabulário com o qual se descrever em sua identidade expandida” [39]. Se nossa leitura estiver correta, acompanhamos algo similar em algumas obras teatrais paulistanas; entretanto, o passo adiante talvez resida na guerra posta em cena entre as próprias identidades que, competindo entre si (lembremos do caso enfático da mulher judia na refuncionalização da peça de Brecht), revelam um momento da própria possibilidade (ou impossibilidade?) de produção e circulação dos espetáculos.

Resta, no palco, a reposição das mesmas técnicas de encenação, dos mesmos assuntos – tudo reorientado pela completa gestão cidadã e afirmativa da cena; com suas diversas vertentes, certamente. Parece que estamos diante de algo como uma acumulação constante de espetáculos que, girando em falso na cultura à esquerda dos nossos tempos, não consegue produzir, por sua vez, acúmulo político – ou “apenas” resulta no seu contrário. Mas poderia ser diferente?

Notas

[*] A versão final deste breve estudo é resultado do debate de seus argumentos com leitores generosos (somado a isso boas sugestões de leituras e lembranças de outras peças que, inicialmente, não faziam parte do argumento), sem os quais ela não teria algum acerto. Citamos nominalmente: Mariana Queiroz Guimarães, João Victor Silva, Taiguara Belo de Oliveira, Anderson Gonçalves da Silva, João Augusto de Oliveira Pace, Ivone Daré Rabello, Edu Teruki Otsuka, Leonardo Cordeiro, Leonardo Pereira La Selva, Olívia Maciel, Vitor Morais, Nina Ayumi, Matheus Araújo Tomáz, Guilherme Marchesan, Fátima Gazzaoui, Pedro Pires, Gustavo Assano, Nathália Colli, Cristina Daniels e João Marcos Duarte. Fica um agradecimento especial ao grupo de estudos Formas Culturais e Sociais Contemporâneas, de que deriva parte significativa da discussão aqui pretendida. A eles, entretanto, não poderão ser atribuídos os prováveis erros do texto – de responsabilidade exclusiva do autor.

[1] MOREIRA, Luiz Carlos. “There is no alternativa” IN: DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa. Teatro e vida pública. São Paulo: Hucitec, Cooperativa Paulista de Teatro, 2012, p. 21.

[2] Para o acompanhamento detalhado do processo, ver: COSTA, Iná Camargo. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.

[3] BETTI, Maria Silvia. “A Lei do Fomento: raízes e desafios” IN: DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa. Teatro e vida pública. São Paulo: Hucitec, Cooperativa Paulista de Teatro, 2012, p. 118.

[4] Dentre os grupos que participaram do primeiro momento do movimento, estavam: Folias d’arte, Pia Fraus, Monte Azul, Tapa, Cia. do Latão, Parlapatões e os veteranos do União e Olho Vivo.

[5] Em entrevista na sede do Grupo Formas Culturais e Sociais Contemporâneas – Instituto Caviar Bar e Lanches – concedida ao autor deste texto e a Matheus Araújo Tomaz em 02 de abril de 2024.

[6] No caso brasileiro, o exemplo já havia sido dado, décadas antes, pelo próprio Teatro Brasileiro de Comédia, que mencionamos anteriormente. Não se trata, entretanto, apenas de uma questão brasileira: de uma forma geral, o teatro enquanto produção que envolve diversos profissionais, bem como a mobilização de aparato técnico e espaço em que sejam encenadas as peças, não se sustenta de forma viável pela bilheteria, sobretudo quando pensada de forma “acessível” (isso pode ser estendido mesmo às grandes produções comumente chamadas de “teatrão”). Ou seja: pela bilheteria, ele não apenas não se paga como também não permite a garantia mínima de sobrevivência dos trabalhadores da cena. Note-se: são trabalhadores que não conseguem vender sua força de trabalho em um determinado mercado.

[7] COSTA, Iná Camargo. Idem, p. 34.

[8] Trata-se, aqui, dos grupos que integraram o movimento já ampliado, e não de seus organizadores – dentre os quais se destacavam figuras vinculadas direta ou indiretamente àquela tradição: Reinaldo Maia, César Vieira Luiz Carlos Moreira, por exemplo.

[9] CARVALHO, Sérgio de. “A politização do movimento teatral em São Paulo” IN: Introdução ao teatro dialético: experiências da Companhia do Latão. São Paulo: Expressão Popular, Companhia do Latão, 2009, p. 58.

[10] Esta é uma pergunta feita por Luiz Carlos Moreira (Engenho Teatral) a Celso Frateschi (Ágora), em uma conversa promovida pela Brava Companhia de Teatro que contava ainda com a participação de César Vieira e Graciela Rodriguez (ambos do União e Olho Vivo), disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=btbP_lKsaXQ:> .

[11] Idem.

[12] Na avaliação de Paulo Arantes, era como se a tradição crítica brasileira estivesse migrando naquele momento do espaço universitário à cena teatral dos grupos. “Em cena” IN: O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

[13] Para uma visão panorâmica do processo a que comparecem diversos pontos de vista sobre a Lei do Fomento, assistir à série Ensaio aberto, Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=-CUpBeyjkAQ> . Gravada cerca de dez anos após a aprovação da lei, é possível notar, de maneira generalizada, as percepções dos limites materiais do fomento, vinda dos próprios trabalhadores do teatro.

[14] Nos anos seguintes, este modelo de editais se expandiria à gestão estadual e nacional.

[15] Para uma compreensão do processo que levou a essas circunstâncias, em que se amalgamam agenda do Banco Mundial e das Nações Unidas, focalizando o desenvolvimento de pessoas, ver o importante trabalho: MARANHÃO, Tatiana de Amorim. Governança mundial e pobreza, do Consenso de Washington ao consenso de oportunidades. 2009. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

[16] Veja-se sobre o assunto ARANTES, Paulo Eduardo. “Sofística da assimilação” e “Esquerda e direita no espelho das ONGs” IN: Zero à esquerda. São Paulo: Record, 2004.

[17] Iná Camargo Costa, no livro mencionado sugere: “A experiência da administração Erundina (1989 – 1992) – cuja secretária de cultura, Marilena Chauí, pautara as ações de política cultural pela noção de cultura como direito dos cidadãos – há de ter inspirado os artistas que naquele momento deram início às discussões sobre o rumo da cultura em São Paulo” (Idem, p. 20).

[18] O último edital do fomento municipal (o primeiro de 2024) prevê um valor total de R$ 9.500.000,00, que pode ser distribuído entre no máximo vinte grupos, de um total de cerca de 500 coletivos. Para se ter uma ideia, o primeiro edital de fomento previa cerca de R$ 6.000.000,00 Entre uma coisa e outra, há uma diferença de 22 anos.

[19] Essa questão não está explicitada nos editais municipais do Fomento, mas em outros posteriores, como os da Funarte e do ProAC.

[20] Este último aspecto é sugerido por Sérgio de Carvalho no ensaio mencionado, referindo-se a possibilidade de isso ter ocorrido com alguns grupos. Levando isso adiante, estamos nos referindo à situação em que os editais que eram meios para a realização teatral terem se tornado, eles próprios, a finalidade (por necessidade material) de realização teatral.

[21] Um exemplo iluminador desse processo é o caso da França. Nos últimos anos, como um “teatro contra a barbárie” (!!!), diversos grupos que realizavam formas de teatro político passam a realizar suas peças em eventos organizados pelo Estado francês como forma direta de gerenciamento da cidadania: os espetáculos teatrais têm por objetivo (declarado pelo Estado, diga-se), basicamente, melhorar a convivência em meio à diversidade. Uma anedota significativa do processo: em meio à gestão cultural generalizada, um dos organizadores de um festival de teatro de contestação é cotado para assumir nada mais nada menos que o Ministério da Cultura no país. Como se vê, o que em São Paulo foi resultado de luta dos trabalhadores, no caso francês é política de Estado. A avaliação está em NEVEUX, Olivier. Contre le théâtre politique. Paris: La Fabrique, 2019. Devo a Anderson Gonçalves da Silva a sugestão do livro de Neveux.

[22] OLIVEIRA, Taiguara Belo de. O novo engajamento cultural: militância e trabalho com políticas públicas em São Paulo. 2018. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2018.

[23] Esses três momentos de politização do teatro brasileiro foram comentados por Sérgio de Carvalho em “Atitude modernista no teatro brasileiro” IN: TENDLAU, Maria; AZEVEDO, José Fernando; ARAÚJO, Antônio (orgs.). Próximo ato: teatro de grupo. São Paulo: Itaú Cultural, 2011.

[24] Como se verá, neste estudo não serão abordadas as trajetórias específicas de cada grupo, mas, antes, elementos reincidentes na cena (no passado e no presente) para, a partir disso, formular problemas mais gerais acerca das encenações contemporâneas. Nesse sentido, não se trata de uma avaliação dos caminhos escolhidos por cada um dos grupos especificamente, mas de tentar demonstrar a qual situação chegamos, a despeito das intenções mais ou menos radicalizadas de cada um dos coletivos.

[25] Note-se o diálogo com Brecht: como os deuses de A boa alma de Setsuan, o deus cristão da peça não interfere nas leis da economia; como em Vida de Galileu, está em jogo aqui o lugar da razão etc, com a diferença significativa que essa peça coloca justamente em questão o lugar histórico da razão e não faz a ela uma apologia sem contradições.

[26] Termo empregado por Bernard Dort para caracterizar o uso rebaixado das proposições do teatro épico na França.

[27] Em alguns lugares recorre-se à palavra “boneca” para designar travestis e mulheres trans.

[28] Como em outras peças mencionadas anteriormente.

[29] Como a questão já foi motivo de polêmica, é importante enfatizar: aqui não se pretende uma crítica às grades que separam o edifício teatral do entorno. Trata-se exclusivamente de refletir sobre o procedimento teatral escolhido para a peça e o significado produzido a partir disso para Cena ouro.

[30] NÚCLEO BARTOLOMEU DE DEPOIMENTOS. “Terror e miséria no terceiro milênio: improvisando utopias” IN: A palavra como território: antologia dramatúrgica do teatro hip-hop. São Paulo: Perspectiva, 2022, p. 523.

[31] A despeito das intenções formais do conjunto, não apresenta ela mesma uma forma concorrencial entre as identidades, na medida em que para a afirmação da atriz (e das posições políticas adotadas pelo espetáculo) é preciso negar a “identidade” da outra? Ou ainda: não se trata de uma imagem perfeita da guerra de todos contra todos em que é preciso se afirmar como o elo mais fraco para justamente vencer a partida – do que depende a eliminação do outro?

[32] De fato, uma outra forma de fazer política. A peça Leste, encenada na Casa do Povo, em 2021, apresentava (outra vez a despeito de suas intenções formais) dois momentos diversos da orientação política: havia em um plano pretérito a ideia de resistência anti-fascista e, no presente, essa mesma resistência passava a forma de identidade judaica, mas também a outras com as quais a judaica se relacionava analogamente. Nesses termos, parte do que se convencionou chamar de identitarismo é, menos que um conteúdo específico, uma maneira de dar tratamento afirmativo a questões que, no passado, apareciam como negativas – como nas cenas de parte das peças que descrevemos, uma positivação das formas de fazer política. Devo a Nina Ayumi a sugestão sobre o espetáculo Leste. Em caminho similar, uma expressão mais ou menos generalizada na produção cultural contemporânea como “reexistência” (encampada no meio teatral pelo Teatro Oficina) guarda em sua própria composição seu aspecto afirmativo: opor-se é afirmar-se.

[33] MOREIRA, Luiz Carlos. “Entrevista” IN: COSTA, Iná Camargo. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento ao teatro. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008, p. 66.

[34] Um retorno aos padrões pós-dramáticos dos anos 1980 reorientados pela disputa entre identidades?

[35] Significativo desse processo é a peça Branco (2017), do Tablado de Arruar, alvo de cancelamento pelo tratamento dado à discussão sobre a branquitude.

[36] Não são poucos os relatos sobre grupos teatrais que surgiram ao longo desse processo visando o acesso aos editais como forma de complementar a renda na vida artística.

[37] Duas exceções (e haveria outras) que caminham em direção contrária a essa: em Show do Pimpão (Brava companhia) e O perrengue da Lona Preta (Trupe da Lona Preta), é justamente a possibilidade no tempo presente de realização de espetáculos teatrais que orienta a configuração geral da forma. Embora sejam peças mais antigas, o fato de os grupos continuarem as encenando é significativo de um diagnóstico político importante.

[38] O posicionamento entre iguais à esquerda que norteia e aproximação entre palco e plateia não é ele próprio uma forma de identidade, na medida em que se opõe a outras de evangélicos, conservadores, ignorantes, ressentidos etc? Não à toa, aliás, na tradição teatral esse encontro é chamado justamente de identificação.

[39] “ARANTES, Otília Beatriz Fiori. “Cultura da cidade: animação sem frase” IN: Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da Modernização Arquitetônica. São Paulo: Edusp, 1998, p. 155.

Ilustram este artigo cenas do filme “A ópera dos três vinténs” (Die 3 Groschen-Opera: Alemanha, 1931), de G. W. Pabst, com Rudolf Forster, Lotte Lenya e Carola Neher.