O inimigo da polícia reformada continuará sendo todo e qualquer segmento que coloque em questão o caráter sagrado da propriedade privada, o funcionamento das redes de mercado e a consequente acumulação de lucros e o funcionamento da democracia representativa burguesa. Por Arthur Moura [*]
“Os homens do pelotão não pensam duas vezes antes de agir.
Os homens do pelotão não pensam” André Queiroz
Em “Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos” Plínio Marcos leva o leitor para dentro de uma cela lotada com “vinte e cinco homens empilhados, espremidos, esmagados de corpo e alma, num cubículo onde mal caberiam oito.” E conclui: “eram vinte e cinco homens colocados no imundo cubículo para morrer.” E de fato é isso que acontece ao final do conto. Os homens morrem. Ou melhor, são assassinados pelo Estado, pelas leis dos cidadãos contribuintes, que querem todos esses homens mal trapilhos em seus devidos lugares. Num lugar longe das vistas dos cidadãos de bem pagadores de impostos, daqueles que, segundo Plínio, são os verdadeiros responsáveis pela barbárie. Esses homens são colocados lá para morrer aos poucos para que pareça uma morte natural, impessoal. A morte impessoal, vale lembrar, inaugura-se com as grandes guerras de forma a eliminar o inimigo por completo sem que indivíduos possam ser diretamente responsabilizados. São vinte e cinco homens, portanto, “que ocuparam espaços que não lhes pertenciam, que comeram o pão que não lhes pertencia. E nada lhes pertencia diante das leis dos cidadãos contribuintes” e foram colocados lá “para morrer sem feder. Para morrer sem estremecer as relações internacionais dos cidadãos contribuintes. Para morrer simplesmente. Para morrer sem ser a carniça largada nos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus pelos sicários dos esquadrões da morte dos cidadãos contribuintes.”
Nenhum exagero nas palavras de Plínio. Aliás, nada de novo. No entanto, os efeitos e relações sociais que geram este tipo de desumanização não fazem parte de um descaso do Estado. Essa leitura nos faz crer que cobrando as devidas funções aos aparelhos de Estado alcançaremos algum tipo de justiça social. Nesse contexto, a repressão policial tem por função garantir o funcionamento das relações capitalistas defendendo o mercado, a propriedade privada e consequentemente a classe dominante através da violência direta contra os trabalhadores, muitos desses organizados em movimentos que optam por romper com tais relações. É isso que debateremos aqui.
O estado atual de coisas, ou seja, toda complexidade da nova divisão do trabalho e suas consequências no modo de produção, metamorfoses e acoplamentos da atual configuração de controle sobre populações e, claro, a guerra incessante entre classes antagônicas nos encurrala para o limite máximo de manifestações de potência individual, se assim aceitarmos. Toda a maquinaria de poder curva o subalterno ditando para este a sua condição social ao passo que constrói para si uma ideia de negociação entre as classes que se antagonizam. Quando existem, as negociações produzem no máximo reformas da própria lógica burguesa garantindo o ordenamento das mercadorias sobre os humanos. As teorias (e neste caso podemos elencar os chamados pós-modernos como exemplo, mas não somente) deixam de lado conceitos-chave como luta de classe com o intuito de investigar à exaustão os sujeitos que muitas vezes, diante dessas análises, estão descolados de relações estruturais e históricas que formam a sua própria condição subjetiva na sociedade capitalista. Os indivíduos são como demonstrações de liberdade capazes quando muito de uma brevidade minuciosa de movimentos. As revoluções cabem às memórias resgatadas com ar romântico, despossuído de realização no presente.
Ao tratar o tema da violência estrutural de Estado enviesado por um olhar que vê saídas dentro da própria manutenção do Estado e suas formas de poder e domínio deixamos de pensar o caráter da violência produzido pelas forças repressivas e a função social dos agentes de segurança, corporações e demais setores que garantem a contenção da pobreza e fundamentalmente impede através do aparato repressivo (mas não só pois a economia é fator fundamental nas relações de domínio) o avanço de formas organizacionais que coloque em questão a miséria estrutural causada pelo capitalismo e consequentemente pelo Estado em favor de uma disputa política sobre as forças armadas por parte de setores institucionais. Deixamos de pensar a violência estrutural de Estado não só como elemento de repressão direta contra a vida através das armas, mas, sobretudo, através da economia e da organização social como tal aperfeiçoando as formas de matar populações subalternas e segmentos divergentes. E por fim deixamos também de observar que a violência estrutural é atemporal e existe como condição sine qua non aos Estados-nação.
Em outras palavras, as supostas saídas levadas a cabo pela esquerda parlamentar (que na prática, como veremos, ao longo do tempo passou a diferenciar-se muito pouco da convencional direita conservadora e demais setores institucionais) no jogo eleitoral da democracia representativa nos levam a crer que medidas como a desmilitarização forçam caminhos de fato democráticos fundando o que seria uma polícia cidadã, ou seja, uma polícia que cumpra a jurisdição em práticas de respeito aos demais não tendo mais nos segmentos reprimidos, nesse caso as classes pauperizadas, um inimigo público. O modelo atual, segundo a crítica comum da esquerda institucional e o conjunto de intelectuais que reforçam tais ideias, caracteriza-se por uma omissão do Estado com relação a sua função de proteger o cidadão que consequentemente tornam-se reféns da ausência do poder público em sua obrigação de defesa dos mesmos.
A polícia cidadã reformada guiada pelos limites do Estado democrático e sua jurisdição burguesa ao fim do seu processo de reforma estará ainda mais preparada para atuar na repressão contra seu inimigo histórico – ainda que alguns poucos agentes ou parlamentares a princípio sejam contra este tipo de prática. A polícia continuará servindo aos empresários, patrões, chefes de Estado, aos grandes traficantes, enfim, aos carrascos de sempre. O inimigo da polícia reformada continuará sendo todo e qualquer segmento que coloque em questão o caráter sagrado da propriedade privada, o funcionamento das redes de mercado e a consequente acumulação de lucros e o funcionamento da democracia representativa burguesa. Pensar que a corrupção, ou a suposta falta de preparo de ambas polícias, civil, militar ou federal, ou seus baixos soldos ou a ação fora da legalidade é o grande mal das forças armadas é ignorar a sua função social no regime capitalista. A corrupção, a extorsão, a tortura e a ameaça, por exemplo, são elementos próprios e constitutivos das forças armadas sem os quais as polícias sequer funcionariam de acordo com seus objetivos. Por isso é preciso problematizar o discurso que afirma ser a polícia despreparada mesmo ela agindo minuciosamente na neutralização do seu inimigo. A ideia do despreparo serve como um filtro que blinda as corporações de suas responsabilidades e intenções visto que suas ações são estrategicamente formatadas no sentido de tomar territórios garantindo a hegemonia do Estado em relações econômicas legais ou ilegais. Em verdade, diz Geroge Oliven,
a violência e a tortura com que a polícia tem tradicionalmente tratado as classes populares, longe de se constituírem numa “distorção” devido ao “despreparo” do aparelho de repressão, “têm uma função eminentemente política – no sentido de contribuir para preservar a hegemonia das classes dominantes e assegurar a participação ilusória das classes médias nos ganhos da organização política baseada nessa repressão. O exercício continuado dessa repressão ilegítima consolida as imagens de segurança de status social das classes médias diante da permanente ‘ameaça’ que constitui para elas qualquer ampliação das pautas de participação popular.
O aumento da violência que, segundo Ruben Oliven em seu livro “Violência e Cultura no Brasil” (1982), se agravou sobretudo a partir do período de “abertura”, está intimamente ligado ao processo de aceleração e acumulação de capital em associação com interesses estrangeiros na construção do projeto moderno de sociedade. Dentro disso, o autor sugere que até mesmo termos como ‘violência urbana’ (normalmente relacionada diretamente a delinquência de classe baixa) serve como mecanismo de ocultação de um problema estrutural pois com o uso deste termo tem-se a ideia de que existe uma violência inerente às cidades, qualquer que seja. No entanto,
a cidade, obviamente, não é a causa per se da violência, e por isto talvez devêssemos falar em violência na cidade em vez de violência urbana, já que este último termo implica aceitar que existe uma violência que é específica da cidade, quando, na verdade, esta é apenas o contexto no qual a violência se manifesta. (GEORGE, R. Violência e Cultura no Brasil. Pag. 22)
Dentro de toda essa problemática a reforma além de inócua para a emancipação do trabalhador produzirá o efeito de melhor adaptar e capacitar a função da polícia em tempos futuros. Hoje a dificuldade de encobrir e justificar torturas, sequestros, assassinatos e demais práticas comuns das polícias ganha certa dificuldade, pois além de rotineira tais práticas são numerosas e normalmente ocorre a luz do dia sem qualquer pudor ou precaução mais minuciosa sendo necessário a intervenção direta da mídia corporativa como meio de convencimento. Ainda sobre a questão da reforma diz Nildo Viana:
De nada adianta apresentar propostas como o aumento dos salários, a melhoria das “condições de trabalho”, implementação da pena de morte, etc., pois o aumento de salário nunca levará os agentes policiais ao cume da pirâmide social; a melhoria das “condições de trabalho” significa melhoramento nos meios de repressão que, certamente continuarão, em muitos casos, sendo usados de forma contrária ao que se propõe e também para fins político-repressivos; a pena de morte não significa combate à criminalidade e sim aos criminosos. As duas primeiras medidas podem ser implementadas, e, no caso da primeira, é bastante importante, pois pode contribuir com a diminuição da corrupção no sistema policial. Entretanto, essas reformas não são suficientes para resolver o problema da violência policial e/ou o problema da criminalidade. Isto ocorre porque tais reformas não chegam até as raízes da violência policial, pois a questão policial é uma questão social. (VIANA, N. As raízes da violência policial)
Ainda que incrivelmente seus agentes fiquem absolutamente impunes e continuem a exercer suas funções de poder (quando muito passam a exercer funções burocráticas na corporação) as revoltas e as informações sobre tais práticas estimulam a crescente necessidade de uma autodefesa dos trabalhadores, questão essa intocada pelo reformismo já que isso enseja práticas ilegais por parte da classe trabalhadora evitando as orientações reformistas ou legalistas.
Para entender melhor essa questão é preciso expor alguns argumentos que vão no sentido da reforma da polícia militar e consequentemente da polícia civil como setores da segurança pública que devem se fundir num outro programa de segurança segundo seus autores mais humano, democrático e que sirva a toda população. Para tal utilizaremos como exemplo o livro publicado pela Carta Maior “Bala Perdida, a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação” (2015) por ser um veículo de esquerda que apresenta críticas ao modelo atual da polícia militar e da violência na cidade trazendo propostas desse setor institucional que combate a violência policial e tenta entender suas causas. Essa esquerda caracteriza-se nos limites do que aqui denomino social democracia (não podendo ser confundido com partidos abertamente de direita como por exemplo o PSDB que carrega no nome o termo social democracia mas que em nada se relaciona a tal vertente), ainda que este termo deva ser melhor definido para que possamos nos situar no debate.
Há também no livro “Bala Perdida” o setor legalista das polícias que demonstra interesse numa maior “humanização” e preparo das forças coercivas, além de intelectuais e organizações como as Mães de Maio que reivindicam maior cobrança ao Estado e que neste caso específico, certamente por sofrer as consequências diretas do poder do Estado sobre as populações pauperizadas, apresenta uma leitura alternativa a da democracia burguesa. O livro, no entanto, apesar de trazer apontamentos específicos importantes sobre a violência como estatísticas e até mesmo situar a violência como normalmente direcionada a moradores de favelas, negros e jovens, apresenta o que denomino aqui de crítica comum normalmente usada como ponto de convergência entre interesses antagônicos na sociedade capitalista utilizando termos como cidadãos e Estado democrático numa possível busca por uma cidade regida por leis justas numa verdadeira ode ao Estado como tal sem ao menos tocar em questões fundamentais como a divisão histórica entre classes antagônicas e as consequentes lutas entre esses segmentos. Assim colocam os autores:
A garantia de direitos e a proteção dos cidadãos precisam ser funções primordiais de qualquer política de segurança, e os policiais devem ser formados sob esses princípios. Nesse sentido, é essencial que nos questionemos sobre qual modelo de policiamento desejamos. Queremos uma polícia exclusivamente civil, voltada para a preservação da vida, e não preparada para a guerra e a eliminação do inimigo, que é o cidadão a quem deveria proteger. Marcelo Freixo
As polícias, de fato, não se encontram sós nesse quadro de violência, em cujo verso estão os baixos salários, o treinamento deficiente, a falta de equipamentos e o duro enfrentamento de criminosos cada vez mais organizados e armados, que não vacilam em atirar, na certeza de que, ao escaparem vivos de um cerco, dificilmente serão pegos por uma investigação. O embrutecimento dessa polícia é também o da sociedade brasileira, um país em que se banalizaram o assassinato, o racismo, o desrespeito às leis e a corrupção. (…) Há variações no entendimento sobre o que é desmilitarizar as polícias, mas todas compreendem a mudança do regime disciplinar, que permite prisão administrativa para questões ligadas à hierarquia, à vestimenta e à administração, além da extinção das instâncias estaduais da Justiça Militar, que julga policiais em crimes graves, como homicídio de um PM por outro. Fernanda Mena
A função da PM é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força quando indispensável. Segurança é um bem público que deve ser oferecido universalmente e com equidade. Os confrontos armados são as únicas situações em que haveria alguma semelhança com o Exército, ainda que mesmo aí as diferenças sejam significativas. (…) O primeiro eixo seria a revogação da atual divisão do trabalho entre as instituições: uma investiga, a outra age ostensivamente sem investigar. Ambas, então civis, passariam a cumprir o chamado ciclo completo da atividade policial: investigação e prevenção ostensiva. Luiz Eduardo Soares
O espelhamento institucional com a tropa militar terrestre transformou as polícias militares em pequenos exércitos, acarretando a inevitável compreensão do ser policial militar não como um serviço público que pode usar a força, mas como uma força garantidora da ordem. Por inspiração da doutrina de segurança nacional (meado dos anos 1950) e com o advento da ditadura militar, essas corporações – encarregadas do policiamento ostensivo, com exclusividade, no final dos anos 1960 – passaram a operar a partir de um ideário notadamente belicista. A redemocratização não significou o fim do modelo inspirado na guerra. O confronto armado continuou a ser estimulado em ampla escala, da cobertura jornalística espetacular ao discurso político de ocasião, como estratégia de enfrentamento do crime – sobretudo do tráfico de drogas -, a empurrar a polícia em sucessivas cruzadas na defesa de uma sociedade que demanda drogas. Coronel Íbis Pereira
Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imagina que a suposta “mão de ferro” do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora. Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas – qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como militares – compromete a segurança de todos os cidadãos. Maria Rita Kehl
A linha comum que tece a narrativa dos textos acredita na harmonia dentro da construção incansável de “um Estado verdadeiramente democrático e republicano” que construa suas leis de forma favorável ao convívio dos cidadãos que nesse modelo superam o ressentimento de classe numa diferença produtiva onde os direitos substituem a revolução num movimento claro de coalizão partidária e também com o setor legalista das forças armadas. A organização do mercado e sua economia produtiva está, no entanto, no cerne do debate sobre a função da polícia. A função da polícia na história dos países capitalistas não priorizou nem de longe a defesa daqueles que na Constituição devem ser os beneficiários dos serviços públicos. Por isso é difícil crer e legitimar o discurso legalista. A função da polícia a todo momento esteve a serviço dos grandes interesses políticos e comerciais num movimento constante de produzir miséria e a consequente revolta. É função histórica da polícia também proibir, criminalizar e neutralizar as manifestações populares e organizações combativas principalmente de orientação anarquista assim como a ocupação sistemática dos espaços públicos em organizações autogeridas. Um exemplo emblemático foi a invasão da polícia italiana a escola Diaz e o consequente assassinato e tortura de militantes por organizar a resistência contra o G8 em Gênova. Por isso, a função histórica da polícia está longe de ser a defesa do cidadão e mesmo seus quadros reformados não estarão aptos a defender interesses antagônicos ao funcionamento da economia financeira.
(continua…)
[*] Arthur Moura é Cineasta, graduado em História pela UFF, mestrando em educação pela UERJ.
“Toda a maquinaria de poder curva o subalterno ditando para este a sua condição social ao passo que constrói para si uma ideia de negociação entre as classes que se antagonizam. Quando existem, as negociações produzem no máximo reformas da própria lógica burguesa garantindo o ordenamento das mercadorias sobre os humanos”
Muito bom artigo! Sintetiza de maneira profunda não só as contradições das discussões sobre “segurança” como, também, de tantas outras discussões e lutas sociais atuais, como transporte, moradia, multiculturalismos, etc, que se articulam baseadas em conjunturas e raramente em estruturas. Quantas são as lutas pela propriedade e quantas são contra a propriedade? Quantas são as lutas pelo poder e quantas são as lutas anti-poder?
Grilhões de ouro continuam sendo grilhões e cangalhas acolchoadas continuam sendo cangalhas…