O equívoco de uma esquerda que se propõe verdadeiramente radical ou avançada é precisamente o de deixar-se atar pelo tabuleiro posto. Reinventar o tabuleiro deveria ser nossa meta. Por Ian Caetano

bak 03O governo petista, representado no executivo – ao menos do ponto de vista formal – por Dilma Rouseff, passa por aguda crise. Crise institucional, econômica e, a nível das relações internas ao partido, uma crise nas costuras entre setores mais favoráveis e menos favoráveis à presidenta. Chamá-la-ei pelo neologismo que ela prefere, não por concordar ou discordar, mas para evitar que eventuais críticas ou comentários ao meu texto balizem-se nesse detalhe trivial. Presidenta, portanto.

Nesse ínterim, muitos setores de esquerda, até então não associados ou críticos do governo, penderam à defesa da manutenção da administração vigente, em favor da “democracia” e temerosos do “golpe da direita”. Uns em um tom mais apaixonado que, até hoje, o PT consegue salientar em alguns (em parte por seu legado histórico, em parte pelo legado histórico da “oposição de direita”), outros com um apelo maior às circunstâncias imediatas.

Até, por exemplo, professores universitários que conheço e que sempre se mostraram os mais descrentes no que se refere à “democracia” foram às ruas defendê-la, logo depois movimentando as redes sociais com os frames captados. Sabemos todos que no jogo político – e muitas vezes no debate público – a conjuntura nos leva a argumentos “de diálogo” que não são necessariamente aqueles com os quais mais concordamos, mas aqueles que, na ocasião, melhor nos posicionam circunstancialmente em oposição àquilo de que discordamos. Ainda assim, espantou-me o fervor com o qual alguns defenderam e propagaram o ato do dia 18, no qual, em diversas capitais, Lula foi celebrado como um Cristo em vida.

Assim, a esquerda não-governista adere à luta de manutenção do governo do PT. Alguns convencidos de fato, outros mais céticos e apoiados na “necessidade circunstancial”.

Fundamentalmente, ainda que seja possível – e sustento que isso é algo passível de questionamento – advogar certa melhoria social durante o governo PT, fundamentalmente no plano do consumo, é fato real (para ser redundante) que este é o mesmo governo que sancionou a Lei Antiterrorismo (uma importante arma jurídica contra os movimentos sociais). É o governo que vetou o “kit contra a homofobia”, que cumpriria um importante papel na desconstrução dos preconceitos sociais e na redução da violência. É o governo que violentamente expropriou terrenos (via força policial) quando das reformas da copa do mundo. É o governo que fez a reforma previdenciária em desfavor dos trabalhadores. É o governo que na figura do ex-presidente Lula fez e faz profundo lobby de exploração mineral predatória no continente africano, tanto do ponto de vista ecológico, quanto do ponto de vista humano. Enfim, é um governo que cobrou direitos sociais (ou não os realizou) em prol de interesses outros.

Não se trata aqui, obviamente, de desmerecer programas como o Bolsa família ou as cotas em Universidades – ainda que eu tenha minhas críticas a estas políticas – que forneceram importantes avanços, estes não nego. Mesmo que possamos afirmar tais mudanças a partir de um contexto global no qual o Brasil necessitava modernizar-se e capacitar sua força de trabalho, é justo assumir que quem estava no executivo era o PT.

bak 05Nesse contexto em que os parcelares benefícios parecem ofuscar – associados a um legado histórico meio verídico meio aumentado – os deméritos deste governo, a esquerda não governista adere em favor da democracia.

A questão parece envolver um misto de falta de solidez interna por parte desta esquerda, e de certo fatalismo no que se refere ao estado das coisas atuais. A dicotomia criada com sucesso pelo PT com o “nós versus eles” parece ter surtido efeito até nos setores mais dedicados intelectualmente. Nesse contexto de crise parece inexistir, portanto, uma alternativa que não a defesa ou o ataque ao PT.

A verdade é que diversas afirmações dos setores mais conservadores são verdadeiras e têm de ser encaradas como tal. Por mais que seja possível extrapolar dizendo que o corpo social que foi às ruas no dia 18 seja mais plural em seus extratos do que o do protesto do dia 13, ainda assim este último teve uma dimensão que não se pode negar. Outra coisa é tratar o impeachment como golpe ao mesmo tempo em que se defende a brecha pela qual Lula foi alçado a ministro. Ambas as coisas, ainda que as condenemos moralmente, funcionam por instrumentos constitucionais, mesmo que o primeiro tenha uma carga política meio volátil.

A crise existe, um erro é tentar negá-la; erro pior é, tendo dela consciência, tentar atenuá-la no plano da aparência.

O equívoco de uma esquerda que se propõe verdadeiramente radical ou avançada é precisamente o de deixar-se atar pelo tabuleiro posto. Reinventar o tabuleiro deveria ser nossa meta. Ao invés de abraçar o PT ou criticá-lo pró-impeachment, deveríamos era estar a pensar e a propor uma alternativa a estas duas coisas. Tenho plena ciência de que as contingências históricas, por vezes, nos forçam a agir não da maneira como queremos, mas a partir da realidade que se impõe. Todavia, temos de parar de apenas reagir aos problemas postos, para passar a disputá-los.

Se a crise a nível político configura uma disputa, disputemos também, mas nos nossos termos, não nos termos pré-configurados por dois grupos partidários desinteressados revolucionariamente.

Não há ingenuidade. É um processo difícil, trabalhoso, demorado, muito passível a falhas; mas é o processo necessário. Faz-se mister que a esquerda deixe esse milenarismo do “a revolução está muito distante”, pois isso, na prática, gera tão somente uma postergação indefinida das ações.

Ser agente da própria história, tomá-la nas mãos e realizá-la, não é tarefa fácil; mas mais contraproducente é esta defesa que se configura atualmente, de uma esquerda desarticulada para um partido que não a representa. É difícil compreender quando falam “se fizerem isso com um ex-presidente, o que farão com o cidadão comum”… ora, senhoras e senhores, já o fazem, ambos os lados, todos os dias.

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As imagens que ilustram o artigo são de Samuel Bak

27 COMENTÁRIOS

  1. De fato ter que sucumbir as circunstâncias da necessidade de um apelo comunicativo num momento circunscrito e obviamente capitalizado pelo PT, não é o cenário em que gostaríamos de atuar, contudo a polarização esta posta, e em parte é conseqüência do silencio de uma dita esquerda revolucionária, que ao que parece, não existe no Brasil. Há um vácuo, um vazio, um hiato, sou só um trabalhador, um cidadão comum e não pretendo ser vanguarda de ninguém e diante deste vazio preferi ir pra rua, que a mim e a todos os trabalhadores pertence, do que esperar que alguns iluminados pela chama vermelha me indiquem o caminho. Não, fascistas otários de cérebro atrofiado não vão ocupar a rua que é dos trabalhadores. Pena que a omissão de muitos não levou outras nuances para o dia 18. Trabalho 44 horas por semana e fico quase 4 horas no transporte público todos os dias para ir e voltar do meu martírio e defendo o que acredito todos os dias em tudo o que faço, fugindo a todo custo da uniformização da fé política, cansei dos que só pensam dentro de suas gavetinhas etiquetadas e carimbam certo ou errado no sonho alheio. Para superarmos essa danosa polarização política e atuarmos menos de forma reativa, que de fato é pouco produtiva e as vezes soa como desespero, e confesso o meu próprio desespero no dia 18, é preciso acolher a pluralidade, não pensar de forma unilateral e ser dialético, ver unidade nos contrários e parece que esse é uma raciocínio difícil de se alcançar para os educados por manuais. Há tempos o muro em que a esquerda estava sentada vem caindo, isso é bom, se livrar das garras e do financiamento do PT, trará um cenário diferente, talvez mais aberto e espero muito que possamos encher novamente as ruas sem ligação nenhuma com a defesa de um governo que não nos representa. Enquanto isso entrego a maior parte do meu tempo ao trabalho, volto pra casa, faxino, cozinho, estudo, durmo quase nada e volto ao trabalho, ansiando por um novo projeto de futuro, pensando, debatendo, sugerindo e procurando aqueles que compartilham do mesmo ímpeto. Parece que não há hora melhor que essa para que surja um novo projeto popular de transformação social a serviço dos trabalhadores, e cada gota de sangue que me resta estará a disposição se for verdadeiro. O mundo é dialético, difícil mesmo de traduzir, uma idéia nunca esta sozinha e cada palavra de ordem parece trazer o seu oposto nas entrelinhas, ambivalentes discursos, mas o ideal é um só: superar o capitalismo para um mundo mais justo, superar o borrão confuso do debate, isso é política no século XXI.

    “Não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia nem no algo mais… o meu delírio é a experiência com coisas reais”
    Belchior

  2. O que tenho para discordar desse texto?

    Formalmente acho que nada. Mas qual o objetivo político nesse momento? Essa é minha dúvida. Martelar os problemas com o governo do PT num site onde os leitores está bem à esquerda do governo, em geral, serve à que senão reforçar a própria identidade?

    Mas claro que deve-se construir uma alternativa à esquerda. Talvez já esteja a caminho. Mas hoje não demonstra ter expressão diante da dimensão da situação política, para se tornar um pólo aglutinador que tenha efeitos políticos, de fato.
    Faz-se o que se pode no momento, coma s forças que se tem.

    Portanto, textos como esse, nesse momento, creio que servem mais à manutenção de uma identidade do que à ação política, ou para manter a consciência tranquila de não se misturar, de não meter a “mão na merda”, que é inevitável na ação política. Ou para a vanguarda que não aceita não estar na liderança em nenhum momento.

    Resumindo, fico com a resposta sintética do Rudá Ricci sobre questão praticamente idêntica:

    “política é dinâmica e, muitas vezes, imprevisível. Mas não há espaço algum para terceira via. Esqueça. Em momentos como este, de grande comoção nacional, a sociedade se polariza e não reflete. Há, é verdade, espaço para outsider, mas não vejo possibilidade alguma de surgir pela esquerda. Quanto às ruas, desde 2013 há esta tentativa. Me diga, então: qual foi o resultado? Por que não conseguiram alterar o cenário minimamente? Temos que ser realistas no jogo político ou falamos para o manequim da loja do lado.”

  3. De todos os partidos que se situam a esquerda, o único confiável e coerente é o PSTU.

  4. transcrevo aqui um trecho de um texto da academia brasileira de letras sobre o tema (link ao final): “Há uma regra antiga de que as palavras com os sufixos ente, ante e inte são comuns de dois gêneros e, assim, comportam o masculino e o feminino.
    Exemplos: dirigente, despachante, ajudante, pedinte, atendente, viajante, estudante, comandante, governante…

    Já governanta não é o feminino de governante, mas vem do francês “gouvernante”, e tem um significado próximo, mas limitado, discriminatório de gênero, de quem administra uma casa. Um trabalho que tende a desaparecer. Isso, contudo, não resolve as dúvidas. Nossos mais usados dicionários, o “Houaiss” e o “Aurélio”, aceitam a forma presidenta.

    Presidenta, segundo o “Aurélio”, é “mulher que preside ou mulher de um presidente”, distinta de presidente, que é “pessoa que preside” ou “o presidente da República”. O “Houaiss” fala em “mulher que preside (algo)” ou “mulher que se elege para a presidência de um país” para definir presidenta e, para presidente, em “título oficial do chefe do governo no regime presidencialista” -substantivo de dois gêneros. A forma tradicional, comum de dois gêneros, não tem nenhum sentido discriminatório. Mas presidenta tem mais um peso político que linguístico.”
    LINK: http://www.academia.org.br/artigos/presidenta-ou-presidente

    é nesse sentido que considerei.

  5. Se o professor André Singer tem razão qdo diz que a Presidenta (e aqui abro um enorme parêntese: acho que não temos pq falar contra a adoção dessa distinção de gênero, seja ela apoiada ou não pela gramática da nossa língua, afinal de contas, a língua, já que não morta, é feita diariamente por nós mesmos; além disso, acho que concordamos que não somos as figuras mais afeitas ao simples seguir a normatividade, seja ela de que tipo for. E, nesse caso, o viés político da “adição” do gênero feminino à palavra “presidente”, ainda que ela seja ambivalente com a configuração tradicional, me parece suficientemente importante e válido, considerando-se o contexto atual de relativo avanço das vozes do feminismo; essa adição é, a meu ver, reconhecer e relembrar diariamente que temos uma chefe de Estado do sexo feminino. E este reconhecimento é cheio de simbolismo e “ação”, numa sociedade machista e em aparente guinada à direita.) sofre esse processo político, entre outras coisas, por fazer em 2012 um confronto aberto ao setor financeiro, ainda que aliada ao setor industrial; se o professor Marcos Nobre vê com clareza ao sustentar que o processo de impeachment é uma defesa do sistema político contra as investigações da PF; se o professor Tales Ab’Saber acerta ao apontar para uma “ideologização” mundial; e considerando algumas outras características gerais dos acontecimentos recentes, que além de um ódio ao petismo, mostram ódio à esquerda – ódio que parece ter feito de Marx um nome proibido e do marxismo algo tido como religião nefasta e antidemocrática (meus “agradecimentos”, também, ao Eduardo Jorge) -, não me parece viável manter uma postura de distanciamento do que parece ser o real embate presente: não acho que se trata de apoio ou oposição ao governo; e tbm não acho que se trata de criticar conscientemente todos os erros (indiscutivelmente) cometidos pelo PT ou ignorá-los completamente. A luta atual é uma por soberania (considerando o que diz o Greenwald – em “O Brasil está sendo engolido pela corrupção – e por uma perigosa subversão da democracia” seu site “The Intercept”) e sua prática só pode se dar, nesse momento, sendo contra o impeachment ou a favor dele. A tal terceira via, ainda que antigovernista, teria que dizer, nesse momento, se é antigovernista mas contra impeachment ou antigovernista e pró-impeachment, já que, repito, é isso que se disputa agora. Não acho que seja interessante, portanto, deliberar (hoje) sobre a ideia da tal terceira via, uma vez que isso parece ser colocar de lado o ponto nodal da questão em voga (a menos que se entre num delírio de achar que se pode convocar atos – à esquerda – independentes dos dois concorrentes atuais).
    Concluo com a minha opinião, um tanto óbvia nessa altura do texto, de que não dá pra não lutar ao lado do PT. Se ausentar é o msm que deixar que outros façam essa história (e ela será feita); ir a favor do impeachment é (óbvio?) colocar o governo Federal no colo do PMDB, de uma vez por todas, e avalizar, ainda que indiretamente, o manifesto autoritarismo do Moro (com seu recorrente desrespeito aos direitos individuais) e do Judiciário, de forma geral.
    Dá pra não ser antipetista e, ao msm tempo, não-governista, mas não dá pra não ser contra o impeachment e nem a favor dele.

    (Sobre o que os professores disseram, as entrevistas estão no site do El País, com os nomes “A democracia vai pagar um preço alto se o impeachment vingar”, “O impeachment é estratégia de defesa contra a Lava Jato” e “Impeachment artificial faz Brasil abrir fraturas expostas a cada dia”; sobre essas tais “algumas outras características gerais”, sugiro os textos “Golpe e Fascismo” e “O Monstro cresceu e nós falhamos”, ambos no site “Justificando”; quanto ao Eduardo Jorge, me refiro ao episódio acontecido no programa “Fluxo”, que pode ser achado no youtube – quem quiser ir direto ao ponto, procure por “Eduardo Jorge – lutávamos por uma Ditadura Comunista”; por fim, o Greenwald, lembro, foi o repórter pra quem o Snowden passou as informações da espionagem americana.)

  6. Fagner, esse argumento é ruim. As novas eleições gerais não tem como objetivo levar o PSTU ao poder ou coisa do tipo. Creio eu que no contexto da democracia burguesa e da crise atual, as novas eleições gerais ajudariam positivamente a uma saída da crise que aponte programas políticos contra as opções messiânicas (tanto lulistas quanto fascistas), ajudando inclusive a situação econômica do país.
    No contexto atual me parece uma das poucas intervenções políticas que a esquerda pode propor para solucionar essa crise, já que nos termos em que ela está sendo pautada só há saídas negativas para os trabalhadores. O que você acha?

  7. Eu acho que é uma proposta de um partido que faz oposição ao PT, mas que muito gostaria de ocupar o seu lugar, e que, encarada do ponto de vista dos seus prováveis efeitos práticos, serviria justamente para acabar com qualquer veleidade, por parte do PSTU, de acesso ao poder pela via eleitoral, levando em conta o antiesquerdismo em ascensão. Um tiro no pé de quem queria ser governo, mas não é.

  8. PSTU como saída da crise… essa foi boa!!! O corinho dos seguidores de Zé giram em torno do rabo crendo ver a barbicha trotskista na esquina verde-amarela e crendo poder solucionar tudo na direção pangaré e, pasmem amigos, no voto! É tão maluca a proposta dos intimistas do marxismo vulgar que a esperança madrasta da história indica a eles uma feliz união com setores da direita mais reaçuda. Isso sem esquecer o tal do Território Livre cujo vermelho utilizado em seus cartazes lembram esteticamente a estetização da política na era Goebbels. Triste sina da esquerda mais esquerda que as demais! Tão esquerda são, que tocam no seu extremo contrário, ou seria o mesmo? Deusulivreguardeasetechaves!

  9. O que é que se quer:

    “Em suma, um pacote de medidas destinadas a comprimir ainda mais as classes médias e baixas, aumentar a recessão e o desemprego, destruir as pequenas e médias empresas, que compõem a coluna vertebral da economia grega, e entregar todos os ativos públicos e bens comuns ao capital transnacional. Ao mesmo tempo, perpetua-se a depressão e aumenta-se a dívida, paralisando efetivamente a economia grega e destruindo a sua capacidade de saída da crise pelo seu próprio pé.” (excerto do artigo “O Syriza rendeu-se: é altura de reforçar as resistências populares” disponível em http://www.passapalavra.info/2015/07/105433)

    Guardada as devidas proporções, retire-se a palavra grega onde houver e coloque-se no lugar a palavra “brasileira” (ou venezuelana, argentina, etc). Este é o objetivo do capital transnacional no presente e que já se encontra em adiantada fase de implantação “aqui, ali, acolá…”. Da mesma forma, no lugar da palavra Syriza (também guardando as devidas proporções), coloque-se PSTU, ou mesmo PSOL, PCO, POR, etc., ou todos eles juntos numa coligação com um nome qualquer, e… acontecerá o mesmo. É isso, ponto.

    A crise é estrutural e o capitalismo há de impor novas estruturas ainda mais perversas e, não nos iludamos, com a imensidão da força de trabalho disponível, não terá qualquer constrangimento em simplesmente eliminar, através das mais variadas formas de “eliminação”, inclusive a física, o excedente.

    O mesmo artigo indicado sugere: “É o momento oportuno para que uma ampla aliança de forças sociais leve avante um «Plano C», baseado na colaboração social, no auto-governo descentralizado e na administração dos bens comuns. Sem ignorar a sua relevância, a política eleitoral nacional não é o campo privilegiado de ação no que respeita a transformação social.”

    Agora, diante da realidade das correlações de forças – especialmente num momento em que as forças sociais se fracionam e se fragmentam em multiculturalismos vários – o que nos resta? O tempo não está a nosso favor… e, talvez, nem nós mesmos… Salvo alguns casos, infelizmente, isolados, como a recente mobilização estudantil, o que mais temos? O espetáculo acontece mesmo com a TV ou PC desligados… Como pode, Geraldo Vandré continuar tão atual?

    Pelos campos há fome em grandes plantações
    Pelas ruas marchando indecisos cordões
    Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
    E acreditam nas flores vencendo o canhão…

  10. novas eleições não trarão a revolução social? nossa!…

    Vejamos os cenários possíveis para o futuro a curto e médio prazo no Brasil:

    Impeachment – Temer assume; aplica a agenda brasil costurada com alas da direita institucional barra pesada ligadas ao serrismo e quase todos os setores do PMDB)

    Cassação da chapa presidencial (TSE, só em 2017) – Novo presidente eleito indiretamente pelo Congresso: alguma figura próxima a Cunha. Maior poder para bancadas Boi Bala Biblia.

    Término de mandato: Aplicação de ajuste “progressista” do mal menor, acirramento de radicalização nas ruas – fanatismo anti-esquerda e embalsamento do Lula (Paz e Amor para os progressistas, “maior Lider Popular” para a exquerda).

    Claro, podemos continuar falando de “trabalho de base” e a cantilena cristã. Ou podemos fazer uma análise para propor algo para os problemas de hoje e não do capitalismo.

    Os argumentos que me convencem até agora que essa é a melhor saída que a esquerda classista pode oferecer para essa crise, que é uma crise essencialmente política, é o fato de que novas eleições reorganizariam o mapa político e distensiona as divisões faccionais que hoje ganham força: a união “patriótica” da direita vs a união “progressista” do volta Lula. Além disso, novas eleições no contexto atual creio que teriam o efeito benéfico de começar o desmanche petista no eleitorado de esquerda, com PSOL e Rede drenando os votos e permitindo que o fim da hegemonia petista ocorra de fato; no lado da direita, o processo institucional isola os setores radicais, ou seja, acaba com o papel dirigente do espírito fascista encolerizado, coloca as pautas neoliberais dos oportunistas contra o senso comum dos manifestantes (que como foi bem demonstrado em reportagens, não são em sua maioria liberais tradicionais).

    Tanto para a esquerda quanto para a direita, eleições são um banho de água fria na verve revolucionária. Acredito que isso não viria nada mal para acalmar a direita brasileira “empoderada”; além de ser uma antecipação do desmanche do PT.
    Gostaria de ouvir/ler opiniões sérias que se contraponham a esse cenário que eu desenhei. Quem quiser apenas vituperar contra o PSTU deve dirigir-se ao facebook que é o lugar ideal para trollar e mostrar a forma de acabar com o capitalismo em 10 linhas.

  11. Léo Vinícius, gostaria de propor algumas questões para debater seu comentário.
    A primeira delas é: em que pesa de fato a ação de setores da esquerda não governista na balança politica tal qual ela esta posta? Neste jogo de “opinião publica” (e as aspas são muitas), agentes do Estado, instituições políticas bem instaladas, têm as forças realmente anti-capitalistas massa pra alterar no mínimo que seja a inércia do jogo institucional? Admitindo-se que esta não possui de fato quase nenhuma possibilidade de alterar as regras essenciais do jogo, não seria mais interessante de uma perspectiva menos curto prazo gastar a pouca energia existente em ações de outro tipo?
    Minha segunda questão diz respeito ao conjunto daqueles que têm militado seja no segundo turno da eleição, seja nas manifestações de frente de esquerda (ou popular democrática) desde a posse da Dilma. Não se tratariam estes (no que concerne suas propriedades sociais mas muito das vezes também suas identidades) da antiga base social do PT pré Lula-presidente? É já bem descrito e conhecido pelas diversas militâncias que estes setores médios, em boa parte altamente escolarizados, que compunham uma boa parte da militância do PT antes de 2002 abandonaram o barco do “reformismo fraco”, acusando Lula e o PT de traição. Não seriam estes os verdadeiros alvos destas manifestações pela democracia e em defesa do Estado de direito?
    Meu terceiro questionamento dirige-se a fraca presença de setores jovens e precarizados observada na manifestação do dia 18 (ao menos no que tange o caso de São Paulo, do qual tem-se dados estatísticos, ainda que parcos). Ora, dado que boa parte das experi^ncias de esquerda realmente profícuas na cidade foram gestadas no seio das populações mais pobres e em muita das vezes mais jovens, por que razão 1) a média de idade na paulista era de 38 anos e 2) mais da dos manifestantes ganhava acima de 5 salários mínimos (segundo o DataFolha)? Uma das razões não residiria na adoção de uma palavra de ordem consideravelmente abstrata como “Em defesa da democracia e pelo Estado de direito”? Afinal, do ponto de vista destes setores combativos este tal Estado de direito não existe de fato e essa democracia tão propalada nunca se efetivou. Ora, com que legitimidade pode setores da esquerda solicitar apoio e solidariedade?
    Penso que a resposta a este três conjuntos de questões repousa em duas assertivas, ambas relacionadas ao caráter ideológico destas manifestações (cuja disputa interna se mostra, ao meu ver, como impossível): 1) uma boa parte da esquerda brasileira, pela sua história recente, pensa o militante e o possivel militante (o tal “sujeito histórico”) como um individuo social ou intelectualmente quase que obrigatoriamente ligado aos setores médios da classe trabalhadora, abandonando a massa de precarizados (que de exceção passam a constituir no atual estado do desenvolvimento capitalista se não a regra ao menos um movimento tendencial); 2) frente a momentos de crise, as esquerdas brasileiras tendem a procurar com afinco religioso uma resposta imediata; à idéia de pensar o que fazer face a um instante da história que parece condensar anos ou décadas passadas lhe é substituído o ímpeto de ao menos saber que não vai morrer sem ter tomado posição.
    Ora, é frente a estas questões e assertivas que penso que o momento político não demanda aos setores combativos da esquerda não governista o engajamento nestas manifestações contra o golpe: elas possuem vícios de origem profundos, tem como objetivo recriar uma massa crítica nos mesmos moldes de antes dos anos 2000 e a experiência Lula, além de, por último mas talvez o principal, tirar a atenção dos parcos militantes ainda existentes (em relação à massa da classe trabalhadora brasileira) do trabalho que ao meu ver realmente urge: ajudar a organizar os setores precarizados em constante movimentação na luta contra esse fascismo 2.0 que a cada dia mostra mais as suas presas.
    Cordialmente.

  12. O PSTU sequer vence uma eleição do DCE ou mesmo no centro acadêmico de humanas – aonde talvez ele tenha a sua maior expressão partidária – agora imagina convocar eleições gerais…

    O programa de esquerda não é para ser levado a sério mesmo.

  13. A crise é, essencialmente, política? O problema é, portanto, administrativo? O titanic já bateu no iceberg, o barco já está afundando, violinistas começam a tocar, é hora de mudar o capitão!

    Adivinhem só: os problemas de hoje são problemas do capitalismo, pois a crise não é (só) política, mas sobretudo econômica e mundial.

    A esquerda das eleições gerais esquece que raramente candidatos são eleitos por seus programas (alguém fora dos círculos mais ‘politizados’ leu o programa da Marina Silva ou mesmo de Dilma Roussef, por exemplo?). Outra: candidatos – espanto! – mentem descaradamente com a ajuda de seus marketeiros muito bem pagos.

    Nas eleições o cenário mais provável é que PSTU e PSOL sejam taxados de petistas – o que, em certa medida, é uma meia-verdade em relação ao segundo, PT in status nascendi.

  14. Sobre PSTU, questionando um militante do partido descobri que a intenção de chamar eleições gerais é que supostamente o governo vindo de eleições gerais seria mais fraco que o da Dilma, e que eleições gerais agravariam a crise, seria antiburguês. A intenção seria agravar a crise.
    Obviamente acho um no sense total… Mas esse é o “raciocínio”.

    Aquiles, eu acho suas questões boas e não tenho respostas, ainda mais na pressa que estou agora.

  15. Quanta dificuldade em se pensar o Estado Burguês por parte da “esquerda autonomista”!
    Vejamos o caso das chacinas policiais. Deve-se pedir a prisão dos assassinos? Se a esquerda não tomará parte ativa disso, qual é o sentido da demanda? Ou será que esta demanda só faz sentido se houver uma prisão “autogestionada”? A prisão de um policial que comete chacinas é uma demanda ao Estado burguês de algo que é impossível de a própria classe tomar como tarefa própria, a não ser que se trate de uma esquerda que pretende administrar prisões dentro da sociedade burguesa. Então o quê? Devemos dizer às mães que a esquerda não apoia a prisão dos assassinos de seus filhos porque isso é “reformismo”?, porque isso não resolverá o problema das chacinas nem a crise do capitalismo?
    A crise que o Brasil vive hoje é política. Ou será que ela não tem nada a ver com a possível prisão do Lula? Com a politização do judiciário? Com a possível interrupção do mandato do principal cargo da república? Nããooo… é uma crise capitalista, que vem lá de 1918! Vai cair! A Babilônia vai cair!
    Só posso imaginar que o leitor que fez tais comentários está em pleno desacordo com o último texto do PassaPalavra sobre a nação em cólera, já que para ele hoje vive-se a mesma crise que em 2008 (e talvez também a de 29, a de 70, quantas mais?), sem muitos elementos novos.
    Ignorar o elemento político é tão estúpido quanto elevá-lo acima de sua importância. Nisto estão lado a lado aquela esquerda que crê nas eleições como o método contemporâneo de luta pelo socialismo, como aquela que crê que as eleições são o principal obstáculo para a luta pelo socialismo.
    Mas eu entendo… aqueles que buscam desesperadamente por panaceias não podem deixar de ver em qualquer proposta uma panaceia insuficiente.

  16. A esquerda autonomista tem certas dificuldades em pensar o Estado. Ainda bem que não faço parte dela!

    As perguntas retóricas sobre chacinas são escárnio – não precisam de resposta. Contudo, como elas, as chacinas, se encaixam na totalidade de um Estado autocrático de burguesia débil?

    A pergunta que fica é: de onde vem a crise política? Por que há frações da classe dominante que querem passar por cima do PT (utilizando, como bem colocado por ti, Lucas, manobras condenáveis até do ponto de vista ‘republicano’) em favor do programa ultra-liberal do PMDB? De onde surgiu a (suposta) necessidade de “ajustes estruturais”?

    A burguesia acordou de mau-humor e resolveu puxar o tapete de Dilma ou um governo com certa base social de trabalhadores passou a ser um entrave na sua sede de acumulação em tempos de relativa seca?

    Se por crise é considerado um repentino cataclismo, não estamos. Mas e por detrás da aparente normalidade?

    Não tenho problemas com eleições – até voto, até no PSTU. Só acho que devemos levar em conta os limites incontornáveis da luta parlamentar (algo que nem você, nem o PSTU ignoram, tenho certeza). O problema é: no momento, é uma falsa solução. Se nem nas ruas a esquerda classista tem força, por que o teria no jogo marcado das eleições? Ou, seguindo o relato de Léo Vinícius, por que o governo eleito seria mais frágil que o do PT? A nação em cólera quer a queda do governo, prisões etc – uma vez ele no chão, deve voltar as suas cavernas…

  17. Diferentemente do comentarista que assina “Panaceia, eu também quero a minha” a minha tragédia é pertencer a esta esquerda autonomista e constatar a nossa incapacidade de apresentar ao proletariado uma estratégia anti-estatal consequente para que exista o “terceiro campo” na cena pública da política. Particularmente em momentos como esse que o Brasil atravessa caracterizado pela divisão das classes dominantes expressa pela conformação de dois campos capitalistas: o dos gestores de esquerda (governismo) e o dos gestores de direita (direita tradicional).
    A ausência desse terceiro campo faz com que duas operações ideológicas (ocultamento) montadas pelo governismo exerçam uma atração “irresistível” para setores que, sendo oposição ao governo em suas intenções e práticas, acabem se integrando a ele. Exemplos típicos são o PCB e a CAB. O primeiro por ser ainda adepto da velha tática parlamentarista do bolchevismo (no Brasil, talvez a única exceção dentro do bolchevismo que não a adota sejam os maoistas). A segunda porque depois de tantos anos militando no interior de instituições irreversivelmente recuperadas pela social-democracia petista (MST, CUT e quejandos) não pode exercer a independência política plena pq disputa “a mesma base” do governismo.
    E que operações ideológicas são essas?
    1) A tese do “golpe” contra o governo Dilma quando os mecanismos de impedimento, renúncia, antecipação de eleições, eleições gerais estão constitucionalmente previstos no ordenamento jurídico brasileiro e – curiosamente, segundo tal esquema ideológico – ninguém menciona que, na época do impedimento de Collor, ocorreu um “golpe de esquerda” antidemocrático contra o seu governo; e 2) a tese da necessidade de “defesa da democracia” quando esta goza de invejável saúde e tem um número maciço de defensores em todas as classes sociais. Quem está fora do “consenso democrático” não passa de um punhado de meia dúzia de gatos pingados (comunistas revolucionários numa ponta do espectro político e fascistas ideológicos na outra). Note bem: fazer parte do consenso democrático não necessariamente é um ato consciente. Basta não perceber a plasticidade da democracia em assimilar tanto as “liberdades democráticas” e os “direitos humanos” quanto os métodos mais consagrados do fascismo.
    Posto isso, sobra alguém com capacidade e vontade (uma das duas apenas não basta) para se lançar nessa tarefa de abrir um “terceiro campo”? até o momento quem se dispôs foi a CONLUTAS/PSTU. Obviamente que do seu jeito, com suas propostas tiradas do problemático (para ser gentil)método de análise da realidade que eles utilizam baseado no trotskismo morenista. E a esquerda autonomista o que faz? procura criar um espaço nesse campo para atuar de forma massiva com um conteúdo radicalmente distinto, apontando para a necessidade de auto-organização nos locais de trabalho, estudo e moradia? Não. Se dedica a desmascarar o PSTU. Como se qualquer pessoa com uma mínima capacidade de reflexão não percebesse que ele não possui implantação partidária suficiente para se beneficiar de sua própria proposta de “FORA TODOS: ELEIÇÕES GERAIS”.
    Restam duas opções para a esquerda autonomista: 1)”ficar em casa” fazendo a critica teórica de tudo que existe (iconoclastias) e reforçando o estereótipo que temos de ser o “grilo falante” da política – pior: do governismo, ou 2) se contentar em ser uma expressão na luta de classes do que o América carioca era para quem gostava de futebol na cidade do RJ: o segundo time de todo mundo e o primeiro time de quase ninguém.

  18. Amiga Panaceia,
    por mais que concorde com você, creio que é um desserviço deduzir o cenário nacional a partir de um esquema marxista. Seja com companheiros de base ou a população em geral, que te olharão com aquele olhar tipo “lá vem o lunático que fala que tudo é o capitalismo”, seja com os demais companheiros marxistas (creio eu que maioria aqui neste site), trazer esse tipo de esquema apenas repete a incapacidade de pensar e comunicar mais profundamente. A crise capitalista é o fundo de tudo o que está acontecendo. Legal, mas e aí? Como tratar as especificidades do momento? Porque dizer que o que precisamos é de mais luta de classes não resolve nada, nem para os companheiros de base, nem para os companheiros marxistas.

    Acho que você não entendeu meu ponto. A defesa de uma saída da crise política por meio de novas eleições não é uma aposta na luta parlamentar; assim como a prisão do policial não é uma aposta no sistema judicial burguês. Se o espírito fascista consegue uma vitória, certamente não voltará assim tão tranquilamente para suas cavernas, terá motivos e motivação para realizar saltos organizativos. A ideia de que “eles simplesmente voltarão às cavernas” parece ser uma forma de nos convencer a ficarmos nós mesmos tranquilos nas nossas cavernas da extrema-esquerda.
    Por fim, acho errado considerar que apenas “interessados diretos” (partidos) pedem novas eleições, como se fosse uma nova chance de ganhá-las. Creio que as organizações de classe podem e devem debater a saída para essa crise considerando racionalmente a melhor forma, mesmo que esta saída seja demandar do Estado algo de que estas organizações não terão participação direta. O que pensar então da ditadura? Será que foi um erro pedir por eleições diretas? Será que era apenas uma demanda capitaneada por partidos reformistas, uma falsa solução para o contexto que se vivia no país?

  19. Antes de mais nada peço desculpas a todos pelo comentário extemporâneo ao qual não pude resistir.
    Concordo com muita satisfação, Ian: presidente ou presidenta é uma questão inteiramente trivial. Amargamente estamos reduzidos a insistir nesse plano para tentar sair dele, isto é, a mostrar como através dele é desviado o que realmente está em jogo. Por essa razão, peço licença para aproveitar a rara ousadia do seu comentário que, não se deixando chantagear pelo senso comum dito feminista, devolve ao meu gênero o direito a ser tratado com inteligência. Desculpe, então, pelo tema fora de foco em relação à sua abordagem, mas se trata justamente de valorizar o caráter indireto e de passagem da sua crítica, que reinsere a questão na sua verdadeira dimensão, e assim tirar proveito da voltagem mais baixa que esse deslocamento propicia em comparação à prevenção e o Fla x Flu que reúnem as pessoas em torno da polêmica direta. Obrigada pela defesa do termo presidente, que refuta a imbecilidade e demagogia que levou embora a possibilidade de crítica séria à discriminação de gênero, desfigurada não só pelo chamado “culturalismo”, mas até mesmo quando invocada em nome do “classismo”, convertido em mais um rótulo que nada tem a ver com o ponto de vista objetivo da luta de classes, e que no melhor dos casos atenua a abordagem parcial e sexista do primeiro. A língua é dinâmica, sim, como argumentam muitos com acerto, mas histórica e espontaneamente dinâmica, ela não obedece a desígnios arbitrários destinados a reformá-la para fins “pedagógicos”, não serão concessões artificiais, ninharias, por isso mesmo, humilhantes, e por fim, sexistas – mas pela lógica sexista, o machismo expulso pela porta da frente volta pela janela — como “todxs” e “tod@s” que a igualdade entre os gêneros poderá ser levada a sério. Além do mais, é bastante óbvio que a forma comum de dois gêneros por si mesma carrega potencialmente essa igualdade, de maneira que, ao preteri-la, o sexismo, se fosse feminismo, daria um tiro no próprio pé, pois enquanto a língua já admite, na ocorrência da forma comum de dois, a igualdade entre os sexos, em lugar de promover o pressuposto igualitário, o pseudofeminismo, ao contrário, vai em busca de uma inabitual forma linguística excludente, que antes contraria o fato, que fala por si mesmo, de que uma mulher ocupa o posto máximo da nação, e põe em dúvida esse direito sugerindo seu caráter excepcional ao vinculá-lo a um termo desnecessariamente inusitado e ratificando, paradoxalmente, a ideologia da oposição entre os gêneros ao privilegiar a flexão linguística – cegamente na contramão do clamor LGBT contra essa determinação ideológica –, adotando uma conduta perfeitamente convergente com o chauvinismo machista. Essas e outras “soluções”, no fundo, apenas desmerecem o gênero feminino a título de enaltecê-lo, de fato, através da apologia à fêmea, o sexismo faz aquilo que mais odeia: “passa pano” pro machismo que se oculta – ou se desconhece – por trás da demagogia. O que se encobre é o fato de que o machismo não é uma deformação de conduta masculina de ordem cultural, como se disse muitas vezes, nem tampouco moral, como faz supor a pretensão mais veladamente autoritária de “corrigi-lo” abstratamente pelo ponto de vista crítico de classe; a primazia masculina é um princípio de opressão social baseado na ideologia da oposição irredutível dos gêneros que vigora em proporção direta à brutalidade da sujeição dos indivíduos aos interesses do capital e, por essa razão, atinge fundalmente as classes mais pobres e, nestas, diretamente as mulheres, sem poupar em absoluto os homens; uma opressão reproduzida por homens e mulheres pertencentes, principalmente, às próprias camadas sociais que mais vitimiza, como é característico da lógica da coisa – lembremos que, na sociedade de classes, é de regra que os oprimidos reproduzam selvagemente a opressão internalizando-a e impingindo-a uns aos outros, a decorrência mesma da mutilação que sofreram.
    No séc. XIX e até o fim da Segunda Guerra a crítica direta ao machismo cumpriu o papel de desmistificá-lo, daí em diante, com o progressivo abandono do marxismo e a pá de cal na esquerda em Maio de 68, as lutas sociais assumem falsas formas de contestação, de tal maneira que, hoje, mais do que nunca, o abrandamento do machismo está vinculado estritamente ao acesso aos bens sociais e à cultura. A rigor, o capitalismo não tem necessidade do machismo e, sim, do preconceito. O ataque direto ao machismo não atinge obrigatoriamente o capitalismo, e hoje ele converge antes com o reformismo. Este, porém, abstendo-se de atacar as bases do sistema, só pode contradizê-lo superficialmente, seu poder de transformação limita-se àquilo que, segundo a conjuntura, convém ao poder. É por isso que a reforma linguística é falaciosa e machista. A expressão do universal pelo gênero masculino reflete a violência histórica cometida contra as mulheres, não é a língua que deve ser negada, mas a realidade material que é o seu lastro, a linguagem “maquiada”, descolada da experiência, antes desmente e ridiculariza aquilo que afirma, funcionando como um mero consolo para a permanência da desigualdade; cada um dos princípios da rivalidade de gênero que o sexismo pretende inverter em favor da apologia do feminino sustenta-se na prática machista, que continua sendo essencial ao capitalismo, e reconduz novamente o sexismo, que, por sua vez, nada tem de justo, à supremacia masculina.

  20. Concordo com o Breno,Cristina. Sua reflexão merece um lugar mais destacado que um comentário : ). Se você achar que vale (eu diria que sim) poderia brindar-nos com um texto aqui, ou um artigo… Algo assim.

  21. OFF-PITACO
    Uma leitura – mesmo pop & diagonal, nada sintomal [:-D}] – de Émile Benveniste (Problemas de lingüística Geral vol I CAPÍTULO VI) talvez ajudasse…

  22. Obrigada, Ian e Breno. Tenho vontade de fazer isso sim, é questão de combinar.

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