Os últimos acontecimentos poderiam estar a nos servir como demonstração cabal da fragilidade dos projetos políticos que se ancoram no Estado e sua expressão política moderna, a democracia. Por Pedro & Paula
Desde o caso do “mensalão” o campo político petista tem usado um repertório de denúncias quanto ao caráter “golpista” de toda e qualquer investida política que ameaçasse abalar a até então indiscutível estabilidade do pacto social que sustenta seu governo desde 2003. Se apenas em 2009 o então presidente Lula admitiu publicamente a tese da tentativa de golpe, os movimentos governistas vinham agitando essa tese há muito mais tempo. Denúncias sobre a “ameaça golpista” sempre se fizeram presentes nesses meios, mesmo nos momentos áureos da “Era Lula”, quando grassava a relativa calmaria social resultante da lua de mel entre governo, movimentos sociais e diversos setores das classes dominantes, incluindo órgãos da grande imprensa que, apesar de terem sido – e ainda serem – agraciados com vultosas verbas publicitárias governamentais, passaram a ser referidos como o “PIG” (Partido da Imprensa Golpista).
Esse discurso assumiu um tom mais agudo quando a direita inaugurou suas mobilizações de rua durante a “Revolta dos Coxinhas”, a virada reacionária dos protestos de rua em junho de 2013 (por exemplo, aqui). Após as eleições de 2014 e o início dos protestos exigindo o impedimento da presidente, iniciados poucos dias depois do pleito e ganhando força no início de 2015, a alegação de um golpe em curso atingiu uma estridência ensurdecedora (um exemplo, aqui). Inflamada pelas investigações da operação Lava Jato, a nação em cólera foi conquistando a hegemonia das ruas, pretendendo levar adiante uma contrarrevolução sem revolução. Comparações com 1964 tornaram-se comuns, certamente favorecidas pelas palavras de ordem levantadas, nas manifestações antigovernamentais, em defesa de uma intervenção militar contra o governo. Na medida em que avançam as articulações em favor do impedimento no Congresso Nacional, favorecidas pelas revelações da operação Lava Jato, verifica-se um fortalecimento da tese do golpe em curso.
Certamente, o golpe é uma das alternativas apresentadas por frações das classes capitalistas na luta pelo poder, e sua defesa cresceu nas ruas à medida em que as ações institucionais da oposição contra o governo goravam. Qualquer neófito em política sabe, entretanto, que articulações golpistas, para serem bem-sucedidas, são arquitetadas em círculos políticos e econômicos muito altos, jamais abertamente, portanto muito longe dos olhos de simples mortais. Mas qual é a real possibilidade de um golpe de Estado no Brasil? E a quem interessa?
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que não estamos falando de um país qualquer, e sim de uma das 10 maiores economias do mundo, totalmente integrada ao capitalismo global. Uma das maiores exigências dos capitalistas é exatamente a segurança jurídica e institucional que desde a infame Carta ao Povo Brasileiro em nenhum momento foi ameaçada pelo campo hegemonizado pelo PT à frente do governo. Nenhum dos players do capitalismo transnacional defendeu, abertamente ou nas entrelinhas, um golpe; ao contrário, tanto o golpe quanto o impedimento vinham sendo rechaçados, considerado “uma má ideia” nas palavras do jornal The Economist menos de um ano atrás.
Dificilmente também se pode falar por aqui de elites nacionais ávidas por substituições de governo e muito menos sedentas por rupturas na democracia constituída. Até um ano atrás a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) defendia que o impedimento não era o melhor caminho pela instabilidade institucional que geraria, porém admitia que o governo só poderia continuar caso conseguisse romper com sua paralisia institucional e retomar o crescimento da economia. Posição similar tomaram entidades empresariais como o Conselho Nacional de Indústria, Transportes e Saúde. Para a Anfavea (Associação nacional Fábricas de Veículos Automotivos), única entidade empresarial a se declarar abertamente contrária ao impedimento na época, o impasse político era ruim porque atrapalhava a aprovação de medidas do ajuste fiscal. Todas essas entidades tiveram posicionamento cauteloso e, claramente, deram chances para o governo eleito mostrar que era capaz de recriar algum tipo de governabilidade.
Apesar de aprovar várias medidas do ajuste fiscal, o governo federal não deu conta desse recado, e em 2016 a situação se complicou. A OAB, mudando de posição, chegou a aprovar por unanimidade uma declaração de que “Dilma não podia mais governar o país” e deveria ser retirada constitucionalmente – o que só havia ocorrido em 1992 quando Collor foi destituído. Outras entidades, se não apoiaram abertamente a renúncia ou impedimento como a FIESP, lançaram votos de desconfiança contra a presidente. Assim, de apoios reticentes, o governo passou a não ter nenhuma entidade se manifestando abertamente pela sua manutenção. A defesa da retirada da Dilma nessa situação aparece como expressão de um interesse na estabilidade institucional que o governo parece incapaz de manter, e não de uma ruptura.
A defesa da tese do golpe fica mais enfraquecida diante de dois elementos. O primeiro consiste em analisarmos a conjuntura olhando para algo além de nosso próprio umbigo. Se nos voltarmos para os vizinhos latino-americanos, principalmente a Venezuela e a Argentina, ambos sob governos ditos de esquerda, perceberemos que o embate entre a esquerda e a direita chegou a níveis muito mais tensos, inclusive com confrontos de rua constantes no primeiro deles, cujo governo atrai não somente o ódio das elites locais (muito mais que no Brasil, inclusive), mas também o de outros governos internacionais. É um país muito mais frágil institucional e economicamente que o Brasil. Já na Argentina, a direita vai às ruas com muito mais força e constância que no Brasil, e por muito mais tempo. As ações de Cristina Kirchner foram tão ou até mais desastrosas que as de Dilma, e nem por isso a oposição optou pelo golpe.
Mesmo com os agudos confrontos entre direita e esquerda, a ordem institucional foi mantida em ambos os países. Na Venezuela, o presidente continua a ser Nicolás Maduro (o sucessor de Hugo Chávez) e, na Argentina, a direita derrotou o governo de esquerda eleitoralmente, por margem de votos muito parecida com a resultante das eleições brasileiras de 2014. O contexto latino-americano aponta para o fim de um ciclo de governos de esquerda, quando seu papel de gestores de crises já não se faz mais necessário, ou as novas situações sociais por eles criadas geram contradições sociais e políticas insolúveis nos termos dos arranjos políticos e econômicos que lhes deram origem. Embora tenhamos os casos das destituições de Manuel Zelaya da presidência de Honduras, em 2009, num golpe ao estilo clássico; e de Fernando Lugo, da presidência do Paraguai, em 2012, em um processo de impedimento que foi considerado ilegal e ilegítimo pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um golpe no Brasil inauguraria um ciclo de rupturas institucionais na América Latina para as grandes nações, quando o contexto já aponta para desfechos mais sóbrios. Basta ter atenção às idas e vindas entre Congresso e Supremo Tribunal Federal (STF) em torno do rito do processo de impedimento para ver que aqui a situação ainda é diferente do que se passou em Honduras e no Paraguai e menos grave que os contextos argentino e venezuelano.
O outro elemento é o fato de a forma atual dos Estados – como resultado de inúmeros conflitos entre classes sociais e sucessivas assimilações das lutas – ter sido desenvolvida pelas classes capitalistas a um tal ponto de sofisticação institucional que tornou possível realizar drásticas modificações nos arranjos de poder a partir de dentro do próprio Estado, sem que isto implique em quebra da ordem. Medidas de exceção são constantemente alargadas, podendo ser aplicadas a amplos setores sociais ou nas disputas palacianas, sem que seja necessário recorrer a golpes, ou, para ser mais preciso: à dissolução de governos eleitos dentro dos limites da ordem democrática. O impedimento de governantes sequer seria uma medida excepcional, pois é prevista dentro do ordenamento jurídico e constitucional, requisitada inúmeras vezes pelos grupos oposicionistas, independentemente da coloração das suas bandeiras, e aplicada uma vez no Brasil contra o primeiro presidente eleito dentro das normas da nova ordem constitucional. Também na segunda metade dos anos 1990, cabe lembrar, tanto o PT quanto a esquerda como um todo tiveram como linha de atuação o “Fora FHC”, e em nenhum destes casos a posição política foi caracterizada como golpe ou golpismo; pelo contrário, o recurso é sempre tido como um dos instrumentos fundamentais daquilo que os teóricos do Direito e do Estado chamam de “democracia semi-direta”, assim como o recall político, as leis de iniciativa popular, o plebiscito e o referendo.
Nesse sentido, se hoje o cerco se aperta para o PT, não é por uma diferença substancial no trato que lhe é dado em contraste com o trato que ele diariamente, em esferas maiores ou menores, oferece aos seus oponentes, mas simplesmente por uma situação desfavorável da correlação de forças em que ele se encontra hoje no cenário político institucional e fora dele. O problema aqui é de quantidade, não de qualidade. O PT vai sendo derrotado dentro das regras do jogo que ele próprio legitimou e topou jogar, que atende pelo nome de democracia eleitoral e parlamentar. Nenhuma das manobras que estão sendo lançadas agora contra ele estão fora do repertório diário dos conchavos palacianos inseparáveis desse sistema político. O que espanta, a nós e a eles, neste momento, é que adensaram-se o jogo e suas excepcionalidades de sempre, alcançando proporções inimagináveis, ao ponto de atingirem até a figura da presidente.
Numa acepção muito genérica, poder-se-ia argumentar que toda articulação pública ou conspiratória que recorre a recursos legais e ilegais para conservar ou trocar governos constituiria uma modalidade de golpe. Mas, como se diz, conceitos que tudo abarcam perdem a força explicativa. Diferentemente, compreendemos que só há golpes quando um processo político abrupto envolve verdadeira ruptura institucional, procedendo à suspensão de poderes constituídos, supressão generalizada de garantias constitucionais até o revogamento completo de um ordenamento jurídico-político anterior. Se se toma como golpe todo tipo de ação combinada entre diferentes instituições que lançam mão de artifícios legais e ilegais pontuais para substituir um grupo por outro oposicionista, então é-se obrigado a concluir que também o grupo da situação (no caso, o PT) opera golpes cotidianos e diários para se manter no poder. Ou alguém entre nós entende que a relação que o Planalto mantém com empresários, jornalistas e blogueiros progressistas e mesmo magnatas da comunicação (veja-se o caso da TV Record, por exemplo), lideranças da sociedade civil, juízes e magistrados nomeados é, no que toca ao conteúdo, tão diferente daquela que a oposição agora se vale? A questão é que, no jogo da política palaciana, todos esses expedientes são válidos, desde que se disponha de suficiente correlação de força para impô-los. Violações da legalidade nas esferas de poder são artimanhas abundantemente corriqueiras tanto para a substituição de um poder por outro quanto para a conservação do que lá está – este último, diga-se, em condições ainda mais favoráveis. Apenas numa concepção idealista/formalista de democracia é que estas manobras ficariam de fora como desvios, e não como ingredientes constitutivos do organismo.
Para além de seu aspecto legal ou ilegal, outra questão é verificar se a movimentação política objetiva ou não colocar no poder alguém que não está na “linha natural de sucessão” dentro de um regime. A diferença é sutil, mas importante. Em caso de efetivação do impedimento neste momento, não assumiria um grupo político alheio ao rito eleitoral, em tese, submetido à soberania popular, mas o vice-presidente; no caso de impugnação da chapa, assumiria o atual presidente da Câmara ou do Senado. Em ambas as situações, por maiores que sejam as repulsas que nos causam estes nomes, tratam-se de representações políticas nomeadas pelo voto popular, em respeito aos preceitos e às instituições democráticas. É notório, contudo, que o espaço está aberto tanto para as soluções legais quanto para as soluções de força, mas parece que as forças oposicionistas calculam que um golpe de força teria custos políticos muito mais altos que a via da manipulação para o impedimento, seguindo a “linha natural de sucessão”, que lhes favorece. Seria o que alguns defensores da tese do golpe em curso passaram a chamar de “Golpe Branco” em oposição ao “Golpe de Estado”.
Entretanto, mesmo o impedimento nunca é um julgamento técnico – se a corrupção praticada pelo governante torna-o passível ou não de destituição – mas político, no qual se avalia a força social que determinado governo tem e pondera-se os custos de substituí-lo. Só aconteceria, a exemplo do que se passou com Collor em 1992, na medida em que o governo deixasse de contar com o apoio de setores significativos dos trabalhadores e, mais importante, dos capitalistas. O governo levou às ruas aproximadamente 1 milhão de pessoas na última semana, e, independente de ter sido uma defesa do governo ou das instituições, este 1 milhão de pessoas exigia a permanência do governo. Essa força demonstrada nas mobilizações vermelhas será suficiente para barrar um processo de impedimento? Por outro lado, a economia, mesmo em crise, não entrou em colapso, e o governo aponta para mais concessões aos capitalistas, além de uma proposta de “readequação fiscal” para “voltar a investir”, anunciada pelo ministro da Fazenda em 24 de março, o que demonstra que ainda há margens para manobras para o PT tentar se sustentar no poder.
Estado de exceção expandido
Como já apontado, um golpe não pode ser caracterizado por pequenos desvios nas regras constitucionais. Essas rupturas acontecem cotidianamente, e são impetradas contra setores populares mais frágeis. Não custa lembrar que faz dois anos desde que Cláudia Silva Ferreira teve seu corpo arrastado pelas ruas por uma viatura policial, e que arbitrariedades policiais são a regra nas periferias das grandes metrópoles, onde o extermínio da população pobre é encoberto enquanto “autos de resistência”. Do mesmo modo, operações não previstas legalmente são usadas de modo sistemático contra qualquer um que questione com maior veemência as instituições ou sua legitimidade, em especial organizações de classe em luta contra o totalitarismo do capital nos locais de trabalho, o que tem sido denunciado pela alcunha de que o Estado e suas leis seriam a “testa de ferro” do capital.
É certo que chegamos ao ponto de um juiz federal de primeira instância ter ordenado a escuta telefônica de um ex-presidente e divulgado as escutas para a imprensa apenas algumas horas depois de terem sido gravadas, resultando na exploração midiática e política de conversações que envolviam, inclusive, a Presidente da República. Mas isso não foi suficiente para depor o governo, apesar de colocar nas ruas uma nação em cólera, ou mesmo para apressar o processo de impedimento já em curso.
De outra parte, crescem as práticas de violações de direitos por dentro da própria constitucionalidade, com a criação de leis que, embora atinjam sem qualquer disfarce direitos fundamentais dos cidadãos, são plenamente aceitáveis dentro dos marcos legais e políticos hoje estabelecidos. Um exemplo: em fevereiro deste ano o STF suspendeu a presunção de inocência, permitindo a prisão de réus antes de se esgotarem todas as vias recursais (declarando-os, assim, culpados antes mesmo de uma sentença transitada em julgamento). Anos atrás, o mesmo STF julgou os réus do mensalão tomando por base uma interpretação da chamada Teoria do Domínio do Fato, uso questionado por um de seus criadores, o jurista alemão Claus Roxin. Dois dias antes do maior ato em defesa ao governo ir às ruas, a presidente Dilma sancionou a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260, de 16 de março de 2016). Seis dias depois, a Câmara dos Deputados aprovou uma Medida Provisória que punirá com maior rigor a obstrução de vias por carros e “pedestres”, leia-se manifestantes. E como se não bastassem as novas leis e reinterpretações das atuais, práticas de exceção são cotidianamente perpetradas pelas autoridades de todos os níveis e localidades, seja ilegalmente, através do assassinato sistemático de jovens pobres e negros (na periferia ou em qualquer outro canto), seja através de políticas públicas, a exemplo da dita “pacificação” das favelas.
Estas práticas, que estão a se espalhar pelo mundo todo, ou ficaram evidentes de tão utilizadas, chegam agora no Brasil a níveis nunca antes vistos desde que se instituiu a atual ordem constitucional em 1988. Está-se diante, isto sim, de um alargamento, e até mesmo da legalização, de expedientes de exceção que já se realizam em outras esferas. A zona limítrofe entre o Estado de Direito (ou de Exceção) e o Golpe de Estado escancarado está exatamente nesta possibilidade: estender manobras excepcionais no interior da ordem, sem que isto signifique rupturas institucionais, suspensão de poderes constituídos ou revogação do ordenamento político-jurídico anterior. Para manterem-se de pé sem romper com sua promessa de democracia, as instituições alcançaram um alto grau de elasticidade e sofisticação, no qual a ilegalidade se legalizou e no qual todo e qualquer direito pode ser relativizado.
Sem dúvida, está em curso uma reconfiguração política do governo, em consonância com a mudança nos arranjos econômicos entre empresas e Estado depois do desmantelo feito pela Operação Lava Jato (um esquema que envolvia articulações entre Partidos, empreiteiras, empresas públicas ou de economia mista e bancos estatais), mas ainda não se concretizou a forma como tal mudança se dará e nem está claro qual será a face do novo arranjo político e econômico. De todo modo, parece que nem os prognósticos mais temerosos cogitam um Golpe à moda antiga com tomada de poder pelos militares ou qualquer outra forma de assalto: um governo pode ser deposto legalmente, deixando em seu lugar políticos também legalmente eleitos, e em dois anos acontecer novas eleições com as mesmas regras e a mesma Constituição.
Por outro lado, se bem compreendidos em seu conjunto, os últimos acontecimentos poderiam estar a nos servir como demonstração cabal da fragilidade dos projetos políticos que se ancoram no Estado e sua expressão política moderna, a democracia, como espaços estratégicos para o erguimento das trincheiras anticapitalistas. Mas, ao que tudo indica, uma grande parcela da esquerda tem preferido prolongar uma vez mais esta ilusão ao mesmo tempo em que ela se desfaz sob seus pés.
Excelente texto!
serve de referencia para começar a remar contra a corrente democrática que consome a esquerda autonomista. Quem sabe agora, com uma leitura mais ajustada do momento político, tenhamos mais claramente a compreensão de que a Democracia é o Estado. Em termos de correntes políticas, contra ela apenas aquelas que querem uma sociedade sem Estado (comunismo e anarquismo proletários) ou aquelas que querem a estatização da sociedade (fascismos).
Em termos práticos, não me acrescentou esse texto. Tem a discussão conceitual se é golpe ou se não é golpe, que é o que menos importa em termos práticos. Pelo que aponta o texto os autores não consideram golpe o que ocorreu em Honduras e no Paraguai. O que esse texto transparece é mais uma tentativa de fundamentação da posição “lavo as minhas mãos”, que é uma dentre várias que aparece na extrema-esquerda.
E como sempre, os exemplos de violência estatal nas periferias ou os retrocessos operados nos governos do PT servem, ou como fonte de ressentimento para lavar as mãos, ou como forma de não se importar com mais um avanço do retrocesso.
É como se numa guerra um dos lados dissesse: qual o problema de avançarem sobre mais aquele território, já que afinal eles já nos tomaram tantos outros?
É a esquerda que acha que vai avançar dando de ombros pros avanços do inimigo. E que acha que quando esse avanço se dá também sobre o PT, não se trata de um avanço do inimigo.
Sim, infelizmente uma parte da esquerda vai continuar querendo acreditar em mudanças substanciais pela via eleitoral e de cima para baixo, como aponta o último parágrafo. Mas não acreditar nessa via institucional deve significar dar de ombros para o que estamos vendo diante dos nossos olhos a nível estatal e social no momento no brasil, a tal nação em cólera e o “golpe”?
Olá pedro e paula.
Com base no texto de vocês, é correto afirmar que esse ‘golpe’ (o que é questionável) esta sendo projetado, posto que o pt perdeu sua capacidade chauvinista de ‘mediador’ ?
“Tal como o Galileu de Brecht, tentamos avançar palmo a palmo. ‘Não afirmemos logo que se trata de manchas solares; procuremos primeiro demonstrar que não são peixes fritos‘. Com ‘olhar árduo e fecundo‘, desenvolvendo em nós ‘o olho estranho‘, observemos a lâmpada oscilante da luta de classe hodierna: quanto mais maravilhados ficarmos ao olhar as oscilações, tanto mais próximos estaremos da descoberta das leis.” (Mário Tronti em Operários e Capital).
Que é o olho estranho, senão o pensamento crítico?
Mario Roberto Santucho, um dos principais quadros do Partido Revolucionario de los Trabajadores (PRT) e do Ejército Revolucionario Popular (ERP), escrevia em 1974 o texto “Poder Burgués y Poder Revolucionario”, onde descrevia a tese de bastante difusão no marxismo latinoamericano, sobre as duas formas do poder burguês na região: regime parlamentar e ditadura bonapartista. Sem dúvidas que essa tese tem maior eco em uma sociedade como a argentina, que viveu nada menos que 6 golpes de Estado durante o século XX [e no momento de redação de seu texto, Santucho estava a 2 anos da pior de todas as ditaduras, mas já vivendo os mecanismos repressivos que então seriam radicalizados].
Poder identificar que o regime parlamentar e o ditatorial compartilham uma essência capitalista é essencial para fazer a crítica dos setores eleitoralistas da esquerda, e da capitulação dos setores avançados que aceitam depor a luta radical em favor do acordo democrático. Esse era o contexto da liderança do PRT-ERP ao fazer a crítica aberta aos Montoneros e demais organizações armadas da esquerda revolucionária que aceitaram os termos do fim da ditadura do fim dos anos 60′ em troca da volta de Perón e pela candidatura de Cámpora, que eventualmente ganhou mas não durou muito (e nem implementou o programa socialista que havia sido sua bandeira). Mas claro, estamos falando de um contexto onde a luta anti-capitalista tinha uma expressão não-eleitoral de peso considerável.
Como no Brasil não há movimento armado combatendo qualquer uma das distintas modalidades de regime burguês, creio que é ponto pacífico que qualquer postura da extrema-esquerda se pauta mais que nada no entrincheiramento no cenário “menos pior”.
Parece que a força dos eventos e da sedução governista obriga estes setores a refletirem sobre a natureza do que está ocorrendo, o que é bem positivo se for pensado não como conjecturas “ad hoc”, mas para acumular compreensão de como funcionam os regimes burgueses. Não faltam oportunismos e grupos que tentam surfar na onda da popularidade da “luta contra a corrupção”.
Mas como o texto é de análise, creio que é errado achar que ele ajudará com um apontamento “pragmático”. Isso ficará a cargo de cada organização ou militante de base em seu contexto, certamente que depende do momento de cada um. O que não serve é um grupinho de 12 marcianos propor saídas rupturistas, nem que este mesmo grupinho se junte a cem mil reformistas para sentirem-se parte de uma luta maior.
https://www.marxists.org/espanol/santucho/1974/23-viii-1974.htm
Excelente texto. Acertou onde deveria. Um exemplo disso é o comentário do Leo Vinicius:
“E como sempre, os exemplos de violência estatal nas periferias ou os retrocessos operados nos governos do PT servem, ou como fonte de ressentimento para lavar as mãos, ou como forma de não se importar com mais um avanço do retrocesso.”
Sua lógica é absolutamente contraditória, e serve de linha auxiliar para os defensores de carteirinha do governo. Exige que abandonemos as reflexões próprias e críticas pois “não há mais tempo a perder”. Façamos sem pensar então. “Defendamos o Estado de Direito contra o retrocesso”. Ótimas palavras para se por em conjunto, mas ignoram completamente a história recente e o momento que vivemos. De que forma os desesperados querem a defesa do governo? Indo a atos de rua, vestindo sua camiseta vermelha e gritando pela democracia? Usando da criatividade e ousadia que só os jovens da geração ALCA sabem usar?
Queridos, se em tal ponto fosse possível a classe trabalhadora desenvolver formas de luta e organização que possibilitassem intervir em um processo nacional de disputa entre empresas transnacionais em uma das maiores economias do mundo, nós não deveríamos ter um horizonte imediato radicalmente diferente da defesa de um dos lados dessa disputa? No caso um dos lados usa a seu favor o discurso de defesa do “Estado democrático” como versão negativa do discurso “pelo fim da corrupção” forjado pelos seus inimigos. Ambos são discursos fortalecidos e escolhidos justamente pela universalidade de sentido que podemos atribui-los, dando um significado muito mais emocional que racional para a questão e com isso facilitando o controle das massas para os fins desses dois interesses.
Todos esses gritos desesperados não passam de uma grande peça de teatro no final das contas. Os defensores do impeachment, defensores da democracia e a parcela de pessoas que não se coloca em nenhum dos lados da disputa encontram-se no mesmo barco. Não há organização real da classe que consiga impedir efetivamente retrocessos em nível federal. Apesar de terem aumentado as expectativas nos últimos anos em relação a novas formas organizativas e a construção de uma estrategia que seja critica ao passado recente, ainda engatinhamos e estamos perdendo quase todos os jogos de goleada, e essa tem sido a regra. A verdadeira lavagem de mãos é fingir para si mesmo que se está fazendo alguma coisa nesse cenário colocado, quando não se está fazendo nada mais do que encenar para um público que já se cansou há muito dessa peça.
Leo, seu comentário é muito parecido com aquele que fez em outro texto recente sobre o mesmo assunto aqui no site (http://www.passapalavra.info/2016/03/107776/). Você diz que até concorda com as análises, mas acha que neste momento elas só servem, na prática, para justificar a nós mesmos que fiquemos parados frente à ofensiva conservadora.
Definir se há ou não um golpe em curso é uma discussão meramente conceitual, formal? Desimportante em termos práticos? Me parece, ao contrário, que a análise que os companheiros apresentam neste texto é bastante necessária. Em termos práticos: sem esse tipo de debate ficaremos, aí sim, parados – ou, muito pior, acabaremos sendo mobilizados pelo jogo do inimigo.
Ora, o discurso do “golpe” é hoje um dos principais artifícios evocados pelo governo para mobilizar os setores populares em sua defesa, mesmo os setores mais críticos. A mais importante consequência prática da análise do texto é desmistificar esse discurso. Se a crítica te parece inútil, é justamente porque entende que a única ação possível hoje é reforçar as mobilizações de defesa do governo (que assim o são, independentemente do véu sob o qual se apresentam).
Curioso que, para mim, longe de embasar um comodismo, o texto trouxe um incômodo: se não há golpe em curso, o que justifica nossa paralisia ou a vacilação diante da atual conjuntura? Não seria justamente este um momento chave para avançar em uma ação de classe independente? Elaborar e experimentar o que seria hoje uma ação desse tipo, eis o desafio que está colocado à militância crítica. Definitivamente não está dado, e talvez não se realize. Sem ilusões. Tenho certeza que que se abre um período muito adverso – e tenho certeza que assim será sem Dilma ou com Dilma. Mas, frente ao cenário de fechamento de horizontes, só se colocando esse tipo de problema é possível construir algum horizonte para além das ilusões que se desfazem sob nossos pés.
Samuel,
Interessante que você me acusa de ignorar a história recente e o momento que vivemos. Bem, estamos vendo outra realidade pelo jeito. Pelo jeito o momento recente é o que existem forças sociais autônomas, anticapitalistas, articuladas nacionalmente, capazes de empunhar a bandeira revolução e não de direitos da democracia burguesa para frear o avanço da direita. Essa realidade realmente não faz parte do meu mundo.
O público cansou da encenação? Será um público cansado e ainda mais acuado. Não é porque a criança sempre encena “olha o lobo”, que o lobo não aparece um dia.
Caio,
lendo o seu comentário, transparece para mim um receio de entrar no “jogo do inimigo”. Um medo?
O Rodrigo Nunes bem apontou (aqui https://www.facebook.com/orango.quango/posts/10209525956652325 ), que a história da criança que grita ‘olha o lobo’, sem que haja o lobo, tem seu sentido no fato de que uma hora o lobo de fato aparece.
Me parece que parte da esquerda ainda está no exercício teórico de afirmar que esse lobo continua sem aparecer, nem irá aparecer.
É interessante que quando a Dilma logo no início do seu segundo mandato lançou o pacote de maldades que reduzia direitos dos trabalhadores (como o seguro-desemprego por exemplo), os governistas se defenderam através da discussão conceitual. Não se tratava segundo eles de corte de direitos, mas mudança no acesso a benefícios. Agora é a extrema esquerda que busca na discussão conceitual afirmar que nada de especialmente ruim ocorre. Enquanto isso os trabalhadores, tanto naquele momento, como neste, vão se estrepar.
Caio, o argumento do “golpe” dessa vez saiu do governo, isto é, foi apara além dele. Não é só mais ele que grita “golpe”. Não é porque o governo o usa para se manter que de fato não está havendo golpe. A posição autônoma não é a posição contrária, é, exatamente, a posição que possui seus próprios critérios. E assim chegamos no ponto que com receio de ser instrumentalizado pelo PT parte da esquerda nega aquilo que até a OEA e o Mercosul consideraram que houve no Paraguai e em Honduras: golpe.
Claro que qualquer ação contra o golpe significa em maior ou menor medida um “reforço” do governo que está sendo “golpeado” (a menos que se responda o golpe com uma revolução, o que parece fora de horizonte). Mas qual luta não reforça algo ou uma instituição que idealmente não gostaríamos que existisse?
Eu não disse que a crítica é inútil, eu disse que a discussão se é golpe ou não é inútil. E é inútil não porque eu necessariamente visualize que a única luta possível é a de defesa do governo (embora em alguma medida, como não há força revolucionária, qualquer luta contra o golpe será em alguma medida, mesmo que indiretamente, de defesa da manutenção do governo – o que não significa que seja de defesa de suas políticas),mas porque o que importa são as consequencias para os direitos e possibilidades de organização dos trabalhadores ao cabo desse processo (chama-se esse processo de golpe ou de gestão democrática da crise).
Sobre a questão de uma terceira via, como vc bem apontou, minha opinião já está expressa no comentário ao outro artigo que vc linkou.
Considero os comentários de Samuel e Caio corretos e complementares. Vou tentar dar alguns passos adiante.
– Embora a conjuntura seja nitidamente desfavorável para a esquerda anti-estatal e não governamental(quando comparada com os 2 campos capitalistas em confronto), não o é para as posições situadas nos extremos do espectro político. Isso significa que, caso consigamos sair da paralisia e não sejamos esmagados, essa mesma conjuntura possibilita sairmos desse momento histórico com condições um pouco melhores em termos de inserção social.
– será um erro de graves consequências aceitar ficar no campo das instituições do governismo, aceitando a chantagem do “golpe” ideológico e do fictício ataque à democracia. Muito pior do que ficar em casa assistindo tudo pela internet.
– O tempo que o governo precisa para recompor os ritmos de reprodução ampliada do capital, tarefa que Lula está freneticamente a fazer, passa diretamente pela sua capacidade de reunir na tal FRENTE DO POVO SEM MEDO massas em quantidade suficiente a não deixar dúvidas de que o pacto social que o PT construiu nos últimos 14 anos ainda segue vigente.
Se falhar nessa tarefa, o governo cairá como um castelo de cartas pois se formará o “consenso” necessário entre os capitalistas da necessidade de sua substituição.
– Precisamos encontrar e instituir formas para participar do reforço de um terceiro campo que seja oposição a ambos os campos capitalistas. A CONLUTAS/PSTU tomou esta atitude corajosa e arriscada, mas de forma inteiramente distorcida propondo uma solução democrática e eleitoral (Fora todos: eleições gerais).
– Em minha região começamos a articular um BLOCO DE OPOSIÇÂO CONTRA TODOS OS GOVERNOS E TODAS AS DIREITAS para levantar as reivindicações de trabalhadores e estudantes e participar junto ao setor da CONLUTAS com total independência política dessa central e acumulando para a auto-organização nos locais de trabalho, estudo e moradia.
Do afirmado acima existem muitos desdobramentos, mas como evito comentários longos e a reflexão se faz necessária passo a passo (para que gere ações consequentes com ela), paro por aqui.
Acredito que a conjuntura nos põe fora do âmbito da atuação política que, de saída, pressupõe o governo petista como parte integrante do avanço na aplicação no país do receituário neoliberal para o qual, segundo as melhores interpretações, ele agora deixou de ser conveniente. Remeto ao artigo do Passa Palavra, “Nação em Cólera” – http://www.passapalavra.info/2016/03/107758 –: em que pese a opacidade, deveríamos procurar uma posição crítica própria para nos opormos ao atual estado de coisas. Explico-me:
O fato de que movimentos sociais inequivocamente antigovernistas, como Mães de Maio, e toda uma comunidade de intelectuais também reconhecidamente anticapitalistas e não alinhados ao governo, dentre os quais, inclusive sérios estudiosos do fascismo, defendam a tese de grave retrocesso iminente, mostra que a complexidade e a radicalidade das forças em jogo, no mínimo, impede um refutação suficientemente segura dessa ameaça. Ora, tornar uma iminente ameaça de fascismo alvo de “polêmica” é simplesmente ridículo. Ou somos perfeitamente arrogantes para acreditar que temos certeza o bastante de que todos os que até aqui foram consequentemente antigovernistas estão errados e “capitularam”, ou admitimos que a opacidade obriga a nos posicionarmos à altura do que está em xeque. Neste caso, se mais adiante, uma excelente conjectura como a de Pedro e Paula se mostrar correta, e me parece que isso é perfeitamente possível, ainda assim teremos tomado a única atitude que a história autoriza, e nenhuma grave consequência de nossa decisão impedirá de levar adiante a crítica implacável ao sistema; o inverso, como se sabe, não é verdadeiro.
É importantíssimo não perder de vista que o fascismo é irracional, ele não é coerente com qualquer conjuntura, pede apenas oportunidade; ele conta a seu favor com o próprio embrutecimento e a estupidez contraditória e suicida de sua horda. A grave citação abaixo me parece indispensável, apesar de longa, para dar todo o peso dessa característica:
“Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. Quantos foram os argumentos bem fundamentados com que os judeus negaram as chances de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão já estava clara como o dia! Tenho na lembrança uma conversa com um economista em que ele provava, com base nos interesses dos cevejeiros bávaros, a impossibilidade da uniformização da Alemanha. Depois, os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no Ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na estatística e na experiência, as declarações começando com as palavras: “Afinal de contas, disso eu entendo”, são os statements conclusivos e sólidos que são falsos.
Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua marca é a superioridade bem informada.
Adendo
A transformação da inteligência em estupidez é um aspecto tendencial da evolução histórica. Ser razoável, no sentido em que o entendia Chamberlain, quando, em Godsberg, chamava as exigências de Hitler de unreasonable, significa que é preciso respeitar a equivalência entre dar e tomar. Essa concepção de razão foi tomada com base na troca. Os fins só devem ser alcançados através de uma mediação, por assim dizer, através do mercado, graças à pequena vantagem que o poder consegue tirar observando a regra do jogo: concessões em troca de concessões. A inteligência é superada tão logo o poder deixa de obedecer a regra do jogo e passa à apropriação imediata. […]
A contradição que consiste na estupidez da inteligência é uma contradição necessária. Pois a ratio burguesa tem que pretender a universalidade, e, ao mesmo tempo, desenvolver-se no sentido de restringi-la. Assim como, na troca, cada um recebe sua parte, daí resultando, porém, a injustiça social, assim também a forma reflexiva da economia da troca, a razão dominante, é também justa, universal e, no entanto, particularista, isto é, o instrumento do privilégio na igualdade. É a ela que o fascista apresenta a conta. Ele representa abertamente o particular e revela assim as limitações da própria ratio, que insiste injustificadamente na sua universalidade. O fato então de que de repente os inteligentes são os estúpidos prova para a razão que ela é irrazão.
Mas o fascista também é atormentado por essa contradição. Pois a razão burguesa, de fato, não é meramente particular, mas também universal, e sua universalidade cai de surpresa sobre o fascismo, quando ele a renega. Os que tomaram o poder na Alemanha eram mais inteligentes do que os liberais, e mais estúpidos. O progresso em direção à nova ordem recebeu um amplo apoio daqueles cuja consciência não acompanhou o progresso, ou seja, dos falidos, dos sectários e dos tolos. Eles estão a salvo dos erros, na medida em que seu poder impede toda competição. Mas, na competição dos Estados, os fascistas não são só igualmente capazes de cometer erros, mas também com suas qualidades como miopia intelectual, obstinação, desconhecimento das forças econômicas e, sobretudo, com a incapacidade de ver o negativo e levá-lo em conta na avaliação da situação em seu conjunto, também contribuem subjetivamente para a catástrofe que, no íntimo, sempre esperam.” – Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, Zahar, p. 195-6, grifo meu.
Leo Vinicius anda tão governista que leu o que não existe. Aponte no texto onde está dito que não houve golpe em Honduras e no Paraguai. Está escrito exatamente o contrário!
Eu acho curioso essa narrativa do aumento do retrocesso. O PT articula há decadas o campo democrático-popular de modo a conseguir passar guela abaixo da classe milhões de retrocessos, desde a reforma da previdência até os ajustes fiscais dos últimos meses. A classe e suas organizações ficou totalmente desarmada depois do processo histórico encabeçado pelo PT de foco nas eleições e de pacto social com o capital. Daí se vem uma ameaça de golpe, isso só é possível porque esse campo desarmou a classe, ao longo de décadas de retrocessos nas lutas, tudo mais ou menos aceito/imposto à classe a troco das migalhas que agora os petistas ficam vomitando, como se essas migalhas não fossem uma forma sofisticada de ataque aos trabalhadores, reforçando a estrutura exploradora, um processo que custou nada mais nada menos que o mais importante: a autonomia de ação da classe. O retrocesso sob a batuta do PT é tão retrocesso quanto sob a batuta de um PSDB ou mesmo de um governo ditatorial-militar (algo que já ocorre nas periferias, no arranjo encabeçado pelo PT, e dentro de cada fábrica, na “democracia totalitária” dos locais de trabalho). Então não vou pra rua defender o inimigo PT nem mesmo contra o inimigo ditadura ou psdb ou pmdb ou o que for. Aliás é passível de dúvida se, do ponto de vista da retomada da autonomia da classe trabalhadora, ter como inimigo uma ditadura (e nem acho que seja o caso, dada a configuração geopolítica atual) seria tão pior assim do que ter como inimigo o PT e seu arranjo democrático-popular de organizações apassivadas.
Pablo,
Dizer que com PT ou sem PT não faz diferença é permanecer no âmbito da polêmica. Segundo uma parcela de peso dos que são nossos aliados faz diferença. Há uma evidente opacidade em torno da possibilidade ou não desse retrocesso, caso não sejamos uma vanguarda privilegiada que vê o que muitos de nós simplesmente não enxergam de maneira alguma. Esse contexto concreto pede mais do que simplesmente o cálculo das chances de fascismo.
Cristina, apesar da provocação eu não considero que seja o mesmo lutar em contexto de democracia e lutar em contexto de ditadura. Só quis curvar a vara até um extremo que não deixa de ser verdade, que é o de que lutando em contexto de democracia com PT no poder e organizações atreladas ao Estado e dentro da órbita ideológica, política e econômica do programa democrático-popular, estamos mal, muito mal, e de que isto por si só já basta para não engrossar fileiras com os inimigos, seja qual for o inimigo em comum. Mas concordo, não é lá uma resposta que resolva ou saia do âmbito da polêmica.
Em tempo: não estou preocupado com qualquer possibilidade de intervenção com influência na conjuntura até o desfecho do impedimento de Dilma, pois sou consciente de que – de um ponto de vista proletário – tal possibilidade não existe.
O que me preocupa, e que devemos fazer desde já, se resume a tomar as atitudes necessárias para que uma resistência autônoma dos explorados possa existir depois desse desfecho. Qualquer que seja ele (em qualquer deles está certo que será pior para as classes não capitalistas). Aí sim, os alinhamentos que tomarmos nesse momento terão repercussões maiores ou menores para atingir este objetivo.
Acho que essa formulação acima, do Zé, é a mais pertinente. Na minha opinião cerrar fileiras com o governismo agora teria implicações negativas na construção da “resistência autônoma” depois, do ponto de vista moral e estratégico. Na nossa insignificância tudo que podemos fazer agora é manter nossa “identidade” e tentar juntar os caquinhos enquanto tentamos entender o quê nos atingiu, como e por que. Isso implica fazer resistências mais pontuais, do tamanho da nossa insignificância, ensaios de luta fora da estratégia hegemônica, para testar os limites dela e as possibilidades de se construir algo novo, tal como fizeram os secundaristas recentemente.
Ao Relendo,
No texto, os autores definem o que eles consideram golpe:
“Diferentemente, compreendemos que só há golpes quando um processo político abrupto envolve verdadeira ruptura institucional, procedendo à suspensão de poderes constituídos, supressão generalizada de garantias constitucionais até o revogamento completo de um ordenamento jurídico-político anterior”
A partir dessa concepção, de que vale dizer que em Honduras houve um “golpe ao estilo clássico” como dito na primeira parte do texto? Não creio que em Honduras tenha ocorrido nenhum dos critérios da definição de golpe dos autores. O que ficou claro em Honduras foi, como se disse na época, a inauguração de um outro tipo de golpe na América Latina, a através do Judiciários. No Paraguai os autores sequer afirmam que houve golpe.
Recomendo ao Relendo reler melhor o texto.
Pablo,
Esse seu último comentário acho que sintetiza bem algo que venho observando nas posições de certos libertários.
A preocupação é muito maior com a “identidade”, como vc mesmo aponta. Ou com ‘moral’.
Interessante como isso converge com temas que textos publicados aqui no PP sempre bateram de frente: as lutas identitárias. a política de identidade.
Leo V.,
usei aspas, não foi à toa. Usei “identidade” e moral no sentido de a esquerda das lutas autônomas manter a coerência prática e teórica, para não se diluir no governismo, caindo na tese do mal menor, do PT. Em suma, acho que pode ter lógica defender uma posição tal como a que você defendeu no debate do outro texto: “É dentro e contra, ou em outras palavras, dentro e além.”, mas acho que isso é impossível para além da lógica, e é, em verdade, o que defende Lula e as frentes de esquerda, onde se pretende estar dentro e contra o governo, tudo para fortalecer se não o governo, o PT. Aliás, se eu achasse possível estar dentro e contra eu estaria nalguma das siglas que querem “resgatar o programa democrático-popular abandonado pelo PT”, algumas dessas da Frente Povo Sem Medo, ou mesmo em um PSTU, PSOL… Mas como eu acho que o PT não abandonou e sim realizou o democrático-popular, não acho possível estar dentro e contra e muito menos dentro e além – mesmo de fora a estratégia dominante nos suga e delineia alguns dos limites das nossas práticas, imagine de dentro! Daí eu ter usado o termo identidade: estar dentro, propositalmente, seria negar o que nos diferencia, tanto na forma organizativa, quanto no conteúdo estratégico de nossas lutas. Isso seria um atraso com relação ao que vimos praticando nos últimos anos. Prefiro, como eu disse, manter essa coerência e travar lutas menores por fora, mesmo que o preço disso seja, em alguma medida, lavar as mãos para a luta de cachorro grande que agora está posta. Acho que só sairemos do limbo assim.
Leo, não defender o governo não é, definitivamente, uma posição identitária ou infantil (de quem “não aceita não estar na liderança em nenhum momento”, “meter a mão na merda” etc). Mais do que uma “posição autônoma”, como você diz, interessa procurar o que pode ser, num momento destes, uma posição de classe e revolucionária.
O debate se há ou não um golpe em curso é fundamental justamente porque, como você disse, “o que importa são as consequências para os direitos e possibilidades de organização dos trabalhadores ao cabo desse processo”. Nesse sentido, como observou o Cassio no texto que saiu agora (www.passapalavra.info/2016/03/107826/), caso Dilma consiga se manter no governo, será ela a implementar exatamente os ataques que seus pretensos substitutos planejam aplicar. É ingenuidade supor que a Lei Antiterrorista ou o pacote de ataques contra o funcionalismo público tenham sido aprovados no auge da crise política por uma “falta de tato” do governo – pelo contrário, foi um movimento preciso do governo visando justamente recompor seu apoio… dos capitalistas!
Cassio aponta o nexo entre o avanço conservador na sociedade e a articulação política pela saída da Dilma, mas na hora de elaborar sua proposta de ação deixa de lado o elo entre o avanço conservador e a própria perpetuação do projeto petista. Quando defendo a recusa de entrar no “jogo do inimigo” não é por um “medo de ser instrumentalizado pelo PT” (como você bem disse: que luta está imune de ser instrumentalizada?), mas por entender que o única via que pode fazer frente de fato à ofensiva conservadora é rompendo com esse jogo.
É possível desvincular a ascensão conservadora do fato de que, num momento de ataques contra os trabalhadores, aquelas que foram nossas ferramentas de luta históricas hoje não apenas compactuam como são agentes ativos da implementação desses ataques? O que expressa o recente rechaço dos metalúrgicos de Santo André – reduto histórico da CUT – ao dirigente sindical que tentou defender o governo em uma assembleia da categoria?
Não deveríamos achar terrível que a Dilma caia, o terrível é que não sejamos nós a derrubá-la. E que a classe trabalhadora, se não estiver assistindo à sua queda perplexa (e talvez iludida, acreditando que tirar a presidenta possa reverter esse cenário), seja ela chamada a defendê-la. Sem uma mobilização independente da classe, que permita a construção de novos organismos de luta autônoma dos trabalhadores, qualquer cenário – Dilma ficando ou caindo – é terrível. Daí a busca por uma posição que rompa com esse jogo, que não reforce a defesa do governo. Por menos visível que seja sua realização no horizonte imediato, é nessa tarefa que reside qualquer futuro para uma esquerda combativa.
Pablo
Quando disse em comentário em outro texto ‘dentro e contra ou dentro e além’, não quis dizer dentro e além de um partido ou um programa, mas dentro e além da luta contra o golpe em curso.
Sustentar uma posição “autônoma” (já estamos novamente perdendo mais tempo discutindo “autonomismo” do que “golpe”) hoje não é uma questão de identidade. Para alguns antifascistas permanentes talvez seja, mas é na verdade uma posição política que não existem razões suficientes para que seja comprometida, mais do que ela já é.
A esquerda-radical (estatal ou autônoma) já foi expulsa das ruas desde as jornadas de 2013 e desde então nenhuma das duas tem conseguido se mobilizar nacionalmente. Hoje, para se manifestar no Brasil é preciso ou usar camisa da seleção brasileira ou carregar bandeiras da CUT, nos seus dias específicos, separados com auxílio da polícia.
Nesse momento é preciso pensar e organizar um campo político não “autonomista”, mas que seja contra o governo e contra qualquer direita. Se as pautas que esse campo levar forem as mais alucinadas é o de menos. Não deveríamos estar em busca de interpretar o “golpe” em curso ou encontrando qual é pauta correta a ser levada pra rua. A questão é como conseguir sair pra rua e sustentar uma 3a posição política no país. Esse gesto pequeno, frágil, hoje já uma pequena tarefa histórica para qualquer militância sair em texto ou na rua combatendo as duas frentes postas.
Não é uma questão de preservar intactas indentidades (nunca foi. O MPL, que é reconhecido como o grande movimento “autônomo” do país, é repleto de militantes da esquerda estatal desde sua origem). A questão é, por exemplo, como que os secudantaristas de São Paulo e Goiás entenderão os jogos da luta de classes a partir dessa conjuntura (entre os dominantes, sobretudo).
Que forma de interpretação da realidade histórica ficará como legado no pensamento dessa nova geração de lutadores? Que toda vez que a direita raivosa se mover contra a direita conciliadora nós devemos defender os conciliadores.
E se o impedimento fracassar não é um fiasco toda essa problematização de tipos e estilos de golpe e governismos para todos os gostos? Se o impedimento fracassar, que legado a esquerda-radical deixará para os trabalhadores e estudantes em luta? Mais fôlego histórico para o PT, justamente depois que ele finalmente irá conseguir entregar tudo na velocidade que os capitalistas desejam.
E se o impedimento se concretizar, que lutas terão que ser feitas que já não deveriam estar sendo enquanto o governo era PT?
O problema não é ter medo de sujar-se na política, é ter coragem pra lançar essa posição que sofre risco de ser esmagada pela união de duas multidões até então antagônicas. Lançar essa 3a opção política é também sujar-se (ela não será autonomista), assim como é sujar-se temer a direita da direita e defender a FPSM, etc.