É justo e legal punir os que se apropriam dos bens públicos, mas não é justo e definitivamente não existe uma “carta branca” legal para que qualquer instituição o faça do modo como quiser ou puder. Por Geraldo Alves Teixeira Júnior
Arnoldus Clapmarius, autor alemão do século XVI, afirmava que os “segredos do comando” envolviam “um excesso do direito em nome do bem público”. Aos que não conhecem, é bom ter claro que a ideia de “excesso do direito” não remete a uma abundante atividade legislativa, mas a uma suspensão dos direitos, e do direito como um todo. Para resumir em um termo mais corrente em nossos dias: exceção. Por isso a ideia de Clapmarius foi retomada por Gabriel Naudé, no século XVII, para teorizar os “golpes de Estado”, e, direta ou indiretamente, por vários do que vieram mais tarde justificar a legitimidade da suspensão dos direitos, como o louvado nazista Carl Schmitt.
O que se vê em diversos momentos das atuais investigações de corrupção no âmbito federal é justamente uma suspensão do direito em nome do “grande mal” que assola o bem público. Mas muita calma, não se trata aqui de condenar a Operação Lava Jato nem de defender os corruptos – nem os públicos nem os grandes empresários – que ela investiga ou eventualmente prendeu. Trata-se de condenar os excessos, os quais tendem geralmente a produzir o seu oposto. O excesso do direito é o abuso de direito, é a ilegalidade, o não-direito. Excessos justificados não são excessos justos, são maquiavelismos que, a despeito do próprio autor de Florença, acaba concluindo que “os fins justificam os meios”. Espero que esteja bem claro: o fim – o combate à corrupção – pode ser justo, sem que também o sejam os meios empregados, ou o pensamento que legitima esses meios. É justo e legal punir os que se apropriam dos bens públicos, mas não é justo e definitivamente não existe uma “carta branca” legal para que qualquer instituição o faça do modo como quiser ou puder. Por isso e para isso existem disposições legais que apontam para processos que devem ser cumpridos. Sabemos que esses processos podem ser dificultados ou atrasados devido às influências, artimanhas e favorecimento de alguns – isso vemos em Goiás com as investigações contra o governador Marconi Perillo que patinam há anos sem resultados – se é que tem alguém se esforçando para levá-las adiante. No âmbito federal, a própria prisão e investigações de líderes e apadrinhados políticos e econômicos do governo, aponta, ao contrário, que não é esse o caso. Essas investigações e prisões são os fatos, não a interpretação. Pode-se argumentar dizendo que mesmo assim o governo tem tentado desvirtuar as investigações. Isso é possível, mas não é fato. O fato é que as instituições responsáveis pelos processos têm conseguido fazer seu trabalho. Se isso se deve à graça divina, à não interferência do governo, à força dessas instituições, ou à “coragem” dos que aparecem na mídia como os novos heróis simplesmente porque fazem o seu trabalho, pouco importa.
Passo direto ao ponto, por mais que todos – ou pelo menos os não apaixonados por um ou outro partido – queiramos ver os corruptos responderem por seus crimes, isso não torna legal ou desejável a autonomia absoluta da Polícia Federal ou de qualquer outra instituição. A autonomia absoluta das instituições e autoridades significaria que elas poderiam, inclusive, suspender o direito quando seus chefes acreditam que se estão agindo em nome do bem comum. Todas as instituições e todos os cidadãos estão sob uma constituição e sob as leis. É o próprio Estado de Direito que impede uma autonomia total das instituições, mesmo quando aponta que elas devem ser independentes do governo. Por isso, para se referir a esse conceito a tradição inglesa fala de rule of law, ou império da lei, indicando que a lei está acima dos cidadãos particulares, do governo e de qualquer instituição pública ou privada.
Acredito realmente que o ex-presidente seja culpado de alguns crimes que lhe acusam. Diante de qualquer “grande político” do cenário brasileiro, estranho seria acreditar o contrário. Mas nada torna legal conduzir qualquer um “coercitivamente” para prestar um depoimento sem prévio mandado judicial e sem prévia recusa formal do cumprimento da ordem. O que tais práticas nos mostra é justamente que algumas instituições agem independente da lei, sobre a lei, contra a lei, quando lhes convém. Ao invés de Estado de Direito, nesse caso deveríamos estar falando de Estado do Judiciário; ao invés de império da lei talvez fosse apropriado falar de império da Polícia Federal. As leis que merecem assim ser chamadas são estabelecidas para impedir que os muitos e diversos pareceres e juízos sobre as pessoas produzam efeitos arbitrários e contraditórios. Assim, diante da objetividade de algumas leis e procedimentos formalmente estabelecidos, pouco importa o que eu acredito, ou mesmo o que pensam as chefias dos órgãos públicos. Não se trata de opiniões, mas do direito e das leis, que definem os crimes, os processos e as punições, impedindo a “justiça dos amigos” tal como vemos no Polemarco de Platão ou na idéia atribuída a Vargas que dizia que “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”. Se alguma vez pensamos em justiça, pensamos sempre que ela deva se aplicar a todos igualmente. Se isso não acontece falamos de privilégios ou de vingança, conceitos distintos, muitas vezes opostos do primeiro. Por trás dessa discussão estão algumas noções importantes como isonomia, segurança jurídica, devido processo legal e outras. O que interessa aqui, contudo, não é a discussão conceitual, pois, para uma discussão pública, ou expressamos os conceitos que usamos a partir de uma linguagem comum, ou o discurso serve apenas para mostrar eruditismo e buscar convencer pela autoridade.
Obviamente as leis e mesmo a Constituição podem ser alteradas, pode-se formar uma demanda de legalidade. Ou seja, por meio de pressão popular ou mesmo como efeito da aplicação da própria lei, verifica-se um descompasso entre a lei e o fato e surge uma demanda para a alteração da primeira. Assim os verdadeiros movimentos sociais atuam às vezes contra a lei, para exigir mudanças nas leis. Assim também quando se verifica a pouca eficácia de determinada norma, as próprias instituições – Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Polícias, etc. – apontam para a necessidade de mudar a lei. No desenvolvimento de uma petição de legalidade, seja como for, a demanda é por uma norma geral, que se aplique a todos ou a todos os casos semelhantes. Por isso, seja essa demanda justa ou injusta, convém reconhecer que ela faz parte do Estado de Direito.
Não é essa a idéia dos que defenderam as conduções coercitivas ou outras ilegalidades cometidas ao longo da Operação Lava Jato. Primeiro porque não me parece que essas mudanças tenham sido sugeridas em algum momento. Depois porque muito poucos – políticos ou cidadãos em geral – estariam dispostos a conferir a cada instituição o poder de agir sem processos e procedimentos estabelecidos, apenas com a declaração dos fins. Exceto para os atuais fascistas e fanáticos pelo poder – e estes porque consideram que nunca serão prejudicados injustamente –, o argumento absolutista, que defende que o rei pode agir como bem entende se o fizer em nome do bem público, já encontra pouca repercussão em nossos dias. Contra a história de abusos, excessos e massacres que a idéia dos fins que justificam os meios provocou, e em nome da igualdade de direitos e da liberdade individual prevemos processos a serem seguidos. As “democracias contemporâneas” podem até não ser propriamente democráticas, mas seu grande trunfo está em garantir ou ao menos permitir que se recorra a esses processos, contra a vontade absoluta de alguém ou de alguns que se encontram em posições de comando. O contrário se verifica quando o juiz Moro autoriza uma interceptação telefônica durante certo tempo, e a PF continua a interceptação após receber ordem expressa para interrompê-la. A vontade supera a lei também quando o mesmo juiz autoriza que as gravações se tornem públicas, mesmo sabendo que elas foram recolhidas de forma ilegal (nem é preciso discutir a questão técnica da aplicabilidade do sigilo garantido pelo foro privilegiado da presidente Dilma). Ou ainda quando o MP utiliza as “provas” obtidas ilegalmente, para pedir que se considere ilegal a nomeação de Lula como Ministro. E pior ainda quando solicitação no mesmo sentido é aceita pelo Judiciário.
Para defender sua ação que uma emissora de TV (cujas relações com os ditadores de outrora ela mesma reconheceu) quis transformar no dia da queda da Presidente, o ‘juiz herói’ não colocou em questão o sigilo das investigações em geral. Ele tampouco defendeu que a PF pudesse investigar sem mandato, ou contra as ordens judiciais, como ocorreu. O argumento foi o do “interesse público”, o mesmo que justificaram ditaduras do passado, e o mesmo que os autores do maquiavelismo proclamavam há cinco séculos para justificar que os reis podiam mentir, espionar e assassinar sempre que percebessem um problema para o Estado.
Se não há, então, demanda por legalidade, nem mesmo a posteriori, por parte dos apoiadores das ações ilegais que a PF, o MP e o Judiciário têm cometido, o que estes apoiam é pura e simplesmente e precisamente a “suspensão do direito”, tal como apresentada por Carl Schmitt ao falar do estado de exceção: as leis não são alteradas ou suprimidas, elas são suspensas, perdem a sua aplicabilidade por determinado momento, e para determinados casos. Nesse argumento, o foro privilegiado, o sigilo das investigações, a necessidade de ordem judicial e a observância das leis ainda é um bem, mas não nesse caso.
Ocorre que quando o estado de exceção é apoiado pelos cidadãos dirigidos e/ou membros de uma elite formada e formadora das opiniões difundidas pelo sistema Veja-Globo, esse momento de exceção tende a se perpetuar. Ou seja, a suspensão, pode durar indefinidamente, sobretudo em um país como o Brasil, com seu bom histórico de suspender as leis em nome da salvação nacional. Quando as pessoas muito informadas pela Veja-Globo e pouco informadas pelo estudo da política e das leis, aplaudem a ação ilegal da PF contra um ex-presidente, ou quando louvam a PM paulista porque ela invadiu um sindicato onde ocorria uma reunião em apoio ao ex-presidente, elas estão gritando em alto e bom som que os fins justificam os meios. Sob outro ponto de vista isso significa condenar a corrupção política por meio da corrupção moral, que eles vêem, no caso da perseguição ao Partido dos Trabalhadores, como virtude pública.
Existe, contudo, uma petição inconsciente de demanda legal nas ações e argumentos dos que defendem o maquiavelismo contra as personalidades visíveis da política. Isso porque as personalidades invisíveis, como a maioria de nós, estarão cada vez mais sujeitos a esse tipo de ação da PF, PM ou quem sabe, novamente, das Forças Armadas. Essas ilegalidades já acontecem no dia-a-dia dos movimentos sociais, mas apesar das redes de comunicação, elas permanecem mais ou menos ocultas pela ausência desses fatos na grande mídia e a conseqüente ausência das discussões mais gerais. A novidade agora é que essas ilegalidades são explícitas e aplaudidas e que, portanto, por mais que não venham a se tornar leis positivas, elas possuirão um estatuto pragmático de legalidade devido às decisões internas às instituições policiais, à anuência de um Legislativo que se move majoritariamente com a onda do poder, e de um Judiciário composto por juízes que por seu pertencimento à elite social tende a beneficiar sempre o lado menos popular dos conflitos – o que nesse caso significa apoiar a derrubada de um governo que favoreceu algumas realizações sociais com políticas de inclusão e apoio a algumas leis trabalhistas como a dos empregados domésticos, que até então sempre foram uma classe juridicamente marginal.
Claro que alguns vão já imaginar que essa referência ao desenvolvimento social é uma defesa do PT. Isso, contudo, não reflete nada do que aqui se diz, e é simplesmente o reflexo de um mal mais profundo, comentado por Maquiavel, mas ignorados pelos atuais maquiavélicos: o faccionismo. Na atual conjuntura, aos olhos da maioria, qualquer um que fale mal do PT é visto como pesedebista, por isso muitos resolvem se calar quando surgem novos fatos que comprovam a corrupção petista. Na outra facção também se considera que qualquer um que fale alguma coisa benéfica em relação ao PT ou prejudicial em relação ao PSDB deve ser petista. Essa última postura, no entanto, não é apenas fruto de falsidade como a primeira, mas da convicção profunda de uma elite que acha que ganhar dez mil reais é muito pouco, mas que fica inconformada em ter que pagar um salário mínimo de menos de novecentos reais e as contribuições sociais; a mesma que por muito tempo repetiu (e ainda pensa, quando não fala) que o Bolsa Família estimulava a preguiça dos pobres – claro que os termos que utilizavam eram menos delicados –; e a mesma que tem a coragem de reclamar do preço do dólar, não necessariamente porque são investidores financeiros, mas porque não vão poder viajar – ou melhor, viajar tanto – para o exterior. Esta mesma elite, que agora se mostra como a salvadora do bem público, Rousseau a chamaria de “burgueses” justamente por não conhecer pátria ou espírito de cidadania. Estes também se apressam em desviar o assunto quando a mesma corrupção que condenam é apontada nos governos do PSDB. Ou quando afirmam que defendem o combate a corrupção em qualquer caso, não explicam porque não protestaram quando se indicava compra de votos para reeleição no governo FHC, ou quando os processos do caso SUDAM não deram resultados, ou ainda quando no caso de corrupções tão ou mais importantes, e essas sim comprovadas e documentadas, de pessoas como Maluf, Eduardo Cunha, ou Demóstenes Torres – um ex-modelo de moralidade que alguns agora substituíram por outro do mesmo partido: Ronaldo Caiado.
Enfim, entre as facções, com os apoiadores incondicionais do PT ou do PSDB, ou com os apoiadores circunstanciais dos dois partidos (aqueles que acabam se ligando às idéias de um dos partidos por se dividirem entre pró e contra o impeachment), estamos entre a hipocrisia propriamente política e a hipocrisia política com base social. Em qualquer caso, nada demonstra mais parcialidade do que conhecer o que há de mal dos dois lados e condenar sempre um lado só. Isso é o mais comum na presente situação e é claro que, nesse sentido, os grandes meios de comunicação se mostram completamente parciais, contra o PT, pois denúncias ou mesmo condenações por corrupção “do outro lado” ficam por muito pouco tempo estampando as páginas dos portais de notícia. Do ponto de vista do jogo partidário o PMDB é e sempre foi um moderador, mas essa moderação tem dois “poréns” no quadro atual do faccionismo. Primeiro, que ela não gera qualquer reflexão pública, porque tampouco se propõe a isso. E segundo, que essa “moderação” não é nenhum chamado à virtude cívica para se defender o Estado contra as facções, mas uma técnica de manutenção do poder, segundo os preceitos maquiavelianos – pelo menos são fiéis ao autor – de que é preciso se “adaptar à natureza dos tempos”. Assim esse partido age há tempos, e se o nome correspondesse sempre à coisa, sua sigla sequer precisaria ser alterada para designar que se trata de um Partido Maquiaveliano. Até pouco tempo, com impeachment ou não o PMDB sairia satisfeito. Recentemente, porém, a ambição superou a técnica e o PMDB, querendo se ver na presidência e antecipando um tanto arriscadamente o impeachment, abandonou pela primeira vez o governismo. Para esse partido o quadro é novo, e ele arriscou ao fazer um movimento antes da certeza das condições e, mais ainda, em um quadro em que o impeachment com mais probabilidade (e tomara, se for esse o caso!) levará a eleições e não ao governo do vice-presidente. Para esse partido, contudo, a sua pouca preocupação em dar qualquer justificativa às suas ações irá salvá-lo novamente, pois ou ele assume a presidência, ou ele volta a ser “amigo do rei” nos próximos governo do PSDB ou do PT. Os demais partidos, à direita e à esquerda, acabam se juntado a um dos dois lados, alguns querendo eleições antecipadas, outros apenas cargos no governo.
Na atual conjuntura, se não quisermos retornar ao argumento dos fins que justificam os meios, ou, por outro lado, recuperar o argumento dos malufistas que defendem o “rouba, mas faz”, é preciso saber criticar os dois lados e agir de modo informado. Uma manifestação contra a corrupção que aponte apenas para o PT e que vem legitimar as ilegalidades cometidas por uma ou várias instituições é um contra-senso em relação ao próprio argumento de “bem público” que ela poderia apresentar. Por outro lado essas investigações que almejam grandes políticos e empresários representam um avanço – não no processo, mas no foco – do ainda incipiente Estado de Direito no Brasil, cuja aplicação das leis isentavam, até bem pouco tempo, grandes empresários e políticos.
Condenar toda a investigação devido aos meios que ela ocasionalmente utilizou, ou pior ainda, porque ela chegou a alguém em quem “se acredita”, ou que “fez muita coisa pelo país” é abrir espaço para que o segredo e a corrupção se instale definitivamente no Estado. O único modo de fazer com que esse instrumento de controle do governo não se torne um instrumento de controle do Estado e dos cidadãos é corrigir e impedir novos excessos, os quais têm sido, na verdade muito mais parte de um espetáculo do que uma necessidade que exigia a “suspensão da lei”. Ou será que alguém é ingênuo ao ponto de acreditar que o depoimento de Lula, conduzido ilegalmente, teve mais efeitos práticos para a investigação do que o mandado de busca e apreensão e do que todos os outros meios legais já empregados para se chegar até ele? Não se trata, então, de necessidade, mas de intenção de fortalecer uma crise já instaurada. Ocorre que, como é de conhecimento comum, em “crises” políticas e econômicas, há sempre quem ganhe: status, dinheiro, poder…
As investigações podem solucionar a crise de dois modos, provando a não participação da presidente Dilma nos esquemas de corrupção, ou, por outro lado, demonstrando a participação desse governo e apontando para uma justificativa real de impeachment. A despeito disso, no caso específico dos mandatos de condução coercitiva, à força e sem direito, das escutas ilegais, da publicação seletiva de informações, a PF, o MP e o Judiciário agiram para fortalecer a crise e não para levá-la a um dos dois desfechos mencionados. Ao criar espetáculos com ações ilegais e propagar na grande mídia acusações não confirmadas de delatores – que podem tanto fortalecer como desviar as investigações e, por isso, não podem ser vistas, por si só, como provas – tais órgãos públicos demonstraram que não agiram para cumprir seu dever, mas para o benefício de alguns e o prejuízo de outros. Mais ainda, a ilegalidade dos procedimentos pode facilitar que crimes passem ileso, pois se o direito ainda valer alguma coisa no processo, as provas ilegais devem ser desconsideradas. Assim, o quadro se deteriora ainda mais, pois estaremos todos cientes de crimes que não podem legalmente ser punidos. Resultado: ou se aplica a lei e eles ficam impunes ou recebem penas menores, ou se modifica a lei para que elas permitam as ilegalidades das investigações e a quebra de processos – aplicando-se, claro, mais um abuso nesse caso, a retroatividade. Ou seja, pelas ações dos “heróis” do bem público, o Estado se volta contra o público.
Mas se o objetivo não era fortalecer a investigação, e se, juridicamente tais ações podem enfraquecê-la, então cabe perguntar qual seria o propósito de tais ações. Ao invés de fazer conjecturas podemos percorrer o processo inverso e encontrar a intenção nos efeitos, já que na política, mais ainda do que em ações corriqueiras, as ações são planejadas para produzir determinados resultados. O resultado das últimas ações que fortaleceram o impeachment foi a milagrosa melhora de alguns indicadores financeiros nacionais, o que mostra o grande apoio das elites econômicas ao impeachement, já que é ela o principal agente capaz de alterar esses índices a despeito do cenário econômico global. Além disso, repentinamente a mídia passou a noticiar a quase inevitabilidade do impeachment, como se a condenação do ex-presidente ou de outros membros do PT pudesse levar, por si só, à condenação da atual presidente. Essa “condenação conjunta” até pode ocorrer, mas contra todo processo e contra o próprio Direito.
Visto não terem encontrado qualquer desvio de função ou de recursos por parte de Dilma (a outra possibilidade é que os tenha mantido em segredo, faz sentido?), e faltando-lhes argumentos que tivessem algum valor jurídico, os juristas que defenderam o processo de impeachment no Congresso tiveram que fazer escândalo sobre o “crime de responsabilidade” relacionado à gestão das contas públicas. Quanto a isso, em primeiro lugar, há argumentos jurídicos que afirmam que as tais “pedaladas fiscais” sequer configuram motivo de impeachment, mas que, no máximo, se condenada pelo TCU e no Congresso, a presidente apenas se tornaria inelegível após seu mandato. Mas mais importante é verificar a seletividade (ou parcialidade) no tratamento dado à questão, visto em outros casos apenas como um problema corriqueiro nos três níveis de governo do Estado brasileiro, mas que neste justifica o impeachment e um ódio não velado do discurso anti-PT. Assim também é o assunto da distribuição de ministérios. O principal capital político dos governos sempre foi a distribuição de cargos e sempre houve grande discricionariedade nas escolhas de ministros. A exceção, na verdade, é encontrar aquele que tenha alcançado o cargo por competência técnica. Mas no caso atual, como grande espetáculo de ventríloquo, a mídia fabrica e os fantoches reproduzem a voz que alardeia sobre o absurdo de se leiloar cargos. Novamente, ninguém jamais comentou sobre um sistema de eleição de ministros ou sobre o cargo poder ser atingido por progressão, ou sobre nenhum outro sistema. Do mesmo modo, as urnas eletrônicas, que encontrava baixíssima rejeição, passaram a ser questionadas nas últimas eleições que reelegeu Dilma e que fez a elite querer “mudar de país”. O problema é que agora o sistema favorece “o inimigo”, e para os novos defensores do bem público, a justiça é para os amigos. Como expõe Greenwald (que não tem nada de petista e sequer é brasileiro, mas que sempre realizou um jornalismo sério e investigativo), “De Michel Temer a Eduardo Cunha, passando pelos tucanos Aécio Neves e Geraldo Alckmin, os adversários mais influentes de Dilma estão envolvidos em chocantes escândalos de corrupção que destruiriam a carreira de qualquer um numa democracia minimamente saudável. Na verdade, a grande ironia desta crise é que enquanto os maiores partidos políticos do país, inclusive o PT, têm envolvimento em casos de corrupção, a presidenta Dilma é um dos poucos atores políticos com argumentos fortes para estar na Presidência da República e que não está diretamente envolvido em casos de enriquecimento pessoal” (artigo, “Se impeachment, então quem?”. Folha de São Paulo, 06/04/2016). Do ponto de vista do Estado e do Direito, pouco importa se os procuradores e os chefes de polícia são anti-petistas, pesedebistas ou querem, independente de partidos, ganhar notoriedade ou autoridade para si ou para sua instituição. Importa que nenhum dos motivos mencionados deveria prevalecer sobre a legalidade, e importa que os resultados que estão gerando indicam que suas ações promovem a derrubada de um governo estabelecido, contra os processos legais definidos. Na medida em que essa derrubada ocorre sem provas suficientes – e mais uma vez, condenar Lula, o que ainda não ocorreu, não seria o suficiente, do ponto de vista formal, para condenar automaticamente Dilma – há razão no argumento dos que afirmam que o governo tem sofrido um golpe. Mais ainda, verificados os efeitos econômicos dessas ações, há boas razões para se apontar inclusive de onde ele parte.
O interessante é que ao longo dos vários anos no governo federal o PT beneficiou amplamente aqueles que agora o empurram ladeira abaixo, como os grandes empresários industriais e do agronegócio, agentes financeiros, e instituições policiais federais. Isso não demonstra a imoralidade desses setores – jamais se esperou uma atitude ética de agentes econômicos, ou que instituições policiais não adotassem a postura mais conservadora nos contextos políticos – tanto quanto demonstra a covardia do PT, que em suas políticas sociais seguiu os preceitos daqueles que acreditam que é possível beneficiar os mais pobres sem ter que enfrentar os ricos, e que jamais teve coragem de enfrentar o abismo de desigualdade responsável pelas barbáries políticas e econômicas do país. Preferiu sempre políticas de assistência social do que as que envolvessem distribuição de riquezas.
O governo pode cair por meio de ações ilegais que despertam reações políticas, tais como as de agora, ou legalmente, se isso ocorrer como conseqüência do avanço das investigações em seus procedimentos legais. Em qualquer caso, mais do que os grandes lucros e o fortalecimento do aparato policial, o PT terá deixado para os setores conservadores outros presentes, talvez ainda mais significativos em longo prazo. Dentre eles, danos ambientais irreversíveis como a transposição do São Francisco, a construção de Belo Monte e, antes disso, a aprovação de alimentos transgênicos – viabilizada com apoio de petistas e aliadas. Além disso, mais recentemente, um projeto de desestruturação do ensino público que envolve, por um lado, o programa “Pátria Educadora” e, por outro, as iniciativas para gerir Universidades a partir de um modelo que mais se aproximam das Organizações Sociais (OSs) que temos na saúde (e que se pretende implantar na educação) em Goiás do que de modelos de instituições públicas. Mas o coroamento da entrega petista ao conservadorismo foi o apoio à lei antiterrorista, a qual permite criminalizar formalmente – isto é, instaurar uma perseguição legal, além das perseguições ilegais já corriqueiras – os movimentos e as manifestações que reivindicam direitos e que, diferentemente das atuais, apresentam demandas sociais de interesse público e não meramente posições políticas favoráveis ou contrárias a um ou outro partido.
E já que as manifestações contra o PT trouxeram o maquiavelismo para a ordem do dia, convém lembrar, por fim, que se o governo cair, é porque ignorante da lição de Maquiavel, o PT não soube escolher se buscaria apoio nos “grandes” ou no “povo”. Enquanto no nível nacional, o PSDB sempre se apoiou nos grandes, usando o “povo” apenas para os discursos políticos, os governos do PT agiram como se pudessem conquistar um grande consenso, incluindo setores que firmaram com ele alianças temporárias devido aos benefícios recebidos, mas que sempre foram contra tudo o que envolve os temos “povo”, “trabalhadores” e “social”. Essa pretensão de superar as condições objetivas da política o levou a realizar políticas sociais ao mesmo tempo em que tentava atender aos interesses das elites. Por essa pretensão é que o governo se encontra nesse momento fragilizado, pois exceto por suas bases tradicionais, muito pequenas para a atual situação, o “povo” não tem tanta disposição de defender um governo que sob vários aspectos o ofendeu e preparou o cadafalso onde os próximos governos poderão enforcá-lo ainda mais. E se alguns que permaneciam hesitantes até agora se juntarão nas próximas manifestações pró-governo para defendê-lo do impeachment, é em nome da prudência política que, também segundo Maquiavel, exige considerar como bom aquilo que na verdade é apenas o menor dos males.
Se um impeachment acontecer, não há tanto o que se lamentar pelo fim do governo do PT. O lamentável vai ser verificar como as ações ilegais dos que possuem armas ou poder e as articulações das elites econômicas ainda derrubam governos no Brasil, como já fizeram tantas vezes; como a informação é controla pelo dinheiro, mesmo em tempos de redes sociais; e como boa parte (e a parte mais instruída!) da população está disposta a conceder todos os direitos a proclamados heróis públicos que jogam com palavras para fingir que trabalham com as leis.
A solução do problema da “corrupção” transformada pelos anti-petistas no grande mal da década (como se não fosse o “mal dos séculos” no Brasil) não passa por impeachment. E também não passa pela manutenção do governo do PT na presidência. Passa por uma re-elaboração integral do sistema político, uma que seja capaz de descentralizar as decisões, de diminuir a concentração de recursos nas mãos de um único corpo de governo, por alterar leis para que cargos públicos não sejam moeda de troca, por impedir privilégios jurídicos como foro privilegiado ou segredo de justiça para todos os políticos. Passa ainda por algumas questões diretamente ligadas ao capitalismo, pois boa parte dessa corrupção acontece porque os governantes sempre recebem recompensas ao representar (conforme o cargo exige nesse sistema econômico) os interesses das empresas nacionais no exterior; e porque a falta de condições socais mínimas impede qualquer forma de participação política e, portanto, a desigualdade e a pobreza são fundamentais para o “combate à corrupção”. Em todo caso, nada disso está em discussão no embate impeachment/não-impeachment, motivo pelo qual com ou sem PT no governo, os mais graves defeitos sociais e políticos permanecem e permanecerão até que os movimentos realmente populares que surgem a partir dos efeitos desses problemas possuam capacidade política de alterá-los. Assim, se fosse para termos ódio, deveríamos odiar todos os partidos, e não o PT ou PSDB, pois todos sempre transformaram política em jogo e as decisões públicas em profissão. Mas como melhor solução, podemos evitar o ódio generalizado que corrói todo o convívio social, e aprender a ouvir as razões e ignorar as desrazões. Para isso não é necessária o nobre sentimento de fraternidade, mas apenas o entendimento realista de que a sociedade se mantém por necessidade. Queiramos ou não, petistas terão que conviver com pesedebistas, e estes com comunistas e com anarquistas, assim como os ateus, com os religiosos e estes com pessoas de outra religião. Não há dever de amizade entre indivíduos ou grupos diversos, mas de cidadania: ou se reconhece que o bem público não aceita exceção, e que ele requer a igualdade de direito e a validade dos processos para todos, ou passaremos a viver como sociedade de mafiosos, que diante dos mesmos casos executa uns e protege outros.