E a vida do trabalho continuou, surda e insensível, cega e evidente, como o próprio tempo da eternidade. Por Vanessa
Leia aqui a 3ª carta de Arthur a Helo.
Ouro Preto, 29 de abril de 2016
Olá amiga.
Há quanto tempo não nos falamos? Desde que você foi embora? Como anda as coisas por aí? Enfim, tentei entrar em contato por e-mail, por Whatsapp, mas me parece que você abandonou tudo. Então, tive que perguntar a Arthur como podia me comunicar com você e ele de bom grado me deu seu endereço. Quase não acreditei quando me disse que, se eu quisesse falar com você, teria que enviar uma carta!
Vocês são muito doidos mesmo. Amo essa loucura de vocês que acaba sendo a minha, afinal, me parece tão desconcertante nossa conduta libertina que as vezes me pego em pensamentos tão conservadores que dou aquela risada íntima. Fiz aquele trampo sobre Clarice, mas não é necessariamente sobre ela que queria falar, tendo em vista que algo muito grave aconteceu e está para acontecer.
De fato, o que despertou essa vontade de te escrever foi necessariamente sérios problemas que estou tendo com nosso Arthur. Problemas causados por minha teimosia em continuar namorando com Rogério, mas, não é ciúmes que Arthur sente não.
Tudo bem, já que comecei vou até o fim…
Quero que saiba que morro de vergonha dessa história que já anda envolvendo muitas pessoas.
Você sabe como Arthur não liga para meus outros relacionamentos. Inclusive trocamos muitas confidências e apesar de ser difícil, pois, por vezes o ciúme tende a aparecer, continuamos na mais aberta sinceridade. No entanto, aconteceu algo muito constrangedor causado por Rogério – meu novo ex-namorado – que embriagado veio a noite aqui em casa e sabendo que eu era “casada” me agrediu. Naturalmente, o ímpeto avassalador de nosso Arthur esquentou-se e ele agora quer se vingar de Rogério e, pior, ele está muito mal acompanhado por um tal de Cris.
Esse Cris além de traficante é um assassino e não será muito problema para ele fazer um grande mal para Rogério. Sei que o que ele cometeu é execrável, mas puni-lo com a morte é demais, um tanto exagerado e bárbaro. Arthur reflete. Mas esse tal de Cris é um desses rapazes de ação, não liga muito para o amanhã e não tem medo de morrer. Um completo santo! E como todo santo, gente muito perigosa.
Desse modo, gostaria de pedir encarecidamente que você intervenha de algum modo para refrear os ânimos de Arthur porque se ele comentar com Cris fudeu! Eu me encontro ainda muito envolvida por Rogério, mas já tomei a decisão de terminar com ele. Só que ainda nada disse a respeito. Ensaio todas as noites o término, mas na hora H me falta coragem. Você sabe o quanto é difícil acabar com alguém. E os homens quando pressentem a merda chegando tornam-se dóceis e amáveis.
Mas quero que se foda irei terminar por mais doloroso que seja.
Ah! Você não sabe quem trombei por aqui com a gaita dele… o Bozo, ele mesmo, estava um pouco embriagado, como de costume, mas feliz porque finalmente encontrou um espaço para escrever para multidão. Suspeito muito dessa vontade dele e das boas intenções que ele nutre ao escrever para um periódico tão governista como aquele. Acho que seu espírito rubro negro está na verdade se azulando. Que maldade né! Está agora fazendo o doutorado em Hegel! Hegel! É de matar mesmo, tem três anos para aprender alemão e se mandar pra Berlim, com que dinheiro ele vai? Só Deus na causa!
Estou aflita, falo do Bozo, mas todo meu pensamento ainda está no problema que estou enfrentado. Mas, deixa pra lá. Quero te contar um sonho que tive, porque além de cinematográfico ele é kafkaniano:
Sonhei o seguinte:
Parecia que eu tinha voltado pra São Paulo. Estava no antigo escritório da repartição que eu trabalhava. Quero continuar te contando mas passarei para a terceira pessoa porque com isso faço um conto:
O ETERNO RETORNO
Por Vanessa D’Ávila
Tereza encontrava-se sozinha na repartição. As paredes cinzentas eram preenchidas pela janela que ficava de fronte a outra parede cinzenta do prédio vizinho. Havia na verdade uma disputa silenciosa de cinza e um branco-gelo poluído pelas fumaças de carros que buzinavam ao largo. A mesa de Tereza era de frente para essa janela e seus olhos, quando não se encontrava em cima dos papéis, se perdiam naquele cinza disputando com o branco-gelo esfumaçado. Do seu lado esquerdo encontrava-se um desses relógios cujos 12, 3, 6, 9 eram gigantescos. Relógio de uma cor metálica que denunciava um ponteiro tremelicando silenciosamente a cada milímetro de segundo.
O estômago lhe doía, uma fome distante lhe anunciava que o dia chegava ao fim. Seu pensamento tentava sair daquela pilha de papéis que amontoados precisavam de rubricas e carimbos. Em que mais Tereza pensava? Em muitas coisas, pois para ela o término do dia não era dado com o pôr do sol, mas continuava dando voltas com a lerdeza e regularidade estática dos três ponteiros do relógio metálico. A magia disso era quando os três se encontravam num único e mesmo número. Pensava nos amigos, na sua família que estava distante, e nos que em saudades e faltas viviam a monotonia junto com ela, e naqueles que estavam próximos, mas se negaram a fazer horas extras.
Surpreendera-se com seu tédio, que ele a perturbasse tanto – ele, que sempre fora acostumado àquela rotina, e que brincava de se esconder em meio à multidão de sentimentos. Assim, naquele fim de tarde de terça-feira, sentiu uma falta de ar misturada com taquicardia, suas mãos tremiam de nervosismo, e fora necessário ligar o ar-condicionado. “Pi! Pi! Pi!… Fuuuuuu…!”, se ouvia. Que incomodava ela agora?
O barulho costumeiro das máquinas de impressão havia silenciado. Tereza era a única que complacentemente aceitara fazer a hora extra para ter banco de horas. O que restava era um silêncio aterrador das buzinas e sirenes distantes e aquele tic-tac ensandecido do relógio. Aquele enfado incompreensível era tão estranho à sua alma que ela parou de procurar a causa, e de repente foi presa de um desejo desesperado de se masturbar, de gozar consigo mesma.
Meditou durante alguns segundos, e então um desejo mais desesperado assaltou-a, de se livrar das roupas e de se convencer que embora aquele corpo frágil fosse pequenino e magricela ela poderia arrancar dele prazer. E imaginando que ninguém a via, enfiando as mãos por debaixo da calça social já aberta com seus característicos apertos, Tereza se tocou, como se fosse morrer.
“Eu gostaria de estar sozinha, de não ser vista de modo algum por qualquer multidão que fosse. Não teria importância a minha solidão e que eles fossem milhares, ou mesmo que eu não chegasse a ser vista por ninguém. Isto é que é importante: que eles sejam milhares. Quando milhares não enxergam, isso significa que quem enxerga venceu”, pensava Tereza.
Mas isso lhe parecia tão evidente que ela perdeu a vontade de continuar se tocando. Era preciso que todos os demais entendessem por si mesmos. Talvez seus sentimentos não quisessem parar em um pensamento único – assim como o trem que segue tranquilamente, vendo um horizonte dilacerado pelo mesmo, e para quem todo o desconhecido, toda a profundidade, toda a alegria são inacessíveis.
O tic-tac do relógio soava sem cessar, perturbando o silêncio. E para esse som tedioso, próximo e monstruoso, os pensamentos de Tereza fluíam enquanto ela abotoava a calça. As imagens que deslizavam em sua mente – relógio, cinza, branco-gelo poluído, ar condicionado, papeis, carimbo, rubrica – transformavam-se num vazio. Era como se em final de tarde, sem nenhum sentido, toda vitalidade de Tereza estivesse se esvaindo. O sol se punha, mas Tereza era incapaz de saber se isso ocorria quando o telefone bruscamente tocou a assustando:
– Alô!
– Amor? Tudo bem?
– Estou sim e você?
– Mais ou menos!
– Por que?
– Eu não sei quanto é 70 vezes 7!
Tu…Tu…Tu…Tu…Tu!
A linha caiu. E Tereza sentiu um calafrio lhe percorrer. Suspirou e continuou. Separava, molhava os dedos com a ponta da língua, contava e separava. Contava, batia as dezenas de papel na mesa, acertava milimetricamente as folhas e enfiava no arquivador. E de novo. Separava, molhava os dedos com a ponta da língua, contava e separava. Contava, de novo, batia as dezenas de papel na mesa, acertava milimetricamente as folhas e enfiava no arquivador. E de novo.
Num automatismo prático pegou a calculadora e digitou 70×7 = 490. E Zaz! Separou, molhou os dedos com a ponta da língua, contou e separou. O relógio continuava suspenso. Faltavam 5 para às 18:30, dali a meia hora estaria livre. E de novo, separava, molhava os dedos com a ponta da língua, contava e separava. Todo o mal-estar e toda agitação lhe tomavam, o corpo cansado se dissolvia no vazio de sua mente ligado àquela tarefa. Sua mente triste e fatigada criava imagens devastadoras, um abismo lhe dilacerava e do profundo do seu ser surgiu a temerosa pergunta: “Por que?”.
Tereza relembrava de três companheiros que tinham morrido pouco tempo antes, e os rostos deles lhe pareciam brilhantes, vivos e próximos – mais vivos que aqueles dos seus companheiros ainda vivos. Do mesmo modo, um tremor lhe percorreu a espinha cansada e uma saudação intranquila verteu num sorriso triste.
Tereza ficou muito cansada de tanto revirar os papéis. Jogou-se cuidadosamente na cadeira e continuou a viajar em seus pensamentos enquanto seus braços submissos aceitavam o fardo de separar, molhar os dedos com a ponta da língua, contar e separar. O tic-tac do relógio soava sem parar, perturbando o silêncio, e imagens soturnas e tenebrosas flutuavam misturadas aos túmulos e aos funerais de seus três companheiros. De repente, um gato apareceu no batente da janela. Isso assustou a moça que, interrompendo seu oficio, ergueu-se com calma na tentativa de colocar o gato no interior do escritório. Abriu, assim, a janela com grande cuidado e com muita cautela, ouvindo o som dos carros e sirenes ficarem mais altos. Se dobrou no batente. Tereza pensava:
“É possível que está vida seja a morte? Meu Deus como ela é vão! Ou é bestial! Como dizia o poeta: Eta! vida besta meu Deus!”
Seu ouvido cedera lugar, havia muito, àquelas buzinas e sirenes que gritavam lá embaixo – desde o primeiro momento em que o vento as trazia para dentro do escritório. Sendo ela muito sensível, sua pele afinara-se ao vento e, nesse fundo melancólico de sons terríveis, com os pequenos pedaços de realidade – o barulho dos carros, o soar do tenebroso relógio, o sussurro do vento trazendo os estalidos daquela vida que transcorria indiferente lá embaixo – ela criava suas terríveis fantasias. O bichano ao ver sua aproximação tentou fugir e parou numa estreita coluna um pouco distante da janela, forçando Tereza a se esticar ainda mais.
A princípio Tereza temeu, abriu ainda mais a persiana e com cuidado puxou o fecho da janela, olhou para baixo – treze andares abaixo. Achou lindo e tentou afastar de si aquela contemplação do belo. Pensava nele como se fossem alucinações de uma mente doentia. Em segundo, porém compreendeu que ela própria estava bem, que aquilo não era uma doença; e se entregou calmamente a sua contemplação. As pontas de seus dedos quase alcançaram o gatinho que por denguice brincava dando patadas no ar. Mais um centímetro e não se sabe ao certo se Tereza escorregou ou se lançou, caiu lentamente com um gostoso e aterrador frio na barriga.
E agora, de repente, parecia-lhe escutar com clareza a aproximação tenebrosa daquelas sirenes, cochichos e vozes de todo tom. Atônita, e despencando no abismo, não conseguia abrir os olhos. Mergulhou, chegando assim em segundos na estação. Não era uma estação qualquer, no entanto, e sim uma estação das primeiras estações do século XIX que se encontrava vazia. Um silêncio dominava todo o espaço e só um eco ao fundo de marteladas metálicas, em algum lugar distante, se fazia ouvir. Parecia fechada. Ela ouvia distintamente as marteladas, uma pancada aproximando-se, vindos de algum lugar superior ao que se encontrava.
“Senhores passageiros com destino a Calmon Viana favor se dirigir para a plataforma 12”. Bradou uma voz monótona e triste seguida de chiados. Era a esperança de Tereza. Afinal, havia alguém na estação. Viu uma escada de ferro que levava para um piso superior e decidiu sair da plataforma em que se encontrava. “Plataforma 12”, pensou, “Vou para lá”. Ao olhar novamente para o piso superior e para onde a escada guiava, viu um vulto. Aquilo lhe causou um misto de alegria e aflição, pois pelo menos poderia ser alguém. Então precipitada subiu as escadas. No entanto, os degraus se tornaram ilimitados. Os pés de Tereza marcavam o ritmo com passos medidos sobre os degraus melancólicos: pé direito, pé esquerdo. Um olhar para cima e a escada não terminava.
De vez em quando ela sentia até mesmo o pisar de sapatos e botas e o modo como se de repente alguém esbarasse nela e recuperasse o ritmo. E o som metálico chegava cada vez mais perto – inteiramente desconhecido, um chiado aterrador muito alto e sem entusiasmo. Era evidente que havia na estação grande agitação. No entanto, Tereza não via uma alma sequer.
Sem fôlego e com o corpo totalmente esquálido, Tereza, por fim, chegou num lugar amplo, cheio de lojas fechadas e placas indicando destino e plataforma. Tudo, contudo, era um vazio dominado por um silêncio só interrompido pelas mesmas marteladas metálicas.
“CPTM informa: a prática de comércio no interior das composições dos trens é crime, seja cidadão, não contribua com essa prática”, bradou uma voz monótona e triste seguida de chiados. Tereza olhou para as caixas de sons espalhadas sobre o teto e teve uma terrível angústia. Agora a voz passava no interior de sua consciência, e seu cérebro encheu-se daquele chiado, sem ritmo, desarmônico e dissonante. Uma microfonia soava áspera, desafinada, ora cortante, ora vibrante – Tereza parecia ver o homenzinho ou mulherzinha que tirava o microfone, suspirava e falava: “Funcionário fulano de tal favor se dirigir a CSO… Funcionário Fulano de tal favor se dirigir a CSO!”.
Então o som se afastou. A multidão de pisares de sapatos esvaneceram – chiiiiiiiiiiiiii! A distância, o chiado soava ainda mais triste e feio. De vez em quando a voz metálica soltava-se enfadonha e monótona, dissonante. Finalmente tudo silenciou. O relógio do escritório tornou a soar, lento, lúgubre, mal perturbando o silêncio.
“Estou doida!” , pensou Tereza, com uma leve sensação de tristeza. Lamentava que não conseguira sair do escritório ainda, a taquicardia a tomara e novamente uma sensação de falta de ar retornara. Separava, molhava os dedos com a ponta da língua, contava e separava. Contava, de novo, batia as dezenas de papel na mesa, acertava milimetricamente as folhas e enfiava no arquivador. E de novo.
– Quero ir pra casa! – pediu com ternura.
E o relógio batia tic-tac. Agora faltavam apenas cinco minutos para que ela saísse do trabalho. E a vida do trabalho continuou, surda e insensível, cega e evidente, como o próprio tempo da eternidade. Em algum lugar, pessoas viviam. Em algum lugar, pessoas gemiam. Uma música tocou em algum lugar. Parecia que alguém estava apaixonado. Talvez ninguém mais amasse – talvez apenas perecesse no vazio do abismo.
A porta do escritório se abriu sem ruído. Um rosto escuro, de bigodes, apareceu contemplando a fragilidade de Tereza. Durante muito tempo ele contemplou Tereza, espantado – depois, sem dizer palavra, desapareceu tão silenciosamente quanto tinha chegado.
Os ponteiros do relógio tocavam e sua monotonia vazia continuava, durante muito tempo, dolorosamente. Parecia que as horas, cansadas, subiam uma montanha em direção ao precipício, e que a cada movimento daqueles ponteiros que cativavam e castigavam a atenção de Tereza se tornavam mais cansados e a subida se tornava mais difícil. Tereza fixou os olhos, e pode contemplar que os ponteiros davam três tremidas antes de dar um passo para frente. Os ponteiros pareciam escorregar, cair, descer deslizando com um gemido para o número anterior. Então tornavam a subir dolorosamente em direção às alturas vazias das 19h00.
Em algum lugar, pessoas sorriam. Em lugar algum, pessoas gemiam. E já estavam se aprontando para sair. Tereza não conseguiu sair as 19h00, faltavam ainda muitos papéis.
FIM
* * *
Está aí meu pesadelo tornado conto. Espero que tenha gostado. Claramente influenciado por nosso especial e grande An—-[1]
Não se esqueça de falar com Arthur sobre Rogério, e que, principalmente ele não conte ao tal de Cris sobre a treta…
Beijo
Venha nos ver logo.
Vanessa
Nota
[1] Aqui optou-se por ocultar a influência das moças presumindo leitores interessantes e espertos.
As fotos que ilustram esta carta são de Jeanloup Sieff.
Leia aqui A conversão de Heliosa.