Senti perfeitamente a transformação operando em meu ser. Um marco de separação entre dois tempos; um que foi e um que será. Um corte na vida. Por Heloisa
Leia aqui o conto de Tereza.
São Paulo, 05 de maio de 2016
Arthur,
Estou com tantas saudades de você. Hoje os tempos são sombrios e a ironia acabou-se. Não existe passado. Descobri que estou de fato grávida ― não sei se Vanessa comentou. Tive que ligar assim que soube. O meu estalido de ossos e nervos, a vida que procuro. Eis aí meu destino. E a farsa da concepção, decepção, com essa felicidade súbita que tem ainda muito da outrora angústia do ser ou não ser, mas que, contrariando a vontade absorvida há muitos anos, tem muito, muito de alegria. Estou grávida! Estou grávida! E, de repente, um desejo de ver minha cria sair das minhas entranhas. Isto é o fim de tudo e eu talvez queira o fim porque ele é só um começo. Mas, não posso negar que houve com esse fim um transbordamento de esperança. “A demonstração contraditória do Eu que sou…” Aqueles bibelôs ridículos que de repente se mostram tão encantadores. Um retorno aos sonhos iluminados de minha infância, com estrelinhas, azul bebê e mamadeirinhas.
Estou novamente em São Paulo. 2016.
Os dias passados com Alice e com o coletivo de mulheres não foram suficientes para determinar minha nova orientação. Findado o entusiasmo da novidade, começou a preguiça da rotina. Às vezes, os tons, qualidade da voz produzida durante um encontro abala minha sensibilidade. Corro à Florestan. Passo muitas tardes entre os livros que me animam por curtos espaços de tempo. Às vezes, nem deixo a biblioteca e durmo ali mesmo, num monte de vozes mortas que me dizem impropérios e me formam.
Esta satisfação intelectual não me basta… viver é melhor que sonhar, e a ação me convida. As teses contemporâneas me irritam. É necessário escapar do individualismo. A inquietação frequentemente aparece. Preciso ao fim e ao cabo fazer com que a crítica radical escape aos padrões de medidas positivas e se retire de qualquer fundamento ontológico. Preciso realizar. Fazer alguma coisa. Produzir. Não obstante, a doutrina tão supostamente “libertária” não me satisfaz ou há de minha parte falta de compreensão. Preciso de gente, preciso de você Arthur, preciso ser ouvida e ser respondida em minhas dúvidas. As grandes descobertas que faço em cima dos livros não quero guardá-las só para mim. As pessoas não sabem. Necessitam saber. Preciso gritar aos quatro ventos. Gritar mesmo que o fôlego falte. Somos fortes e nossa força excede tudo o mais. Por isso, é preciso doá-la.
Mas, as organizações e coletivos me parecem tão distantes. Receio, ou melhor acredito piamente, que nem mesmo estão preparadas para fazer alguma coisa efetiva se acaso o caldo entornar. Meia dúzia de comunistas e libertários vivendo em bares. O que faz essa gente se não saem de seus próprios séquitos de grupelhos?
Volto para o apertamento. Tento ler Fundamentação da metafisica dos costumes. Não me soa muito difícil ou trabalhoso e as minhas noites vazias só percebem Túlio ― militando, bebendo e fazendo uso de sua libido. Agora, ele se lança na aventura de conquistar Marta, uma estudantina bonita que nos ajuda com o francês.
Não que me importe com as aventuras de Túlio. Nada tenho por ele que se compare ao mínimo de ternura ou vontade de amar… A questão é que estou prenha dele, o que, em sua total ignorância, me causa repulsa. De fato, repulsa e indiferença, são o que tomam conta de nossa relação de colegas.
Mas dentro dessa indiferença saquei que o grande inferno formado pela nossa sociabilidade no capital não deve ser criticado a partir das pequenas relações diárias e cindidas, e muito menos numa perspectiva abstrata de um companheirismo vivo por laços de gênero. Esse fundamento ontológico da união é em último caso um fracasso tão tosco como aquele do trabalho como unidade de classe, ou de uma consciência de classe. Junto com a ideia do masculino deve-se pôr fim a ideia do feminino e nisso se encontra, para mim, a raiz da transformação radical.
Nunca menti para Túlio e nisso criamos juntos uma honestidade e lealdade violentas. Quantas vezes desejo lhe agradecer por sua franqueza maravilhosa, por sua impiedade que satisfaz meu orgulho de tudo poder suportar com calma. Apesar da repulsa, uma solidez no companheirismo advém da troca muda de olhares e entendimentos comuns.
Vivo muita confusão. Melancolia que me torna refém. Gastrites nervosas. As mesmas dores que me acompanham desde a meninice. Durante um mês, obrigando-me a viver como uma monja. Quase como uma asceta.
Nunca duvidei, Arthur, que sua sexualidade não fosse definida por nada senão por sua liberdade. Fico feliz pela audácia de desafiar os juízos apriorísticos. Não temos dúvidas de que o modo masculino da moderna formação está alicerçado no desenvolvimento da reprodução e produção do capital. A cisão, o sujeito e a própria noção de esclarecimento formam uma tríade indivisível como momentos necessários da fundamentação de nossa sociabilidade que precisam ser questionadas e destruídas.
Quero falar ainda sobre alguns acontecimentos. Minha energia física domina toda essa solidão e tristeza. O meu corpo reage. Quantas vezes busco dar fim a essa solidão andando pela cidade universitária. Quando julgo estar irremediavelmente esmagada, tornam-me as forças, o riso, a alegria, o apetite e o sono. Vontade. Muita vontade de viver.
Fui ver uma peça. Seria um descanso para mim e principalmente para minha consciência que não voltou ainda à produção ativa.
Pedi para Alice que não transferisse a reunião do coletivo ― não porque fosse boazinha, mas porque estava enfadada daquelas discussões bobas. Não estava a fim de tornar ao apertamento aquela noite e decidi alugar um quarto de hotel numa das travessas da Brigadeiro Luís Antônio.
No dia seguinte, me chegou a notícia que o MTST ― movimento do qual Alice faz parte ― chamava uma reunião de emergência. Fui com ela até lá à noite.
Surpreendeu-me a orientação dos debates e o entusiasmo geral dos trabalhadores pela defesa do governo. Encontrei um ambiente defensivo e hostil à crítica ao PT, pouca revolta contra anos de conciliação e entrega da luta. Conversei com alguns moradores que estavam ao meu lado. Um deles suscitou grandes dúvidas sobre um consenso de apoio e saída para as ruas na defesa da “democracia”. Foi inútil sua defesa ardorosa contra o consenso e apoio a Dilma ou ao PT. O trabalhador estropiou no centro da assembleia os termos mais simples, mas, de uma profundidade impressionante. Em vão.
No outro dia Alice chegou. Veio sem lenço e documento, apesar de encabeçar a proposta com o pessoal das ocupações. Conversamos longamente. Desejaria recordar as frases, a discussão calorosa que tomou lugar em minha casa. Não consigo. Apenas lembro-me: “Você precisa parar de acreditar que a revolução obedecerá a cartilha e os desejos morais dos autonomistas, você precisa trabalhar com a gente na ocupação”.
Não me convenceu. Tive novas amizades do próprio movimento. Adotei diversos tipos de afazeres. Mas me faltava aquele elemento de entrega. E chegou do nada. Ajudei a contragosto, Alice e Carol, na confecção de faixas que seriam estendidas nas ruas e saímos juntas. A tarde estava deslumbrante. Nunca me esquecerei das curvas silenciosas daquela tarde. Adoro sentir o odor do tempo e do vento. Todas as ruas estavam iluminadas e recebiam aquela secura do ar carregado de fumaças. Nos deslocamos até a Luz com intuito de encontrar as diversas companheiras. Eu pusera um vestido azul muito simples. Me sentia muito à vontade nas minhas botinas sem meias. Como estava fresco num horizonte ventilado e avermelhado. Eu estava enérgica com minhas amigas, misturadas a centenas de trabalhadoras.
Luz. Poluição. Cerveja. Toucinho. Café. Bolo de Fubá. Alegria até pelos desencontros com os grupos de segurança do ato. A importância do paladar. Do olfato. Tudo tinha um gosto só. Um cheiro forte. Nunca me esquecerei do que vi, ouvi e vivi ali.
As bandeiras, os olhares impávidos calejados. Depois tudo unido num só nó de braços, que foi o altar de minha conversão, da construção de meu sentido. A pele negra, as camisas vermelhas. Um fogo ardente. Uma vontade de abandonar toda aquela segurança no interior da FFLCH. A preta Jô encostada na parede da ocupação recebendo e dobrando as bandeiras. Quando me sorriu, foi para me convidar e me dizer que a casa dela era também minha casa.
A importância daquele momento. Sensações autênticas de um momento autêntico sem aquele desprezível olhar por cima dos ombros. As companheiras e o odor que nunca esquecerei. Não me atrevo a repetir as palavras da Dona Jô. Elas destruíram todo ceticismo e desprezo nutrido por uma luta que não era vã. Mas senti perfeitamente a transformação operando em meu ser. A iluminação súbita de um novo olhar para as mesmas coisas. Um marco de separação entre dois tempos; um que foi e um que será. Um corte na vida.
É claro que acreditamos que tudo aquilo que aprendemos em termos de “materialismo histórico” está correto; mas, sabemos também que vale tão somente para as relações desenvolvidas a partir do mundo do Capital. Criamos sim uma utopia ruim a partir do momento em que mantemos as inclinações, tanto marxista quanto anarquista, de voltar o olhar para uma suposta “superação” das formas de relação desenvolvida pelo capital. Se o próprio sujeito é metafisico que dizer, então, de uma classe? Dona Jô é como Álvaro de Campos, cansou-se de metafisica.
Senti por fim que estava valorizada minha existência no mundo. Ao lado das mulheres, mulheres verdadeiras, reais, ser mãe se transfigurou num outro valor. Mudou tudo que eu sentia antes. Ficou o doloroso da revolta, aquilo que se torna o motor que estimula toda as lutas futuras. Uma emoção e o grande sentimento de igualdade pela vida dos desgraçados. Não necessitava nenhum questionamento, pois as respostas surgiam nos gestos. Ah meu Arthur! Que diferença entre as lições de Dona Jô e das suas explicações intelectuais que me exaltaram provocando uma ilimitada curiosidade, mas nunca me tocaram. Dona Jô conseguiu chegar no meu interior. Ela era o próprio Absoluto porque era simples. Simplesmente uma mulher real. Bastava ouvi-la e eis tudo. Entendi finalmente o que prendia tanto Alice.
Foi então que me engajei finalmente e minha conversão a luta partiu com um sonoro: “Estarei com vocês no dia a dia. Não vou ao ato, mas ajudarei a construir a ocupação!”.
Assisti a uma autêntica reunião de trabalhadores.
Cheguei à reunião ansiosa e pensando que a despeito dos problemas; a vida daquelas pessoas era o que estava em jogo. Entendi, sobretudo, a covardia daquelas lideranças governistas que usavam esse pretexto para guiá-los na defesa de um governo que, como gestor do capital, havia lhes virado as costas há muito tempo. Era triste meu querido Arthur, mas, condená-los sem entender essa perspectiva é frívolo.
Entrei no gigantesco prédio abandonado onde a ocupação funcionava. Entreguei-me completamente. Só ficou o êxtase do encontro com algo visceral, fundamentalmente vivo, minha doação a causa dos oprimidos. Perturbada por esses acontecimentos descobri que uma crítica radical e coerente de nossa forma de concepção do mundo, daquilo que em contraposição nos forma, só poderia ser feita na denúncia da aparência de nossa própria subjetividade empírica.
Seremos obrigados a esclarecer nossas finalidades, agir e vontade subjetiva como aquilo que está sob a égide de uma estrutura fundamental que rege nossos desejos e nos priva do conhecimento de si mesmos e que é radicalmente empírico na construção de sua abstração. Não para que sejamos subordinados àquele Sujeito Automático, mas para conseguir visualizá-lo e por fim destruí-lo. A revolução. A luta de classes. A libertação humana. Por um mundo radicalmente outro de justiça social e liberdades fundamentais. Lutar por isso vale nossa vida, querido Arthur!
A entrada no movimento para mim é um privilégio que assombrou minha tranquilidade tão individualista até aqui. O convívio com os moradores, um presente que eu deveria honrar. Preparo-me para ser absorvida nesse ambiente de lutadores e lutadoras; de pessoas revoltadas e intransigentes em suas reivindicações.
Eu espero, Arthur, que você consiga me compreender. Nós sabemos que a eterna maldição lançada contra os opressores e a eterna alegação governista de que nas formas modernas de produção e circulação do capital seria possível uma organização melhor e mais humana, dependendo da vontade dos governantes, acabou por se converter numa terapia psicológica das mais idiotas para os mais idiotas dentre os “críticos” atuais. É nossa tarefa demarcar nossa posição supostamente “esquerdista”, mas sem abandonar a luta constante até que se evidencie isso por si. Pois a forma embora esteja morta ainda não revelou seu completo falecimento.
À reunião compareceram seis trabalhadores informais e cinco mulheres que me impressionaram profundamente. Assombrou-me Samantha ― uma moçoila ― discorrer com profundidade sobre o Capital em seus pontos mais obscuros. É preciso dizer meu querido, que ali a teoria não tem o distanciamento da vida. Ela está fundida na vida de cada um como algo que, se não lhe dá sentido, pelo menos, funciona como uma bússola para a ação.
Apesar dos termos ― valor de uso, troca, mais-valia relativa e absoluta ― tudo era empregado com uma simplicidade ousada e como se houvesse mesmo uma intimidade com aquele jargão. Ninguém sequer se preocupou comigo. Isso não denotava então algo absorto em indiferença. Pelo contrário, significava que o reconhecimento rolou e que agora eu era um deles. E assim, após a discussão me designaram como secretária de formação para as ocupações do eixo central de São Paulo.
E agora doravante essa será minha função nesses dias conturbados. O mais interessante é que não preciso abandonar minha vida estudantil, mas aliar e organizar minhas leituras com base na formação que proporei ao núcleo de trabalhadores das ocupações. Semana que vem estarei na República. Alice estará comigo me ajudando a levar essa tarefa.
Não posso conter, por outro lado, o assunto de uma angustiada carta que Vanessa me enviou dias atrás sobre seu relacionamento com Rogério e a briga que houve entre os dois. Ela teme que você faça algo de que fatalmente irá se arrepender. Você me diz que está apaixonado por esse Cris. E Vanessa em seu conservadorismo me mandou péssimas recomendações dessa figura. Me diga, não está pensando em se meter em confusão, não é?! Tome cuidado porque me parece que essa paixão está te arrastando para algo muito perigoso e outra; embora, não possa ficar indiferente ao que aquele canalha fez com nossa companheira, não podemos enfiar os pés pelas mãos e deixar o ódio nos guiar!
Eu vou precisar do dinheiro que você me ofereceu… não tenho certeza sobre o aborto. Se farei ou não. Estou completamente confusa. Tento esquecer que nesse momento algo se forma em meu útero. Preciso que você venha aqui me ver urgente, as cartas são frias. Preciso de colo. Conselhos. Independentemente da decisão quero poder segurar nas tuas mãos. Quero romper a solidão. Não disse nada a ninguém aqui sobre isso. Só para Vanessa e você.
Entre uma ação boa e má está a consciência para condená-la ou para aprová-la. A desgraça ou a fortuna consiste em que o trabalho é em ambos os casos o mesmo.
Não esqueça de me responder e venha me ver com urgência…
Beijos
Te amo.
Heloisa.
As imagens que ilustram esta carta são de Amanda Greavette.
Leia aqui a 4ª carta de Arthur a Heloisa.