Desejo poder explicar às pessoas, provar que não deviam sequer imaginar que eu fosse uma moça especial. Por Heloisa
Leia aqui a 5ª carta de Arthur a Helo.
São Paulo, 5 de junho de 2016
Arthur,
Estou arrasada. Você sabe como durante toda a vida pensei nos outros e nunca em mim mesma, agora sofro atrozmente, pela minha perda. É como se o fim coubesse apenas aos outros, como se o fim não coubesse a mim.
Como desafogo pela firmeza e controle no hospital, chorei copiosamente durante longo tempo. Embora eu quisesse tirar meu filho, perdê-lo assim sem mais, foi um choque. Imaginar que talvez pudesse mudar minha escolha na última hora, às vésperas do ocorrido, não me causa menos dor que o fim que teve o destino de minhas ações. Sei que a morte é algo inevitável e até mesmo sem importância, algo em que não vale a pena refletir; mas perder um filho, de repente, me é absolutamente insuportável. Relembro e percorro em pensamento todos os ocorridos de minha vida junto as escolhas que fiz, e tremo de medo ao imaginar que algo assim pode ocorrer; a contingência.
Lamento especialmente por não ter feito a escolha. Durante muito tempo eu pensava que tudo cabia nas minhas mãos e que a contingência era algo distante. Pensava num destino brilhante. Antes de isso tudo ocorrer, usava todos os meus impulsos e empenhos para ter controle sobre mim. Acordei e olhei um beija-flor na janela, considerei um símbolo de má-sorte.
Por uma razão qualquer, o fato de ter um nada crescendo no meu ventre me dava a sensação da potência no meu ser. Relembrando essa sensação, agora que tudo acabou, me afogo em lágrimas de piedade maternal. Cada vez que o relógio soa, ergo meu rosto manchado pelas lágrimas e penso ― como seria se tivesse me cuidado e mesmo optado por ter meu filho.
Acordei e minhas pernas estavam banhadas de vermelho!
Com as mãos juntas no peito, vestindo esse traje hospitalar que é grande demais e me faz parecer um homem ― um menino carregando roupas alheias ― caminho incansavelmente de um lado para o outro no quarto, no mesmo passo. Enrolei uma tira de pano, para ocultar minha nádega, e as minhas mãos pequenas, infantis, macilentas, tocam meu corpo como se fosse uma novidade, um choque para elas. O pano áspero desse traje arranha meu pescoço fino e branco, e às vezes me arrasto até o corredor para ver as novas mamães e seus sorrisos.
Caminho pelo quarto e, corada de vergonha, imagino que estou me justificando perante minha família. Tento me justificar por sofrer uma perda que não fora minha escolha. Escolha que mulheres e meninas de verdade não puderam ter, fiz tão pouco e me sinto muito mal. Com uma fé inabalável na força do caráter, imagino as pessoas sofrendo por causa da criminalização do aborto, lamentando a sorte, e me sinto tão envergonhada que enrubesço, como se, perdendo meu filho, tivesse cometido uma enorme e embaraçosa fraude do que sou.
No último encontro com Alice eu havia dito que estava pronta, mas agora que isso aconteceu, imediatamente mudei de ideia; e se ela, se outros pensassem que eu fazia aquilo para me distinguir, ou por covardia? E agora só desejo uma coisa: poder explicar às pessoas, provar que não deviam sequer imaginar que eu fosse uma moça especial. Gostaria de poder lhes explicar que tive culpa de, sendo tão jovem e insignificante, perder um filho e fazer, com isso, tanto estardalhaço.
Como uma pessoa acusada por um crime, eu procuro a absolvição. Tento encontrar algo que pelo menos torne mais importante esse meu sofrimento, dando-lhe realmente significado. Raciocino: “Claro, eu não queria ter filho. Mas…”
E como a luz de um candeeiro clareia com o fim do crepúsculo, assim a vida de meu filho e toda sua beleza pareciam brilhantes e luminosas comparadas a escuridão e cinza que invadem meus dias. Não tenho como justificar-me.
Mas talvez aquela coisa singular que trago comigo ― sonho de amor ilimitado, ânsia de viver grandes dias, ilimitado desprezo a mim própria ― fosse por si só uma justificativa para minha terrível dor. Eu sinto que não era minha culpa se fui impedida de fazer as coisas que poderia ter feito, que tinha desejado fazer, fui golpeada na soleira da escolha, aos pés da intenção.
E se fosse assim, se fossemos avaliados não pelo que fazemos, mas pelo que pretendemos ter feito, então… eu era digna de considerar minha escolha um erro? Com esse pensamento sou tomada de súbita tristeza. Não havia dúvidas nem hesitações: eu faria a escolha certa. E o certo me daria tristeza? Me arrependeria? Então porque dói o fato de ter perdido meu filho? Que tédio e silêncio obscuro! É como se eu já tivesse morrido, partido da terra e estivesse próxima da chama desconhecida da mentira e da morte, incorporeamente voo de encontro à minha má-fé.
Isto é a morte na alma!
Preciso de você!
Beijos
Te amo.
Heloisa.
As imagens que ilustram esta carta são de Paula Rego.
Leia aqui os quatro emails e um poema que encerram a série Cartas Estudantis.