Aplaudir o preso que sai da prisão em nenhum momento significa aplaudir os erros do movimento. Por Rafael Saddi

Esse artigo surgiu a partir de um comentário em resposta ao texto Miopia Objetiva e os Dilemas do Mártir de Ian Caetano. Publicamos na esperança de continuar o debate em torno das prisões de ativistas em um contexto crescentemente repressivo.

mortos_comunaEssas minhas palavras aqui não são uma discordância completa com relação a este texto. Eu, na verdade, acho que ele está certo no essencial.

Elas são mais uma tentativa de dizer coisas que não consegui expressar ontem em uma discussão com os amigos em uma mesa de bar. A tentativa, na verdade, de dizer que tem algo que não pode ser desconsiderado, e por vezes é, em uma análise pragmática. Vamos lá.

A frieza da análise política não pode jamais eliminar os significados mais íntimos que movimentam as pessoas que entraram nesta luta. Suas ações, por mais pensamento que tenham, só se tornam fatos por uma vontade, um sentimento de paixão vibrante, um senso de justiça que lhes faz calcular a necessidade de se arriscar por uma causa.

Não há bônus em ser preso. O único bônus pessoal é a solidariedade. E ela se dá de distintas formas, mas, sobretudo, pelos aplausos na saída da prisão, o abraço carinhoso e pelas palavras de afeto que te erguem de novo a autoestima tão massacrada dentro de uma cela. O olhar sobre o preso é de admiração, por vezes, sem dúvida. E isso não é um problema como quero aqui demonstrar. Mas, ele, esse olhar, é, sobretudo, de compaixão. Sentimos pena daquele que, por ter se arriscado ou não, tivera que passar por um momento tão brutal. Nos condoemos com a sua triste sina de estar algumas horas ou alguns dias sob a custódia do Estado, situação que nenhum ser humano mereceria passar.

comuna3Com a prisão vem conflitos inúmeros. O sentimento de impotência, a humilhação, a paranoia de se estar sendo vigiado e seguido, a sensação de culpa com relação aos amigos e especialmente aos familiares, os pesadelos noturnos incessantes, a certeza de que a Máquina contra a qual se está lutando é gigante e poderosa demais e a uma hora ela vai te esmagar como uma pequena formiga contra o chão. Desde que fui preso, em fevereiro, duas coisas pelo menos tornaram-se permanentes: a perda de concentração, a incapacidade de me deter por longas horas em qualquer coisa, posto que uma certa sensação de vigília constante foi instaurada e o preso se torna sempre ligado em volta, ao redor.

Ainda que esteja rodeado de amigos e em lugares vinculados a sentimentos de proteção, as lembranças, a paranoia, lhe traz constantemente esse estado de alerta que o impede de concentrar tempo demasiado em tudo o que não esteja ligado a essa experiência brutal. Em segundo lugar, a prisão me trouxe uma tristeza e uma certa raiva contida, um certo excesso de afeto negativo que acaba por gerar uma incapacidade de demonstração dos sentimentos mais positivos.

eugenevarlinO olhar mais triste, cansado, de quem esteve dentro do monstro e conhece os seus horrores, e a incapacidade de demonstrar completamente afeto pelas pessoas que ama, por maior que ele seja, justamente por carregar o conhecimento do que está acontecendo agora mesmo com milhões de pessoas que, diferentemente de você, não puderam sair. E, mais ainda, por carregar essa dor, esse vazio no peito, essa profunda injustiça da qual se sabe, e, sim, você é, vítima.

Esse sentimento não é somente dos presos políticos. É o sentimento de toda pessoa que já fora vítima de uma injustiça brutal. Ela carrega essa dor, esse olhar triste, essa raiva contida e ao mesmo tempo impotente dentro de si. E, com isso, se torna uma pessoa que tem dificuldade em expressar, ou o faz com habilidades prejudicadas, os sentimentos de amor e de afeto.

O resultado é que, pode acontecer, por vezes não acontece, que, longe do ex-preso conseguir, agora, depois de tudo, se apegar mais à família e aos amigos, ele acaba gerando transtornos, brigas ou decepcionando todo mundo.

Os pequenos presos, a molecada secundarista, menor de idade, se lança em um conflito dentro de casa por conta da prisão. E esse sentimento impotente, essa raiva contida, acaba desmoronando de vez as relações com pais e mães, e desmontando os relacionamentos amorosos. E isso tudo acontece sem, que, por vezes, os envolvidos saibam que todo esse conflito tem a ver com o maldito dia em que você foi preso.

comuna5Por fim, fica aquela sensação de que não era nada disto. Mas, também a sensação de que aquelas pessoas que te amam não sabem compreender o que é isso e como saberiam se você não consegue sequer expressar?

Nesta situação imediata, o ex-preso precisa enfrentar os seus demônios, esses inimigos internos grandiosos, que o leva a se afastar da luta, a criar conflitos em casa, a fracassar em tudo o que faz, posto que não há mais a concentração necessária e os afetos reprimidos te fazem decepcionar justamente aqueles que são, em sentimento, a antítese da prisão e do sistema repressor, embora, em atitude, possam atuar como uma extensão cruel dos mesmos.

O que importa aqui é que para enfrentar esses demônios, o ex-preso tem somente uma arma. Não tem fuzis para lutar, não se pode pela força destruir todo o sistema que lhe proporcionou a injustiça. Se quiser continuar na luta, ele precisa dos aplausos dos companheiros. Esses aplausos que os militantes que não foram presos lançam quando somos libertados. Ele precisa se convencer internamente, e ajudado pela enorme solidariedade que se cria, de que ele não é o culpado, de que sua prisão não foi em vão, de que ela, por pior que tenha sido, tenha gerado uma grande contribuição para aquilo que mais te importa: suas ideias, suas paixões, seu senso de justiça. Ele precisa, por fim, se convencer de que é grandioso, corajoso, e que sua atitude é nobre e exemplar (E, por vezes, nem sempre, mas, quase sempre, ele está certo). Que errado é este sistema que o oprime.

A sua prisão não pode ser sentida como fracasso. Jamais. Deve ser vivida como vitória dos valores nobres frente ao poder das armas e do dinheiro. Quem poderá tirar isso dele sem incorrer em uma atitude bastante insensível com sua condição conflituosa? Os erros, inclusive os erros que geraram a sua prisão e dos demais, devem ser avaliados coletivamente. Jamais em termos individuais. O único bônus, bastante pequeno frente a tudo o que o preso enfrentou, não lhe pode jamais ser tirado. Os aplausos por sua coragem. A admiração por ter sido firme e não se entregar. A força que demonstra que sua ação, coletivamente, nunca individualmente, inspira coragem e força em muitas outras pessoas. O que é verdade, gente. É verdade.

varlin3E, evidentemente, a compensação com o bônus jamais pode encobrir os erros. São duas coisas distintas. A demonstração de valor e o fracasso prático não são coisas contraditórias. Ao contrário, constantemente são coisas que convivem juntas.

Ter clareza dos erros e aprimorar coletivamente as táticas não significa dizer que a prisão não deve ser compensada pela inversão que atribui a um fracasso o êxito. O êxito não é ao fracasso, mas à atitude bastante nobre de não se entregar.

Aplausos ao preso que sai da prisão em nenhum momento significa aplausos aos erros do movimento. Significa simplesmente dizer: te admiramos, companheiro, levanta a cabeça, que estamos juntos.
Por mais que seus pais, seus amigos e seus familiares te digam o contrário, são Eles, os que comandam a repressão, é que estão errados. Pode ser que a admiração gere personalismo e arrogância ou mesmo um fetiche em ser preso. Acontece. E isso realmente precisa ser combatido.

comuna2Mas, neste mundo em que vivemos, o sistema, a repressão, ela e sua máquina cruel de gerar pânico, medo, humilhação e dor, essa máquina de destruir vidas e famílias, já nos dão, já fazem questão de nos dar, os motivos bastante concretos e certeiros de temermos cairmos em suas garras. Não precisamos que os companheiros, os amigos, os familiares, repitam o que o sistema inteiro já cria. Todos temem e todos preferem evitar.

O papel do movimento é outro. Não o de consolidar prisões como fracasso. Não o de demonstrar os motivos pelos quais devemos evitar sermos presos. Isso o sistema já faz. O que precisamos é, em primeiro lugar, enquanto eles espalham o medo, espalharmos a coragem, defendermos sim a nobreza de não abaixar a cabeça por mais que eles queiram que façamos.

E, em segundo lugar, ao mesmo tempo (veja, não há contradição) construir a cada ação e nas definições táticas e estratégias como continuar lutando de verdade, pra valer, sem que os danos sejam tão imensos.
Como enfrentar, ser vitorioso em nossas metas, sem que o Estado consiga colocar nossos amigos e companheiros valorosos, sob a sua custódia?

É uma guerra. Ganha quem lutar melhor e, nesta luta, contamos com a razão, mas, jamais poderemos abrir mão das paixões irracionais e da ética na conduta, que são, apesar de tudo, a nossa maior força e, possivelmente, a nossa única legitimidade íntima e exterior.

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As imagens que ilustram o texto são representações da Comuna de Paris e de Louis Eugene Varlin, liderança operária da Comuna

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