Cabe aos trabalhadores entender a necessidade de rompimento não só com as direções, mas com o conteúdo da conciliação. Por Thais Menezes, bancária do Banco do Brasil
Os bancários acabaram de passar por uma longa greve nacional, que durou mais de um mês. Foi uma dura luta de um numeroso e decisivo setor da classe trabalhadora contra um dos setores mais poderosos do empresariado. Um verdadeiro cabo de guerra em que estava em jogo a qualidade de trabalho e de vida de mais de meio milhão de trabalhadores. A luta de uma categoria que é conhecida nacionalmente por ser um setor organizado em suas campanhas salariais, um setor de tradição de luta e que conquistou com isso direitos importantes, como a jornada de 30 horas semanais.
Mas a resistência desse numeroso setor da classe trabalhadora ao aumento da exploração, à sobrecarga de trabalho, à retirada de direitos e à precarização dos postos de trabalho não foi suficiente para barrar ao menos os mais pesados ataques da Fenaban (Federação Nacional dos Bancos, braço sindical da Febraban) e do conjunto do empresariado e de seus governos nos últimos anos. A resistência dos bancários, assim como de todos os trabalhadores, tem sido impactada fortemente pelo aprimoramento dos métodos de controle e mecanismos de neutralização do movimento sindical construídos pelos empresários e particularmente pelo setor financeiro no último período. Um desses mecanismos é a manutenção de direções sindicais de conciliação e não de enfrentamento nas diretorias dos principais sindicatos do país, sobretudo São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro.
A luta dos bancários no último período foi sequestrada pelo poder da Articulação Sindical, corrente do PT que dirige majoritariamente os sindicatos da CUT pelo país. Corrente política que tem uma de suas maiores expressões na direção dos Sindicato dos Bancários de São Paulo, uma máquina, um verdadeiro complexo empresarial à serviço de outros interesses que não os dos bancários. O sequestro da mobilização da categoria bancária por essa corrente política foi agravado no último período pelo fato do mesmo grupo político ter se mantido no controle do governo Federal e de diversas prefeituras pelo país na última década.
O projeto desta corrente e de seu partido não é o de se enfrentar com os patrões, defender os interesses dos trabalhadores e impulsionar a luta pela mudança dessa sociedade. O projeto da Articulação Sindical e do PT é de conciliar com a classe proprietária. Fez isso nos governos Lula e Dilma, administrando os negócios dos empresários e favorecendo seus principais setores, o setor financeiro, o agronegócio e as empreiteiras. Faz isso nas nossas campanhas salariais, fazendo prevalecer sempre o interesse dos banqueiros e governos, às custas do sangue dos trabalhadores bancários, que têm sofrido com o adoecimento e altos índices de suicídio. A corriqueira abordagem que resume essas ações a mera “traição” das direções tem sem dúvidas o mérito de se situar à esquerda deste processo. Porém, para além de se contrapor ao problema em si, essa abordagem não explica a natureza da questão, e ainda nutre na classe uma perigosa ilusão. Para que o movimento de fato supere estas direções, é preciso que ele entenda o verdadeiro papel que cumprem, o da conciliação. Dentro do papel que se propõem, ao servirem aos interesses patronais, não existe, por exemplo, traição. É preciso superar este debate.
A década que passamos sob o controle duplo do PT nos sindicatos e no governo custou muito caro para a categoria bancária. A fórmula encontrada pela Articulação Sindical de atuação no movimento bancário durante os anos em que foi governo é simples e desastrosa. Uma narrativa de sucesso foi construída. Acordou-se pela superestrutura, na mesa única com a Fenaban, que mesmo sem fortes greves da categoria, a reposição da inflação seria dada, outorgada, greve após greve. Uma narrativa de sucesso, que se contrapunha aos anos anteriores, dos governos FHC, em que não houve aumento real e operou-se na lógica dos abonos. Mas o “aumento real” não foi conseguido necessariamente com fortes mobilizações da categoria. E todo acordo tem um preço.
Durante essa década de “aumento real”, o governo do PT e seu braço sindical, a Articulação, permitiu a triplicação da terceirização dos trabalhadores e deixou livre para o sistema financeiro o rebaixamento constante das condições de trabalho em todos os bancos. Foi permitido o desmonte dos bancos públicos, a venda de áreas inteiras do Banco do Brasil e a ampliação da sua abertura de capital. Todas as reestruturações necessárias à penetração do capital privado no Banco do Brasil e sua preparação na Caixa Econômica Federal para o mesmo processo agora em 2016 foi o preço que pagamos por esse acordo que assinaram em nosso nome. Uma bela narrativa de sucesso foi construída neste cenário. A narrativa de um “sindicato forte” e de um “governo bom”. A dupla função deste acordo fica expressa em duas visões importantes e interligadas que esta estratégia visa consolidar. A primeira, de que o sindicato faz a luta para e no lugar dos trabalhadores. A segunda, de que, somente votando em um governo “dos trabalhadores”, é possível obter conquistas.
Este curso, a serviço da manutenção de um grupo político no poder, custou muito caro para a classe trabalhadora e para os bancários em especial. Assistimos a um casamento perfeito. De um lado, um processo de reestruturação mais geral no campo do trabalho e de complexificação dos artifícios de sedução para a carreira, dificultando paulatinamente a adesão dos bancários às greves ano após ano. De outro lado, direções sindicais de conciliação com os empresários, fazendo o movimento sindical “se manter vivo por aparelhos”, como um doente no hospital. Neste processo a categoria foi sendo vencida. A cada ano deixando o movimento sindical um pouco mais nas mãos dessas direções e consequentemente cada dia mais enfraquecido.
Hoje, construímos uma espécie pitoresca de greve, que só pode ser entendida à luz da introdução acima. Filha mais legítima deste processo descrito, se expressa na sua mais desenvolvida forma na base sindical diretamente subordinada ao sindicato que dirige esse processo nacionalmente, São Paulo. A greve bancária chegou a um nível de fragilidade que se reduziu à greve nos bancos públicos, Banco do Brasil e Caixa Econômica. Sendo impossível aos bancários dos bancos privados, Itaú, Bradesco e outros, sequer cogitar aderir à nossa greve, por certeza de demissão. A luta da categoria se dá somente nos bancos públicos, que são na base de São Paulo ínfima minoria, cerca de 20% da categoria na cidade. Uma base que concentra as sedes dos principais bancos reúne 140 mil bancários.
A greve, que acontece somente nos bancos públicos, atinge hoje a adesão de uma parcela insuficiente dos bancários na sua principal base sindical, a mais controlada pela Articulação Sindical. A greve bancária em São Paulo tem sido feita como uma greve de fachada. O acesso da população trabalhadora aos bancos é impedido. Colam-se faixas de greve nas entradas das agências e em média 60% dos bancários continuam no interior das agências e departamentos fechando negócios e mantendo os bancos funcionando e gerando lucro, com a venda de produtos para os clientes de contas gordas e os clientes empresariais. O setor que adere à greve faz o que chamamos de “greve de pijama”, uma greve passiva, sem ativismo, sem poder de multiplicação, que nos fragiliza ainda mais. A adesão à greve é em geral baixa, feita na estreita medida de sua existência, para que atenda aos interesses de propaganda do sindicato e ao mesmo tempo de conciliação com os banqueiros, não afetando consideravelmente os lucros. Para que cumpra esse papel, é preciso manter um representante muito bem afinado com os interesses dos banqueiros na direção dos principais sindicatos.
Dentro disso, chegamos agora em 2016, em uma conjuntura de ofensiva mundial da patronal sobre os direitos dos trabalhadores. Reformas trabalhistas e previdenciárias estão nas agendas de uma série de governos pelo mundo, ameaçando direitos de trabalhadores das economias centrais às mais periféricas. Alemanha, França, Argentina, Brasil, diferentes pesos na economia mundial, ataques comuns aos direitos dos trabalhadores. Em paralelo a isso, desenha-se uma reestruturação mais geral no campo do trabalho. O objetivo é potencializar a retirada de direitos, para blindar os empresários da crise econômica criada pelo modo de produção capitalista, empurrando os efeitos da crise para as costas dos trabalhadores. A flexibilização dos contratos trabalhistas, a ampliação do trabalho informal, do desemprego e da precarização do trabalho, expressos muito bem na chamada Uberização das relações de trabalho, acontecem em paralelo. O setor financeiro responde com o seu projeto particular de reestruturação.
Uma pesada reestruturação do sistema financeiro se desenvolve com os chamados Bancos Digitais. Os bancos privados, com a fragilização do movimento bancário da última década, aplicam a chamada “modernização” com muita facilidade. As demissões são expediente comum pelo não cumprimento de metas e para a redução de custos ao sabor dos interesses de cada momento. Dentre os bancos públicos que restaram, o processo de “saneamento” das empresas a interesse do lucro se iniciou no Banco do Brasil, que foi fatiado e privatizado por dentro nos últimos anos. Tem hoje o posto de trabalho mais rebaixado e um ambiente de trabalho quase nada público. O assédio moral e a cobrança por metas avançou proporcionalmente à entrada dos acionistas na empresa. A Caixa Econômica Federal sobreviveu tempo demais do ponto de vista da inciativa privada como um banco totalmente público e agora em 2016 sofre com uma ofensiva violenta contra os direitos que ainda não tinha perdido, que se expressa muito claramente na norma interna RH 184, principal bandeira de luta contra a qual os bancários da CEF se insurgiram nesta greve de 2016.
O expediente há muito já utilizado no BB, de aposentar os funcionários mais antigos e de melhores salários antecipadamente e paralisar totalmente as contratações, está sendo cada dia mais aplicado nos bancos públicos, implicando em uma meta de redução da categoria nos bancos públicos pelas diretorias da Caixa Econômica e do Banco do Brasil. A digitalização das carteiras de clientes das agências ocorre como método de redução de custos e implica diretamente na sobrecarga de trabalho dos bancários, com mais clientes e menor número de colegas de trabalho. O corte de funções, para rebaixar os custos, o fechamento de agências e departamentos internos, a extinção de funções de caixa, da insalubridade de avaliadores de penhor são as ferramentas para viabilizar esse saneamento dos bancos públicos e preparar o terreno pra a maior privatização possível dessas empresas. A sobrecarga de trabalho, um expressivo rebaixamento salarial e um exponencial aumento do assédio moral, da cobrança por metas e do adoecimento são as consequências práticas dessa reestruturação dó setor financeiro na vida dos trabalhadores dos bancos públicos.
Chegamos a esse cenário de reestruturação no sistema financeiro e numa conjuntura de ataques dos empresários e governos com a categoria bancária desmobilizada e fragilizada. Este cenário atual extrapola e muito a simples questão de termos no governo um partido de direita mais clássico, com Michel Temer no comando. Nos últimos anos sofremos com muitos ataques aos direitos vindos do próprio governo do PT, se fossemos citar seriam inumeráveis. A venda de áreas inteiras da CEF, por exemplo, foi anunciada no próprio governo Dilma. A conjuntura econômica, não só no país mas no mundo, permitiu aos primeiros governos do PT um curto fôlego, que serviu de propaganda inclusive para tentar maquiar seu projeto de governar para os patrões. Hoje, a situação da economia é outra, o mundo todo sente as consequências da crise econômica com os planos de austeridade e as ameaçadoras reformas. Os empresários e os governos de todo o mundo avançam contra direitos trabalhistas, cortam na carne as previdências e os investimentos sociais. Nesta conjuntura portanto não haverá sequer reposição da inflação sem uma luta forte dos bancários que consiga impô-la.
É preciso entender que a falta de força do nosso movimento frente à conjuntura econômica nos impôs essa derrota e não a mudança de um governo. Por trás disso, existe também o oportunismo dos grupos políticos em crescer em cima da nossa derrota. À Articulação e ao PT é preciso completar a narrativa do aumento real de acordo com o governo de plantão (FHC, Lula, Dilma, Temer) mesmo que às custas do nosso sangue. Sabemos que um movimento forte dos bancários, de adesão massiva, seria a única forma de barrar o arrocho e os ataques aos direitos de qualquer governo. O resultado da nossa greve em 2016 mostrou à categoria como a reposição da inflação no passado era muito mais fruto de uma conjuntura econômica favorável e de um acordo do que uma luta concreta e forte da categoria que se impusesse frente aos governos e banqueiros e apesar de suas direções sindicais.
A proposta da Fenaban superficialmente empurra um reajuste de 8% sobre os salários, abono de R$ 3.500 em um acordo para dois anos, que promete somente a inflação (INPC) acrescida de aumento real de 1% para o ano de 2017. Por trás disso, está a assinatura de um acordo bianual, em uma conjuntura que os bancários precisarão de muita organização para a luta contra a reestruturação do sistema financeiro. Foi preciso colher os frutos de uma década de entrega da luta da categoria aos sindicatos de conciliação para aprendermos algumas lições. Precisamos retomar o movimento nas mãos dos bancários e recuperar o espaço da nossa greve, massificando a adesão, ganhando um a um para perto e fortalecendo a luta para além e apesar de suas direções. Sem isso, o futuro se dará como uma sucessão de derrotas.
Por outro lado, o ganho organizativo da greve nos bancos públicos de São Paulo mostrou que os bancários iniciam um movimento que extrapola o roteiro imposto nos últimos anos pela Articulação Sindical. Gerentes e outras funções comissionadas, que perderam a tradição de adesão à greve no último período, começam a se organizar e aderem à greve, em especial na sua última semana. A adesão real dos bancários em maior proporção na cidade mais importante do país assusta tanto a Fenaban como a direção do sindicato e motiva o desmonte da greve por ambas as partes. Os bancários na CEF conseguiram, em São Paulo, vencer a falta de democracia da Articulação Sindical e seguiram mais um dia em greve, rejeitando o acordo e reivindicando 20 mil contratações, a revogação completa do RH184, reajuste de 10% e acordo anual. Assim como em São Paulo, o Rio de Janeiro, Pernambuco e outras bases menores rejeitaram o acordo, mas não conseguiram seguir com a greve frente à operação de desmonte realizada no dia seguinte à rejeição da proposta. A adesão dos comissionados, entretanto, foi tardia, e fortaleceu a greve quando já haviam se passado mais de 20 dias. O rebote da Articulação e da CEF para reverter a rejeição da proposta, no dia 7 de outubro, mostrou também que somente um movimento muito mais amplo, forte e consciente pode fazer frente aos desafios. O encerramento de nossas greves é do interesse dos mais poderosos empresários de um dos mais importantes setores da economia. O investimento que depositam em nossa derrota não pode portanto ser enfrentado por um movimento fraco. Apesar dos avanços organizativos deste ano, é preciso reconhecer, portanto, a nossa fragilidade e a urgência que se impõe em construirmos um movimento à altura.
Entender o papel das direções atuais é um pressuposto para termos condições de tomar as direções corretas em todas as lutas da nossa classe. As formas organizativas de esvaziamento das nossas lutas partem das direções conciliatórias e só servem a elas. Estas distorções das nossas lutas precisam ser completamente destruídas e substituídas por formas organizativas efetivas para os trabalhadores e com conteúdo de classe definido. Para além do PT e da Articulação, outros se inscreverão para cumprir o mesmo papel. Cabe aos trabalhadores entender a necessidade de rompimento não só com as direções mas com o conteúdo da conciliação de classes. Não existirá mundo possível para os trabalhadores sem o rompimento com a outra classe. Não é possível combater o rebaixamento das nossas condições de vida sem romper definitivamente com o capital.
Cabe aos bancários e a cada trabalhador, em cada luta a partir de cada local de trabalho, estudo e moradia, rejeitar toda a herança da conciliação de classes e qualquer forma que venha a representar o mesmo conteúdo. O próximo período da luta no país traz consigo a tendência ao relançamento do velho, sob novas formas. É preciso lucidez da classe trabalhadora para não se seduzir com novas embalagens. Aprendendo as lições do passado e alavancando ações conjuntas dos movimentos dos trabalhadores em todas as suas frentes de luta, é possível impedir a retirada de direitos. Barrando a ofensiva contra os direitos a partir de organismos de luta dos trabalhadores, é possível ir ainda mais além e derrubar de cima a baixo o capitalismo.