Um espectro narcísico acompanha desde sempre os movimentos sociais que pensam ser algo “novo”. Por Ian Caetano

Este texto surge de algumas conversas que tive com honrados e honradas camaradas de ocupações universitárias de um local específico do país, associadas a observações e acompanhamento de outras experiências alhures por meio de relatos e de notícias, notas, manifestos, etc.

ocupacao_01Se a preguiça não fosse tanta, a fatiga atual menor e a urgência menos acachapante, proporia alguns dos comentários que se seguem com maior grau de generalização, pois que creio não serem problemas nem novos, nem exclusivos deste ou daquele setor da esquerda, nem deste ou daquele “extrato” etário ou sócio-cultural específico engajado nas lutas sociais, ainda que apareçam com gradações e peculiaridades a depender de cada uma destas coisas. Enfim, não o farei. Ainda que a tentação fosse grande agora. Mas deixemos de coisa e cuidemos do que interessa.

Por ocasião da criminosa investida do governo federal, expressa na (dentre outros instrumentos) PEC 241 (agora PEC 55), a comunidade universitária federal, Institutos Federais, escolas e, mais timidamente, alguns setores da saúde (também afetados pela Proposta de Emenda) têm se mobilizado com vistas a disputar a opinião pública em oposição à proposta e também para, materialmente, opor-se a ela por via da substituição de atividades acadêmicas e escolares ordinárias por atividades voltadas à problematização desta medida que, de onde quer que se olhe, contém sérios problemas. Desde a forma como foi encaminhada (sem qualquer discussão expressiva com a sociedade, em geral, ou com os setores mais diretamente afetados, em particular), até suas propostas objetivas, agressivas ao ponto da inviabilização do estado nacional no tempo em que se tenciona que fique ativa.

Estão já amplamente divulgadas as consequências catastróficas de tal PEC, tanto em seus efeitos diretos como acessórios. Não teria nada de novo a acrescer e não julgo apropriado repeti-los, uma vez que já se encontram tão bem abordados noutros escritos. O que me parece interessante propor refletir, de minha parte, tem mais que ver com alguns desdobramentos “práticos” e “táticos” das ocupações e de algumas questões mais gerais, todavia profundamente imbrincadas nas ocupações. Tanto do ponto de vista de sua autoimagem e enquanto processo de “formação” política para novas gerações de militantes, quanto do ponto de vista de suas potencialidades práticas frente às perdas sociais que elas afirmam querer enfrentar.

Proponho, portanto, o debate, que fraccionei em cinco pontos abaixo elencados. Fica informado que o primeiro capítulo é mais detido em questões de ânimo histórico-reconstrutivo, os outros quatro, seguintes, de cariz mais prático-organizativo.

Capítulo primeiro – concernente ao mito do “novo”

O primeiro tema que me proponho abordar é o do “novo”.

Um espectro narcísico que parece acompanhar desde sempre os movimentos sociais (sumindo e voltando) é o autodiagnóstico (ocasionalmente acompanhado da aquiescência deste ou daquele pesquisador/pensador empenhado em endossar movimentos sociais e/ou algo descuidado analiticamente) dos movimentos de que são algo “novo”, “sem precedentes” etc.

ocupacao02O espectro do “novo” desdobra-se concretamente em pelo menos duas narrativas, não inteiramente dissociadas, mas também não indistintas. A 1ª (essa até menos comprada por aqueles mais constantemente mobilizados politicamente) é a do “raio em céu azul”: a ideia de que “do nada”, “como que por um fiat divino”, emergiu do seio da terra gente a marchar pelas ruas, a ocupar espaços públicos, etc. Em geral essa primeira narrativa não sobrevive muito (ainda que retorne recorrentemente). Qualquer pessoa minimamente dotada de vontade e com alguma capacidade de observação percebe que movimentos não “surgem” e “morrem” consoante os ciclos mais ou menos evidentes de protestos (sejam eles de qual natureza for) como se fossem meros apêndices articuladores desta fatalidade histórica. Ao contrário, é justamente o empenho “madrugador”, a publicização de problemas políticos e sociais, a divulgação de discussões sobre ação política frente a estes, etc. tudo aquilo chamado “trabalho de base”, é que, antes de ir a reboque da “sublevação espontânea das massas”, gera-a. Ato contínuo ser contraditório chamá-la “espontânea”.

A outra narrativa é, desgraçadamente, dotada de maior resiliência. Quando os movimentos intitulam-se “novos” enquanto portadores do “novo”. De “novos” arranjos táticos/repertórios, “novos” enquadramentos dos problemas sociais e “novas” formas de sociabilidade e organização internas a estes mesmos movimentos.

Em geral, é fácil ceder à tentação de autoproclamar-se portador do “novo”. Em alguma medida, para citar um dos argumentos pró, esse discurso é utilizado na angariação de simpatia popular. Todavia, a pompa indissociável de seu uso barateado, acrítico, parece também inflar as imaginações de militantes e aderentes de maneira prejudicial. Assim, o “novo” vira a nova panaceia recursiva não só para argumentar por e justificar os arranjos táticos empregues, mas também para dispensar os movimentos de certas reflexões que, por certo, causar-lhes-iam profundo amargor, conquanto salutar.

O discurso do “novo”, enquanto imaginário coletivo dos militantes, está muito vinculado contemporaneamente a determinadas práticas observadas no que convencionou-se chamar de “novos movimentos sociais”. Um pesquisador interessado no assunto aponta que o tema ganha status analítico

Algum tempo após 1968, [quando] analistas e participantes passaram a falar de “novos movimentos sociais” que agiam fora dos canais institucionais formais e enfatizavam questões de estilo de vida, ética ou “identidade”, antes de objetivos econômicos amplos. […] estes movimentos eram alegadamente novos em questões, táticas e constituição. [1]

Estes movimentos passaram a se pautar pela “prefiguração” de certos comportamentos e ações no interior das próprias lutas, advogando que estes já eram a representação presente dos anseios à sociedade futura. Uma ideia que tende a privilegiar a posição de que os movimentos podem ser entendidos como fins em si, no sentido de que sua realização, na condição de um espaço de manifestação de coletividades “invisibilizadas”, ou de prefiguração de “novas formas de sociabilidade”, já encerraria per se um conteúdo político objetivo. Já seriam, em si, razões objetivas à sua própria existência. Existindo não mais na lógica de “ganhos” em termos de demandas explícitas, etc., frequentemente associada aos chamados “movimentos tradicionais” de ânimo mais voltado às questões do mundo do trabalho (supostamente).

As duas coisas podem (e em geral o fazem) coexistir. É claro que toda luta social, na criação de laços entre sujeitos e na tentativa imaginativa de propor soluções a problemas, tem sempre uma dimensão prefigurativa. E, na medida em que quase sempre os movimentos têm demandas de natureza exterior a si, são também “reivindicativos”. O ponto determinante, entretanto, é qual deles será privilegiado efetivamente no tencionado processo de organização estratégica da luta.

ocupacao03Com a crítica aos limites das demandas dos “movimentos tradicionais”, o “novo” re-equaciona as questões a serem pautadas, também as formas de fazê-lo. O protagonismo agora estaria na mão de subjetividades coletivas mais fluidas, invizibilizadas, ligadas a pautas de ordem de “estilo de vida”, “mudança de costumes”, “linguagem”, “opressão simbólica”, etc. e mais afeitos às pulsões de âmbito “emotivo”, “subjetivo”, do campo das “experiências individuais”. Esse fenômeno ocorre em oposição ao “objetivismo” da luta trabalhista, cujo nível de objetividade e racionalismo parecia fazer invisíveis demandas de outra sorte e ocultar atores de outros campos da vida social.

Creio não ser este o espaço para ficar referenciando e transcrevendo todos os dados históricos apresentados pelo autor que citei mais acima, de forma que deixo a referência bibliográfica ao final para quem interessar-se. O ponto é que, em primeiro lugar, nada disso é “novo”. Existe pelo menos desde o século XIX e, como coloca o autor, o seu caráter frequentemente “secundarizado” tem menos a ver com a veracidade histórica, mas com problemas de ordem intelectual-política posteriores. Como as práticas têm correspondência com as consequências que geram, tal qual meios as têm em relação a fins, se muito disso não é “novo”, os limites e equívocos que geram também não são.

A manutenção do mito do “novo” tem tido por consequência os seguintes fatores: i) purismo associativo, onde aderentes que se dizem “portadores do novo” recusam-se dialogar com outras formas de luta que possam pautar a transformação social noutros termos; ii) uma certa beatificação política, na qual, pelo novo, frente aos problemas, vale qualquer ação irrefletida ou pautada no ímpeto da vontade subjetiva, porque a novidade tem de se construir no campo da “prática”; iii) desta última decorre uma aversão ao que é chamado de “academicismo/intelectualismo”, sendo corrente que tentativas de refletir mais profundamente ações, estratégicas e táticas de maneira sistemática têm, em geral, a resposta de que “uma coisa é a teoria, outra é a prática”. Ora, claro que uma e outra são distintas, mas o que se tem mostrado nessa resposta é simplesmente o rechaço a qualquer tentativa mais substantiva de pensar sistematicamente os problemas sociais. Esta é uma das razões pelas quais a esquerda não tem saído do contingencialismo eterno em que se encontra e tem só sofrido revezes que, em geral, apenas tem conseguido tratar pela implosão interna na caça de “culpados”, ao invés de pensar mais amplamente questões de ordem organizativa, tática e estratégica que deem conta do atual contexto histórico e de suas decorrentes necessidades.

A soma destes fatores, quando colocada em movimento, tem tido por resultado a autodemissão da esquerda em termos de reflexão sobre si e sobre a conjuntura, deixando de pensar as raízes históricas de suas táticas e ideias (e os seus respectivos significados associados a contextos). Já que tudo é “novo”, só a experiência imediata terá algo a dizer. Além de negação arrogante da história, tal perspectiva só serve aos aparelhos de repressão e manutenção da ordem vigente.

Algo pode ser inovador em determinado contexto, o que é não só possível como potencialmente positivo. O problema é que devemos estar sempre atentos aos conhecimentos que a história tem a nos ofertar. Demitir-se de buscar saber as raízes e os sentidos que certas praticas tiveram em outros contextos de luta só serve a quem quer, em uma gaiola, se dizer “portador do novo” para fins de jactância, ou àqueles que nada querem de fato com a transformação social. Em geral os dois tipos coincidem.

Os capítulos que se seguem tentam abordar um pouco das questões de ordem práticas disso derivados.

Capítulo segundo – destinado às questões de administração interna das ocupações, ou: entre a experiência e o objetivo

Desde sempre, as ocupações defrontam-se com problemas decorrentes do imiscuir que ocorre, em seu interior, das várias esferas (ou “momentos”, ou “dimensões”) da vida de quem se propõe a ocupar por longos períodos algum determinado espaço. Quando isso ocorre, a tendência geral é que atividades inerentes a qualquer vida humana saudável: lazer, atividade produtiva, horas de sono, política, etc. tenham ocorrência em um único lugar. Claro que esse problema (mais adiante exponho por que isto é problemático) é agravado quando, no caso das ocupações mais recentes, é possível perceber a “moralização” do processo de resistência. Não é incomum ver este ou aquela ocupante vangloriar-se de ter passado N dias a comer “só macarrão instantâneo”, ou de ter usado por tantos dias “a mesma roupa íntima”.

Esse fenômeno tem a ver tangencialmente com um tema que eu abordei em outro texto neste portal publicado, mas no geral pode ser definido como um contrabando de valores algo “cristão-medievais” para dentro da militância, onde a autopenitência é vista como virtude e o martírio como sinal de honra. Credenciais militantes, cada “época” confere-lhe um espírito e um critério de outorga correspondente. Esta é outra que não é nova, está profundamente presente no anarquismo clássico, por exemplo. Figuras como Nechayev têm longas passagens sobre como o verdadeiro revolucionário de nada pode extrair prazer enquanto a revolução não vier. Outra foi Simone Weil, que, por exemplo, se recusava ao mínimo de conforto mesmo nas horas de sono, pois “se o povo sofre, ela também deveria fazê-lo”. Para ficarmos em apenas dois exemplos.

Claro que essas práticas nos movimentos contemporâneos adquirem nova aura, na medida em que são encarados num tom de “festividade” e de glorificação de uma estética e estilos de vida “lumpezinados”. A degradação das formas de vida, que em tese está a ser combatida, é, na verdade, glorificada.

ocupacao04Se, no dia a dia em geral, exercemos certas atividades – lazer, trabalho, estudo, descanso, etc. – (ao menos idealmente) em tempos e espaços diferentes, nas ocupações a tendência (que não é uma necessidade “estrutural” per se, mas uma decorrência destes valores e deste ethos mais em voga no nosso contexto) é confundirem-se as coisas todas não só no mesmo espaço, mas confundirem-se também no tempo. Isso pode acarretar problemas de toda sorte e é um dilema com o qual as pessoas compromissadas com os ganhos reais da luta social terão de se defrontar.

Se, por um lado, um regime de luta social paramilitar proibicionista, que não permita as pessoas se divertirem, se relacionarem, etc., é não só irreal (no sentido de não se sustentar no tempo) como contraproducente; por outro, um espaço de escapismo contínuo, pretensamente “lúdico”, também não oferece grande potencial enquanto mecanismo de luta.

Um recurso retórico à defesa deste último modus operandi apresentado tem sido frequentemente apontar nas ocupações espaços de prefiguração de “novas práticas de sociabilidade”, onde as pessoas possam fazer política e pensar novas formas produtivas e de relação social que não sejam pautadas por um caráter “bronco”, “sisudo” ou, simplesmente, “chato”.

A ocorrência prática observada concomitante a este discurso, todavia, tem sido a seguinte: as pessoas têm suas horas de sono reduzidas e sua qualidade precarizada; sua alimentação reduzida, em termos de número de refeições diárias, e prejudicada nutricionalmente; sua diversão “intensificada” nos estímulos, mas prejudicial pelo imiscuir contínuo e pela extenuação física e mental decorrente da prática continuada por períodos muito extensos… e concomitante a isso, a atividade política passa a não só ser confundida com essas coisas (quando as pessoas passam a achar que, vivendo assim, nessa condição tendencialmente degradante de vida e sociabilidade, estão a fazer política. Que esta é, em si, uma a forma de luta política), como começam a secundarizar as discussões de fundo político mais substantivo. Velho dilemas da chave “novas formas de sociabilidade” enquanto luta política vis-à-vis ganhos objetivos em relação às pautas que inicialmente mobilizaram a ação política. Não estou tomando lado em uma ou outra perspectiva, tão somente apontando que são duas coisas distintas e que têm de ser tratadas como tal.

Cabe pensar, já que o apresso pelas “novas formas de sociabilidade” parece tão incontornável nos meios da esquerda contemporânea, em especial mais jovem, quais as correlações entre as pautas objetivas que, manifestadamente, levaram à conformação de uma coalisão política e realizaram ocupações e as tais “formas novas de sociabilidade”. Como essas coisas se relacionam, como podem positivamente se relacionar, quais são seus contatos, como podem se compor, etc. Porque, de outra forma, escorregamos no mero ímpeto efêmero das vontades de uns quantos e umas quantas que se dizem mobilizar por pautas “X”, mas que na verdade estão buscando “Y”. O critério da clareza objetiva quanto à relação entre um meio de luta específico e seus objetivos tem de voltar a ser importante para a avaliação política, para além do mero endossar de “novas experiências subjetivas” dos sujeitos.

Capítulo terceiro – quando os afetos atravessam a discussão política, ou: entre o pessoal e o político

Uma característica bastante própria às formas “menos cimentadas” de luta social é a de que, na ausência de vínculos mais formais e protocolares com alguma organização, que sirvam de mediação entre os sujeitos políticos engajados, em geral os vínculos afetivos tomam essa função.

ocupacao05É impossível (e, se não o fosse, seria certamente bastante insensato) militar sem alguma mediação que identifique os sujeitos entre si. Em um partido à moda clássica, por exemplo, correligionários que nunca se viram antes (de duas unidades federativas diferentes, por exemplo) conseguem estabelecer o mínimo de acordo para eventual colaboração, na medida em que o vínculo formal com o partido estabelece a mediação entre eles, em termos de acordos, expectativas e partilhamento de ideais conjuntos, etc.

Nos ambientes de luta contemporâneos, na falta destes vínculos ou de outros que os substituíssem adequadamente (e pela alta volatilidade presente na participação da maior parte dos sujeitos), em geral impera a tendência de que os afetos de ordem privada cumpram este papel. Assim, é muito comum que as decisões de foro público e de interesse geral passem a ser interpenetradas por questões e motivações de outra natureza. Sabotagens sociais; contraposições em assembleia que não revelam sua verdadeira intenção; as mexericas de corredor, ao canto do ouvido desta ou daquela pessoa… e em um ambiente exponencialmente desgastante, do ponto de vista físico e psíquico, a regência pela ordem dos afetos sempre pode gerar tendências nefastas, que comprometam ganhos ou mesmo inviabilizem a luta.

Alguns setores da esquerda glorificam articulações políticas pautadas em laços afetivos, ou a potência da atuação política pautada pela emoção. Eu, sinceramente, acho bastante fadado ao fracasso o movimento que pauta-se nestes termos e muito triste a pessoa que media sua vida dos afetos, privada, pela política aberta.

Ato contínuo, proponho uma clivagem analítica para abordar a questão. Proponho chamar “patota” a articulação de fundo afetivo que traveste-se de articulação política com vistas à detonação de outras pessoas em espaços de disputa; e “conchavo” a articulação política (de natureza sectária, pois que inviabiliza o debate) que tem por fim a obtenção de ganhos deliberativos políticos nestes mesmos espaços. Estas coisas nunca se separam plenamente, em especial neste contexto que apresentei, de profunda precariedade de mecanismos gerais de equacionamento do debate e de processamento dos conflitos, todavia também não são de todo indistintos. Estou a abordar fundamentalmente a “patota”.

É importante observar e atentar para a tendência às “patotas” que podem eventualmente ocorrer, porque em geral a resposta a elas (uma vez mais pela falta, politicamente “orientada”, de estruturas mais gerais de organização) é a criação de uma outra “patota”, esta do “bem”, contra a “patota” do “mal”. Ao invés de avançar na proposição de mecanismos gerais de resolução dos conflitos internos, em instâncias mais ou menos capazes de (com orientação de manutenção da luta política) processá-los em prol da manutenção dos laços políticos entre os pares, o empenho tem sido nesse combate “à moda do estado de natureza”, que tem sistematicamente se mostrado eficiente apenas para rachar lutas, nunca para continuá-las ou fazê-las avançar.

Capítulo quarto – que propõe tratar da paranoia e da “contrainformação”

Em momentos de recrudescimento da repressão e de claras perdas de direitos políticos, o ambiente de luta adquire maior propensão a ser tomado pela paranoia. O culto ao purismo moral desinteressado, em geral expresso por aqueles que “cristianizam” as formas de luta, no sentido de dizer que “pouco importa a conjuntura ou os PMs aí à porta, vamos ‘resistir’”, não é produtivo. Todavia, pautar a luta também na paranoia via informações picotadas só serve para instaurar a insegurança e obscurecer a capacidade organizativa do movimento.

ocupacao06No seu “O que todo revolucionário deve saber sobre repressão[2], Victor Serge aponta, mais ao final do escrito, como a paranoia só serviu para fazer fraquejar os já espasmódicos processos de luta travados à época do império tzarista. É claro que a descrição geral que ele faz é formalmente muito bela, mas de difícil aplicação prática, que é basicamente: temos de estar sempre atentos, mas nunca paranoicos. Todavia, alguns apontamentos sobre o tema podem ser pensados.

O primeiro ponto mais substantivo diz respeito às próprias condições gerais de existência dos aparelhos de repressão enquanto tal. A repressão do estado, por razões de legitimação que não cabe aqui esmiuçar, é dotada de alta opacidade em relação aos olhos da sociedade em geral. Os mecanismos de “prestação de contas” e de “transparência” em relação a estes aparelhos são praticamente inexistentes, o discurso oficial público não precisa ser (legalmente falando) condizente com a realidade da prática repressiva e vice-versa. Eventuais informações (em particular as ditas “extraoficiais”) às quais o movimento tenha acesso devem ser tratadas, taticamente, sempre como possíveis “traços falsos” ou “vazamentos” deliberados.

As razões para que a repressão haja desta forma são diversas, desde informações que sirvam para instauração de pânico e confusão geral entre militantes, até “vazamentos” com intuito de rastrear os caminhos pelos quais a informação circula internamente entre ativistas em luta. Isso serve não só para observar pontos de relevância dentro das redes de militantes, como serve também para estabelecer, por exemplo, pontos de infiltração.

Os aparelhos de repressão sofisticaram-se sobremodo. Dotados de massivos investimentos, compõem-se de vasta tecnologia (material e intelectual) para a desagregação das lutas sociais. Subestimá-los é equivocado.

Não se trata de desconsiderar informações, ao contrário. Capacidade preditiva sobre o futuro, em termos de embate, é das coisas mais importantes ao êxito de uma luta política. Todavia, espalhar informações, por mais calamitosas que sejam, pode ser uma ação feita de diversas formas, algumas destas formas podem gerar o pânico, outras podem gerar saldo positivo.

Uma vez mais, a questão está fundamentalmente na construção coletiva de mecanismos de debate, aferição e proposição acerca de novas informações, como tratá-las, como divulgá-las, etc. Na ausência deste tipo de mecanismo, em geral, novamente, imperam os laços de afetividade como critério de confidência de informações “privilegiadas” eventuais. Via “bochicho” (e, na passagem entre um ouvido e outro, eventual eufemisação ou hiperbolização), a notícia vai se espalhando como algo de “grande importância e calamidade”, e como o que coroa a fofoca nunca é a discussão racional sobre o tema, mas o culto ao espetáculo do possível evento, a ação fomenta não o alerta das pessoas envolvidas para eventual tomada de posição, mas a paranoia catártica coletiva.

Capítulo quinto – da horizontalidade e das lideranças

Outro aspecto interessante sobre estas práticas organizativas recentes tem a ver com o mito da horizontalidade. Como dito anteriormente, concomitante às formas cada vez mais fluidas de estabelecimento de vínculos que façam mediação da relação entre os sujeitos políticos, dois fenômenos podem ser observados: i) maior efemeridade da participação geral, facilitada pela falta de comprometimento formal e endossada ideologicamente pelo imaginário político mais em voga de que é o interesse individual puro e simples deve ser o motor da automobilização; ii) na falta de vínculos mais objetivos que estabeleçam os papeis a ser desempenhados por aqueles engajados na luta, o desempenho das funções pertinentes e indispensáveis à realização desta (assembleias, protestos, manifestos, logística, etc.), essas funções passam a se cristalizar tacitamente (ainda que haja o esforço de rotatividade e coletivização) em determinadas pessoas.

apocalyptic-landscape-1933Na ausência de critérios mais formalizados que permitam aos sujeitos acessar funções determinadas dentro de processos políticos, ou de observá-los com maior clareza, outros precisam aparecer. Em geral: i) recorrência participativa, ii) traquejo para equacionar interesses divergentes em processos de disputa (assembleias, etc.) e iii) disponibilidade de tempo e disposição superiores à média geral das pessoas empenhadas no processo são os critérios utilizados. Daí é questão de cálculo, se a tendente cristalização formal presente em geral nas formas “tradicionais” de organização é pior, melhor, ou não muito diferente da cristalização tácita presente nas formas mais “recentes” de organização.

Por razões diversas, pessoas que se enquadram nas características descritas assumem papeis de referência. Não são lideranças no sentido partidário ou sindical do termo na medida em que i) não foram formalmente eleitas e ii) não desempenham função de mando formal em relação aos processos decisórios ou deliberativos; todavia, são lideranças na medida em que dispõem de capital político superior à média geral dos aderentes, tendo assim algumas projeções superiores. Por exemplo: falas em assembleia contam com atenção mais detida do que a média geral das falas de outrem; propostas realizadas contam com maior aquiescência geral e, quando (e se) debatidas, é-se feito com maior zelo; no caso de problemas ou de questões a serem resolvidas de maneira mais imediata, geralmente é o nome desta figura de liderança que é lembrado. Se, por um lado, isso pode ser visto como um fardo, por outro é pertinente notar que, em sendo notificado constantemente da maior parte das decisões e da maior parte dos problemas, a figura de liderança tácita detém controle mais ou menos sistemático, tendencialmente crescente e reiterado toda vez que este “ciclo” se refaz, da totalidade dos acontecimentos da ocupação ou do movimento de luta em geral, de tal sorte que pode não só projetar com maior acuro suas propostas (e decidir em que momento é oportuno fazê-lo, etc.) como consegue também organizar toda sua forma de atuação a partir disso. As informações lhe chegam em maior número, mais diversas e mais recorrentemente em relação ao restante das pessoas mobilizadas.

Num primeiro momento podemo-nos sentir tentados a culpar a gana desta ou daquela pessoa, no sentido de disputar ativamente a manutenção destas práticas e destas condições gerais de organização, que lhes permitam reproduzir suas formas de poder. Embora tal caso exista e seja mesmo recorrente, politicamente articular a crítica desta forma é moralizá-la. Ao invés de apostar na elevação moral daqueles que compõem a luta, devemos pensar mecanismos que a articulem de modo a não deixá-la ser penetrada por tais intentos. Portanto, devemos pensar formas de articulação política que eliminem estas coisas. Vale lembrar que uma “liderança” só se forma com a aquiescência de uma “base”. Cabe a esta “base” estruturar-se politicamente de modo a não deixar que isso ocorra.

Capítulo conclusivo – das incertezas e potencialidades

Diferentemente do que, à primeira vista, este texto pode dar a entender, ele não é inteiramente crítico aos processos e práticas que descreve. Muitas destas saídas surgiram frente à necessária crítica às formas mais engessadas de ativismo, que precisavam e ainda precisam de superação. Surgiram também em combate às formas cada vez mais sofisticadas de repressão, frente à qual diversas das ditas formas tradicionais, ou sucumbiram, ou se afrouxaram.

Não, o que este texto tenta é trazer declinações (algumas especuladas, outras reais) destes repertórios pelos quais a esquerda tanto se apaixonou no passado recente. Se há algo a que este texto é ostensivamente crítico, é precisamente à “paixão” (para não dizer fetiche) que certos setores da esquerda passam a ter por determinadas formas de ação e seus respectivos repertórios, o que na prática transforma a atuação política em mística, em rito viciado. Casado a isso o culto ao purismo dos valores (que descamba rapidamente em culto do irracional) vis-à-vis uma abordagem da luta menos “subjetiva” e mais objetiva, propositiva e racional.

2575-2Alguns dos dilemas aqui abordados, boa parte, decorrem, a nível de repertório de ação de coletividades associadas, da crítica a estruturas organizativas que deem processualidade à luta (ainda que a crítica seja necessária), sem o preenchimento adequado do vácuo deixado pela negação destas estruturas. Assim, critérios voláteis, pouco objetivos e “morais” passam a encontrar lugar para manifestarem-se. Um outro problema disso derivado, conquanto ligeiramente distinto, pode ser tratado na chave do “pessoal” vis-à-vis o “político”. Quando a “amizade” vira o critério da partilha de informações ou da aquiescência de uma proposta; quando uma proposta que parece taticamente bem orientada, mas deixa de ser endossada por picuinhas de ordem privada.

Enfim, tudo isso foi abordado nos capítulos deste texto. Propus-me, em especial no terceiro e no quinto, apresentar categorias analíticas que sirvam para que sujeitos interessados na transformação social possam observar estes problemas na prática, em sua ocorrência. É claro que a dinâmica prática revela-se sempre mais complexa do que as reduções analíticas. Mas se a redução analítica coincidisse com a realidade, de nada ela serviria. De que valeria um mapa em proporção 1:1 em relação ao espaço que representa?

Nos sucessivos revezes que a esquerda tem sofrido expressa-se a sua atual incapacidade de fazer frente às investidas que tem sofrido. Repensar suas práticas, repertórios e ideários, portanto, faz-se a necessidade primeira do nosso tempo. Sem isso, só amargaremos derrotas.

Agradeço profundamente a Francisco Tavares, que fez comentários à versão inicial do texto.

Notas
[1] Tradução minha de CALHOUN, Craig. “New Social Movements” of the Early Nineteenth Century. Social Science History. N 17. V 3, 1993, p. 385.
[2] SERGE, Victor. O que todo revolucionário deve saber sobre repressão. In: FUCIK, Julius et. al. A Hora Obscura: testemunhos da repressão política. São Paulo: Expressão Popular, 2001.

As imagens que ilustram o texto são obras de Otto Gustaf Carlsund

5 COMENTÁRIOS

  1. Caro Ian Caetano,
    O teu artigo me foi e é bastante útil para pensar essa jornada de lutas sociais contra as reformas de Estado da última hora no Brasil. No geral concordo e muito com suas considerações. Acontece que, considerando que os interesses de classes contraditórios e em disputas ideologizam-se e materializam-se tanto no Estado Restrito quanto no Estado Amplo, podemos ter em conta a compreensão de que essas reformas no interior do Estado Restrito, sobre a prestação de serviços públicos e em sintonia com interesses do Estado Amplo, não estariam a serviço da “inviabilização do estado nacional” mas sim de novas formas de estruturar tanto o Estado Restrito, no sentido de diminuir seu alcance na prestação de serviços, quanto o Estado Amplo, aumentando seu poder de condicionar as decisões tomadas no interior do Estado Restrito e o alcance de seus processos de produção de mercadorias/serviços por sobre territórios que hoje não se encontram completamente dominados pelas classes burguesia e gestores a ponto de serem tão lucrativos como podem a vir a se tornarem.
    As novas formas do Estado Restrito e do Estado Amplo, que não são em tudo novas mas que carregam impactantes projetos de transformação do tecido social e do capitalismo brasileiros, serão construídas por dentro e a partir do jogo de forças de interesses contrários. Não é o “estado nacional” que está em jogo, mas sim as formas das relações de produção e de apropriação de algumas mercadorias/serviços que ainda encontram no interior do Estado Restrito enormes espaços tomados por instituições que materializam essas relações sociais voltadas à prestação de serviços que, em sua instância mais concreta – em grande medida ainda ignoradas por desconhecimento ou oportunismo político – já estão ligadas, a seus modos, à manutenção da produção e consumo de mercadorias, ou seja, à manutenção do sistema capitalista. A partir dessas ideias penso que todo o transtorno atual decorre da necessária manutenção do sistema econômico e não da construção de um projeto que porá fim ao “estado nacional”. Eis o capitalismo brasileiro em sua nova fase, mais internacionalizado/globalizado, oferecendo novas e velhas mercadorias sob novas e velhas formas de exploração. Derrotar essas reformas é o mesmo, para o bem e para mal, que impor a manutenção de uma fase do capitalismo cujas as suas classes dominantes objetivam e se esforçam por superá-la.

  2. Agradeço o comentário lisonjeiro, Observadora Atenta. : ). Fernando Paz, concordo bastante com tudo que dizes, ainda que não opere muito analiticamente na chave explicativa do Estado Amplo e do Restrito (embora conheça as categorias). A verdade é que a parte introdutória do texto acabou sendo bastante reduzida para privilegiar – em termos de espaço – o restante da discussão. Passo ao largo (e, por isso, com algumas simplificações que podem levar ao erro) da questão porque ela é, por assim dizer, a “motivação” atual das lutas, de modo que é importante referenciá-la para a compreensão mais ampla do processo. Mas foi como disse ainda na introdução, justamente por já terem vários textos pensando o tema (diversos neste mesmo portal), acabei tentando privilegiar outros aspectos da dinâmica atual das lutas. Em resumo, concordo com o que dizes.

  3. Ian, teu texto me fez lembrar um cena vivida:
    Era uma ocupação de reitoria, primeiras semanas então a coisa tava fervendo ainda, muita gente interessada mesmo entre estudantes que não frequentavam tanto o ambiente do mov. estudantil: como você bem expôs, muita gente interessada em “novas formas de sociabilidade”, etc. Bem, me lembro de estar tranquilo na sala onde funcionava a “comissão de comunicação” e uma rádio-ocupação que provavelmente era mais para curtir música alí mesmo do que transmitir qualquer coisa para fora (nessa época o que pegava eram os blogs, não havia streaming nem redes sociais tão dinâmicas como hoje). Um dos que “pilotavam” a música teve a incrível ideia de instaurar uma assembleia ali mesmo para aprovar a moção de acender um baseado coletivo, pois a assembleia geral havia votado pela proibição do uso de drogas ilícitas nas dependências da ocupação. A moção foi aprovada pela assembleia relâmpago (deveriamos ser não mais de 15 pessoas). Quando o baseado ainda circulava, entra na sala, de passagem, um militante com a pinta mais militantosa que você pode imaginar — mochila leve nas costas, jaqueta abrigada, um boné desses bem che guevaroso, verde oliva com estrelinha –, olha a todos com cara de decepção e dá uma bronca em geral. O argumento do “mas nós decidimos em assembleia local” até chegou a ser esgrimido, mas já num tom completamente culposo.

    Quando se é jovem e sem muitas experiências organizativas ou de luta, esse tipo de TAZ hakim beyiniana parece ser o sentido da frase “se não posso dançar, não é minha revolução”. Com o tempo, se o ativismo sobrevive ao fim do período estudantil, logo nos damos conta de que a metodologia utilizada por setores lumpen-individualistas é formalmente a mesma das burocracias: passar por cima de decisões coletivas por meio de assembleias secretas. E veja bem, assembleias! Pois é necessário ser burocrata com legitimidade, assim como o individualismo de um pequeno grupo também deve ser imposto por meio de rituais democráticos.

    Acrescento uma última coisa, no que diz respeito ao que você chama de lideranças. Bons oradores, pessoas com raciocínio rápido, com facilidade de iniciar novas relações, de conversar com oponentes políticos, com maior bravura e valentia, com mais iniciativa de ir descobrir onde fica o quadro elétrico da escola ou faculdade, de armar um esquema de segurança, etc, etc, etc. Mais do que lideranças, os ativistas com estas características são quadros em potência ou mesmo em ato, e talvez mais do que equilibrar sua influência, o coletivo deve conseguir tirar o melhor proveito de seus aspectos técnicos — não vão colocar o companheiro gago para dar entrevista com a midia. Muitas vezes são estes os companheiros que acabam ensinando aos demais as diversas formas de realizar de forma hábil tais atividades, já que ninguém nasce sabendo nada e todos levamos às lutas a bagagem que trazemos de muitos outros momentos da vida. O desafio, como creio que você não deixa de apontar, é que isso não se transforme em amiguismos e disputas de micro-facções onde os aspectos técnicos das tarefas são colocados de lado para prevalecer a motivação secretamente ou abertamente faccional de uma decisão.

  4. Ian, uma parte do teu texto me lembrou uma cena que eu vivi em uma ocupação de reitoria há uns anos atrás. Era ainda nas primeiras semanas, tinha muita gente participando para além do mov. estudantil tradicional, uma noite eu estava tranquilo na sala da “comissão de comunicação”. Na época as redes sociais não eram tão dinâmicas e a difusão era mais na base de blogs. Nessa sala, como parte da comissão, tinha uma rádio-ocupação funcionando, mas nem lembro se faziam streaming, acho que era algo mais para quem estava na ocupação mesmo curtir um som. Pois bem, um dos dois caras que estava pilotando a rádio de repente joga na roda uma proposta: assembleia local para decidir se acendiam um baseado ou não (tendo em vista que a assembleia da ocupação proibiu as drogas ilegais dentro da ocupação). Éramos umas 20 pessoas no máximo naquela sala. Nem lembro se houve voto contra, abstenções, o que fosse. Ganhou a proposta e o banza começou a girar. Logo entra na sala, de passagem, um típico militante — até a boina meio guevaroza esta lá em sua cabeça — e deu a bronca na galera, que já se sabia culpada mesmo com o argumento da assembleia surpresa.

    Acho que esse episódio ilustra bem o ponto de contato entre o lumpezinato liberal e a burocracia tradicional: decisões secretas feitas por detrás do coletivo usando uma roupagem “democrática”. Seja para impor a vontade de um pequeno grupo num sentido alheio à luta, seja para alterar o sentido mesmo da luta, o que não falta nunca é perversão das formas democráticas para melhor alcançar os objetivos próprios, sejam eles capitalizar para um partido, seja para instalar as “formas de sociabilidade ”’transgresivas”'”, tão correntes na sociedade burguesa, dentro das comunidades de luta.

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