É isto um movimento de “classe média”? Dificilmente. Por Manolo

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2. As raízes práticas e ideológicas dos assim chamados “autonomistas”

Antes de iniciar qualquer debate em torno da tática e da estratégia, é preciso entender quem luta, e contra o quê. Tarefa que se consegue apenas aproximativamente, dado o fato de que nas manifestações de junho de 2013, pico da influência dos assim chamados “autonomistas” na política brasileira recente (houve outros)[1], ter havido manifestações em pelo menos 76 cidades brasileiras, e que elas representam apenas 1,3% do total de municípios brasileiros; se é contra esta ínfima parcela da população brasileira que se agita tão veementemente a acusação de falta de estratégia, ou bem os “autonomistas” são revolucionários perigosíssimos, capazes de imensa influência sobre os destinos políticos da classe trabalhadora, ou bem o “autonomismo”, tal como tem sido tratado nos últimos tempos, é um espantalho, um artifício retórico para combater algumas práticas que tentaremos expor mais adiante.

Aqui não apenas surgem os limites de uma teoria política que não consegue sequer mais aplicar seus fundamentos à análise concreta de situações concretas, mas igualmente não sabe reconhecer no que vários militantes e organizações qualificaram como “recusa à política” e “crítica às instituições políticas” exatamente o que são: manifestações políticas.

Tem razão quem apontou, então e agora, bases conjunturais, estruturais e de crítica ao PT como pano de fundo para o que chama de “recusa”, de “crítica às instituições políticas”. “Autonomistas” de décadas atrás, hoje transformados num campo conservador dentro da esquerda pelo fato de terem sido apeados do poder no embalo do impedimento de Dilma Rousseff, souberam interpretar a “recusa” política das greves de 1978-1980 como sintomas da reorganização da classe trabalhadora (ou de setores dela) a partir de suas necessidades de trabalho[2]. Pode-se argumentar, com certa dose de razão, que a mudança de abordagem da “recusa” justifica-se, pois o conteúdo de classe desta recusa mudou de lá para cá. Que estes manifestantes de agora não são “trabalhadores”, mas sim a “classe média”, esta recorrente esfinge para o marxismo.

Se falo em “esfinge”, é por conceber como paradoxal comprovar estatisticamente a subsunção real do trabalho ao capital, a “proletarização” de profissões liberais (aspeio por não achar o termo adequado, apesar de vê-lo recorrentemente no debate sobre estratificação social), a ampliação do assalariamento como regime geral de trabalho e, ao mesmo tempo, perceber que se persiste a falar de “classe média” nos debates políticos como se se tratasse dos velhos profissionais liberais, pequenos comerciantes e funcionários públicos de baixo escalão que Marx, em seu tempo, chamou de pequena burguesia. Há algo estranho nisso, embora poucos se apercebam desta aporia.

Para ficarmos apenas no lugar onde as manifestações de junho tiveram mais visibilidade midiática (São Paulo), pesquisa do DataFolha sobre a composição da passeata do dia 17 de junho apontou que 22% dos manifestantes eram estudantes, e 77% tinham nível superior, e do total de manifestantes, 53% tinha menos de 25 anos[3]. Esta pesquisa não foi inocente; a partir dela a Folha de São Paulo pôde construir parte de sua estratégia de influenciar as manifestações a partir de fora. Desta sondagem inicial pode-se inferir que em São Paulo pessoas jovens com nível superior eram a absoluta maioria dos manifestantes.

Pode-se deduzir daí que a “classe média” era a maioria na passeata, para que a ressurreição do péssimo artigo do professor Gorman se justificasse? Dificilmente.

Em primeiro lugar, porque depois de sucessivas reformas universitárias, que terminaram por expandir enormemente o setor privado do ensino universitário e, posteriormente, por incluir nas universidades públicas incontáveis estudantes do ensino público e estudantes não-brancos pela via das cotas, o perfil do estudante universitário mudou. Se até a década de 1990 e meados da década de 2000 era possível dizer que a maioria dos estudantes universitários era de classe média, hoje, “a olho”, pode-se dizer que o perfil de classe da maioria dos universitários varia entre a classe média baixa (4 a 6 salários mínimos) e os estratos da classe trabalhadora com renda média e baixa (vindos de famílias com renda mensal entre 2 a 4 salários mínimos).

Aquela classe média “clássica”, com renda mensal familiar maior que R$ 5.000,00, é cada vez mais minoritária nas universidades. A depender do curso em questão, o perfil de classe muda, mas os cursos tradicionalmente elitistas (medicina, direito, engenharias, etc.), à exceção do curso de direito, não foram massificados – o que se verifica facilmente pelos clamores do mercado imobiliário pela formação de mais engenheiros, ou pelo rebuliço causado pela vinda de médicos cubanos para o interior do país. Os cursos universitários mais massificados são os de administração e direito. Em especial quando se fala do curso de administração, o perfil de classe de seus estudantes é o de trabalhadores que buscam formação para ascender dos postos semiqualificados de trabalho para postos qualificados; no caso de direito, trata-se da tentativa de ampliar o leque de concursos a que se pode concorrer. Nos cursos onde a elitização é tradicionalmente menor (ciências sociais, economia, fisioterapia, enfermagem, artes plásticas, pedagogia, etc.), os estratos de menor renda da classe trabalhadora dominam; com a melhoria das condições econômicas da classe trabalhadora até 2013, sua entrada nestes cursos aumentou enormemente.

Daí dizer: é possível associar imediatamente as manifestações à “classe média”? Dificilmente.

Quem esteve nas ruas foram, majoritariamente, trabalhadores qualificados. São jornalistas a quem se impõe o “frila” como regime normal de trabalho. São estudantes universitários que optaram por enfrentar a precariedade do trabalho prolongando sua vida acadêmica nas pós-graduações para viver das bolsas. São trabalhadores do terceiro setor a pular de assessoria em assessoria para complementar renda. São engenheiros e arquitetos contratados por empreitada, pingando de obra em obra e vivendo como dá entre uma coisa e outra. São professores trabalhando três turnos para manter condições dignas de vida… e por aí vai. Isto sem contar o fato de que a categoria “ensino superior” agrupa tanto os diplomados quanto os estudantes, o que pode gerar uma interpretação equivocada sobre os trabalhos em que estão inseridas as pessoas; não seria de espantar encontrar nas manifestações trabalhadores de escritórios, atendentes de telemarketing e outros tantos que se esfalfam de dia para pagar pelo acesso a um diploma à noite. Foram estes que vi nas ruas em Salvador, foi destes que recebi diversos relatos vindos de outras cidades.

Se trabalhadores qualificados estiveram nos protestos (está em aberto, evidentemente, o debate sobre “o que é um trabalhador qualificado”), tanto pelos relatos que recebi quanto pelo perfil daqueles que atendi como advogado nas manifestações de junho de 2013 em Salvador, posso dizer com razoável certeza que, independentemente de qualquer filiação ideológica, foram os jovens trabalhadores precarizados das periferias urbanas a compor a linha de frente do enfrentamento com a polícia. São os massacrados cotidianamente por esta mesma polícia, que viram ali a oportunidade, mesmo passageira, de “dar o troco”[4].

É isto “classe média”? Dificilmente.

Mas e no movimento de ocupações de escolas em 2015, foi a mesma coisa? Batendo o olho no mapa de ocupações que pode ser encontrado aqui, observa-se que a maior concentração de escolas ocupadas se deu na Zona Sul – periferia de São Paulo, portanto. Conversando com companheiros de São Paulo durante a elaboração deste artigo, fui informado de que nas escolas do Centro, especialmente dos bairros do Centro-Oeste, os alunos vem da periferia para estudar também (exemplo do Fernão Dias). Numa análise mais a fundo, segundo eles, talvez se constate que as escolas ocupadas eram em geral as melhores das regiões, mas é uma hipótese; mesmo assim, a clivagem entre as escolas estaduais, segundo as informações que recebi, não é tão grande. Em 2016, com as ocupações das ETECs, aí temos um perfil um pouco diferente; mesmo assim a maioria das ETECs ocupadas ficavam na periferia de São Paulo.

Novamente, a pergunta: é isto um movimento de “classe média”? Dificilmente.

Já nos movimentos a favor e contra o impedimento da então presidente Dilma Rousseff, evento político que alguns setores da esquerda jogam nas costas do “autonomismo” radicando-o na guinada à direita das manifestações depois do 17 de junho de 2013, encontramos fatos curiosos. Uma pesquisa que confrontou informações acerca dos participantes em manifestações a favor e contra o impedimento em 2015 e 2016[5], com todas as limitações próprias às sondagens estatísticas e com toda a problemática que envolve a generalização a partir das amostras escolhidas, observou o seguinte: nos dois lados da disputa 77% dos contendores tinha diploma universitário; 53,9% dos pró-impedimento e 44% dos contrários ao impedimento tinha mais de 40 anos de idade (sendo apenas 31,3% mais jovens que 30 anos neste último caso); 28% dos pró-impedimento tinha renda mensal entre 10 e 20 salários mínimos, e 31,9% dos contrários ao impedimento tinha renda mensal entre 5 e 10 salários mínimos – nenhuma das duas, como apontam os pesquisadores, refletindo a estratificação da renda no Brasil.

Por outro lado, os pesquisadores aplicaram os mesmos questionários em manifestações com pautas fortemente ligadas ao chamado “autonomismo”: a Marcha da Maconha de 2016 e a passeata de secundaristas de 19 de maio do mesmo ano. Resultados: 84,7% dos participantes da Marcha da Maconha e 89,9% dos participantes da passeata dos secundaristas têm menos de 30 anos; respectivamente, 41,3% e 46% têm renda familiar de até 3 salários mínimos. Ademais, no que diz respeito às diferenças entre esquerda e direita, na Marcha da Maconha 41.1% não concordam e 33,2% concordam apenas parcialmente com a afirmação, comum no campo dito “autonomista”, de que “não há grandes diferenças entre governos de esquerda e governos de direita”; na passeata dos secundaristas, 64% não concordam e 25,9% concordam apenas em parte com a mesma afirmação. No que diz respeito à afirmação de que “movimentos sociais devem ser independentes de partidos políticos”, 68% dos entrevistados na Marcha da Maconha e 63% dos entrevistados na passeata dos secundaristas concordam totalmente.

Impõe-se, mais uma vez, a pergunta: é isto “classe média”? A julgar pelas informações desta pesquisa, a “classe média” é quem, aparentemente, se polarizou pela disputa do impedimento[6], enquanto a juventude da classe trabalhadora pouco se envolveu na polarização e tratou de tocar suas lutas em paralelo, embora integradamente, a esta mobilização político-partidária. A resposta à pergunta, mais uma vez, é: dificilmente.

Mais uma vez, perdeu a chance de acertar o alvo quem apostou na teoria política tradicional. Ao invés de tentar interpretar a “recusa” destes trabalhadores qualificados, semiqualificados e da juventude trabalhadora às formas tradicionais de representação política, jogaram-nos na vala comum da classe média tradicional – esta sim, ainda ativa e bastante atuante, mas com pautas muito diferentes. Enquanto uns debatem as virtudes e problemas do assim chamado “autonomismo”, outros, como a Rede, o PSOL, o PSTU, o PCO e o PCB capitalizam esta “recusa” para um rejuvenescimento das formas tradicionais de política “de esquerda”, enquanto a Nova Democracia, o Partido Pirata (ainda em formação, mas já disputando hegemonia), a CAB, o Fora do Eixo/Mídia Ninja etc., pela sua presença nas lutas e nas mídias (especialmente as alternativas) capitalizam esta “recusa” numa forma, por assim dizer, “extraparlamentar” e, portanto, “nova”.

Resta responder: é possível identificar automaticamente como “autonomistas” estas frações de classe a que me referi até o momento? Digo a mesma coisa: dificilmente.

O que vemos passar como “autonomismo” é, na verdade, a colagem a certas práticas de democracia de base comuns em movimentos sociais multitudinários de um verniz ideológico ora usado como xingamento, ora usado como autoidentificação. Exatamente porque o perfil da classe trabalhadora atual é diferente daquele da classe trabalhadora responsável pelo impulso dos movimentos sociais dos anos 1970 e 1980, as “lentes” dos analistas que construíram suas teorias para explicar, compreender, elucidar ou analisar estes movimentos sociais permanecem úteis e válidas, mas precisam ser desembaçadas e ajustadas.

Os movimentos sociais das frações de classe a que me referi anteriormente parecem refletir uma tradição de organização e mobilização que não era a dos movimentos sociais e populares das décadas de 1970/1980, mas sim aquela derivada diretamente dos movimentos envolvidos ou resultantes das lutas que culminaram na Batalha de Seattle, em 1999, cujo objetivo imediato foi a paralisação da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio (OMC). É a esta tradição que pertence a “nova esquerda” de hoje. Ela não nega a história de luta dos movimentos sociais e populares que vieram antes dela, mas não reivindica filiação direta às suas formas organizacionais ou às suas perspectivas tático-estratégicas. Não se trata, aqui, de indicar a filiação ideológica desta “nova esquerda” ao pensamento do autor X ou do pensador Y; trata-se, sim, de reconhecer seu pertencimento a uma tradição de militância muito bem enraizada nas lutas sociais desde a década de 1990, ela própria caudatária das práticas militantes das décadas de 1960 e 1970, tais como, entre outras, as seguintes:

  • Autonomia operaia italiana (Quaderni Rossi de Panzieri, Tronti, Negri, etc.; Potere Operaio; Il Manifesto; Autonomia diffusa; etc.);
  • Organizações envolvidas com o Maio de 1968 e as greves gerais de junho de 1968 na França, nomeadamente o Movimento 22 de Março;
  • O situacionismo (Guy Debord, Asger Jorn, Raoul Vaneigem, etc.);
  • O maoísmo europeu;
  • Panteras Negras;
  • Guerrilhas latino-americanas (ALN, Tupamaros, Montoneros, Sendero Luminoso, etc., subsumidos na figura de Ernesto “Che” Guevara);
  • Students for a Democratic Society estadunidenses, assim como as organizações dele derivadas (Weathermen, Novo Movimento Comunista, etc.);
  • Provos holandeses;
  • Nova esquerda japonesa (Zengakuren, Exército Vermelho Unido, Exército Vermelho Japonês, etc.);
  • Sozialistische Deutsche Studentenbund (SDS), a união estudantil dos estudantes socialistas alemães, expulsos do Partido Social-Democrata em 1961 e responsáveis pela agitação extra-parlamentar no país até sua dissolução em 1970.

Esta linha de pensamento e ação, por sua vez, não surge como um raio em céu azul, e enraíza-se simultaneamente em tradições militantes como:

  • o “marxismo heterodoxo” de grupos como Socialisme ou Barbarie, grupo Johnson-Forest etc.;
  • o trotskismo (em especial, no caso brasileiro, as vertentes lambertista e morenista);
  • o marxismo conselhista (Anton Pannekoek, Herman Gorter, Otto Rühle, etc.);
  • os “bolcheviques de esquerda” (grupo Oposição Operária de Shlyapnikov, Kollontai, Vladimirov, Medvedev, Tolokonvsev, Chelyshev, Kutuzov, Orlov, Kiselyov, etc.; grupo Verdade Operária de Shutskever, Shul’man, Khaikevich, Budnitsky, Lass-Koslova, Vikman-Beleev, Krym etc.);
  • o anarquismo (especialmente Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta).

A tudo isto se soma uma boa dose de pós-estruturalismo, identitarismo, militância queer, feminismo radical, pós-colonialismo e tantas outras ideologias do momento. Assim como não se pode “responsabilizar” alguém por ter “nadado” intelectualmente nas águas do estruturalismo ou do humanismo marxista nos anos 1960 e 1970, vale o mesmo para esta geração; seu problema está em não perceber os limites e problemas de certas práticas – como o escracho ou o novo sectarismo do “lugar de fala” – e das ideologias que delas se alimentam.

Mesmo esta classificação é mera hipótese a ser testada. Seria preciso verificar, por exemplo, como e em que medida e os militantes da “geração pós-Seattle” permanecem ativos nestes movimentos, além de entender sua influência; como e em que medida o conhecimento sobre as tradições a que me referi circula entre esta jovem militância; como e em que medida estes dois fatores influenciam as ações analisadas. Embora a hipótese se encaixe como luva no que diz respeito a certos setores mais intelectualizados das frações de classe a que me referi, mesmo neste campo se trata de certos setores, não da totalidade destes setores. Para entender como tais tradições reverberam nestes setores, passaremos a uma análise crítica de debates em torno dos fundamentos, práticas, táticas, estratégias e resultados das lutas havidas de 2013 para cá.

Notas

[1] O “autonomismo” – seja como xingamento, seja como auto-afirmação política – tem longa história no Brasil, parte dela associada ao surgimento e desenvolvimento do PT, mas a exposição e debate desta história fogem aos objetivos deste artigo.

[2] Chamo atenção, entre outros, para os diagnósticos publicados pela revista Desvios (1979-1985), onde escreviam Marco Aurélio Garcia, Marilena Chauí, Eder Sader, Amnéris Maroni, Nestor Perlongher e outros, exatamente por saberem ver tais sintomas na “recusa” ao trabalho e à política.

[3] Encontrei os resultados da pesquisa no artigo de Lincoln Secco e Antonio David, “Saberá o PT identificar e aproveitar a janela histórica?”, disponível aqui.

[4] Sobre o assunto, ver aqui uma entrevista feita em Porto Alegre.

[5] Pablo Ortellado, Esther Solano e Márcio Moretto, “Uma sociedade polarizada?”, em Por que gritamos “golpe” (São Paulo: Boitempo, 2016) e também aqui.

[6] Os resultados da pesquisa permitem inferir que a polarização é mais aparente que real, dadas as conclusões que são encontráveis em qualquer dos grupos pesquisados: baixa confiança nas instituições, na imprensa, nos partidos políticos, nas figuras políticas mais proeminentes no processo de disputa política e a percepção de “redes de corrupção que corroem o sistema de representatividade”, tudo isto resultando numa situação de “anomalia política”.

As fotografias que ilustram o artigo são de Gilles Caron

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